Os Guarani sobreviveram e com o passar do tempo foram reivindicando seu território original. Em Santa Catarina não foi diferente.
Por Elaine Tavares*
Desde o Morro dos Cavalos, em Palhoça, Santa Catarina, ecoa um grito que poucos ouvem. Não porque não seja forte, mas porque quem grita são gentes do povo Guarani. Gente indígena, originária, que a maioria das pessoas prefere ignorar. Tanto que desde 1992, quando surgiu a proposta de demarcação da área para que as famílias Guarani pudessem ter um lugar para viver, a terra e os Guarani vivem sob constante ataque do Estado, dos políticos, e até das chamadas “pessoas de bem”. Ao longo desses anos são incontáveis as ações violentas, preconceituosas e discriminatórias. E desde que as famílias empreenderam uma luta mais potente pela posse da sua terra ancestral a violência aumentou, a ponto de no último feriado do dia 02 de novembro, a mãe da ex-cacica Kerexu, Ivete de Souza, 59 anos, ter sua mão decepada por dois adolescentes, provavelmente incitados e pagos pelos inimigos de sempre.
Os Guarani comprovadamente ocupam as terras catarinenses desde antes da invasão portuguesa. Os registros são inúmeros. A etnia se movia no território que vai do Rio Grande do Sul até a Bolívia, sendo o centro do seu mundo o que hoje é o Paraguai. E, como é sabido, toda essa gente foi sendo exterminada no processo de conquista. A chegada dos portugueses varreu as famílias do seu lugar original. Os que escaparam da morte foram se escondendo no interior. Até que os colonizadores também chegaram lá. Foi a brutal invasão que desalojou os Guarani. Foi um roubo. Uma violência.
Mas, ao contrário do que objetivavam, os portugueses e os espanhóis não conseguiram exterminar o povo inteiro. Os Guarani sobreviveram e com o passar do tempo foram reivindicando seu território original. Em Santa Catarina não foi diferente. Famílias Guarani que por aqui permaneceram, isoladas e em fuga, foram se juntando. E essa união gestou a força para a luta. Foi assim que começou a se constituir o processo para a demarcação das terras.
A batalha tem sido dura porque a Constituição de 1988 estabelece um marco temporal. Para reivindicar terra os indígenas teriam de estar nelas antes dessa data. O que é uma farsa completa, pois se a maioria andava fugindo da dizimação, como poderia estar ali? E foi em nome desse marco que o Estado de Santa Catarina começou a colocar empecilhos para a demarcação da terra do Morro dos Cavalos.
No ano de 2008 foi expedida uma portaria (771/2008) pelo Ministério da Justiça, garantindo aos Guarani a posse de 1.988 hectares na região do Morro dos Cavalos. Mas, a Procuradoria do Estado pediu anulação, justamente se referindo ao tal do “marco temporal”. E desde aí o processo se arrasta, ainda que os Guarani sigam vivendo no local.
O mais dramático é que, no processo de anulação, o próprio Estado admite que desde 1970 tem Guarani vivendo na área, conforme mostra um trabalho desenvolvido por pesquisadores da UFSC. Mas, a alegação cretina é de era uma única família de oito guaranis, com origem no Paraguai. Ora, se já está mais do que comprovado de que o território Guarani se estendia do RS à Bolívia, é mais do claro que, para essa etnia, as fronteiras desenhadas pelos invasores não fazem sentido. Os Guarani se movem conforme os perigos que enfrentam. O fato é que nos anos 70 havia Guarani na região. E mesmo que não existissem ali naqueles anos, essa é sua terra originária e eles têm direitos sobre elas.
De qualquer sorte, por conta dessa polêmica, a demarcação ainda não saiu.
Hoje, vivem na região mais de 300 Guarani. E sobre eles pesa a mão forte da especulação e da renda da terra. Políticos da cidade onde está a terra indígena, e também de cidades vizinhas, têm promovido campanhas violentas de difamação e de enganos, levando a população ao ódio e ao preconceito. Essa incitação contra os indígenas provoca ações de protesto e ataques. É comum aos moradores da aldeia Itaty conviver com tiros disparados a esmo desde a BR 101, no meio da madrugada. Caminhonetas possantes passam e seus ocupantes, escondidos pela noite, disparam na direção das casas. Barcos são queimados na madrugada, plantações são destruídas. É uma longa, cruel e sistemática tortura.
Durante o cacicato de Kerexu Yxapyry as coisas recrudesceram. Além de indígena, é uma mulher. E guerreira, e valente, defendendo sem medo sua gente de toda a canalha que quer colocar a mão nas terras que hoje são dos Guarani. Como é comum numa sociedade transpassada pelo machismo, ela passou a ser o alvo principal, não apenas dos já conhecidos políticos, como também dos jagunços que são financiados para semear o terror na aldeia.
A ação desse feriado de novembro, que terminou com a mão da mãe de Kerexu decepada, foi mais um evento nessa sequência de barbaridades. A intenção dos adolescentes que atacaram Ivete era fazer com que ela sangrasse até morrer. Não conseguiram. Mas, até quando? Qual deverá ser o limite do terror para que o Estado intervenha e garanta a proteção da gente Guarani?
A campanha contra os indígenas agora cresceu para a cidade de Enseada de Brito, na qual as pessoas são levadas a acreditar que a presença dos Guarani na nascente do rio que leva água ao lugar, será contaminada. Como se os Guarani fossem alguma doença. É de horrorizar. Ora, os povos originários são os que mais protegem a natureza. Não há qualquer possibilidade de essa gente sujar o rio. Pelo contrário. Ele será ainda mais cuidado.
O fato é que a demora na demarcação só aumenta a quentura do caldeirão. Com essa carta na manga, os políticos ligados à especulação das terras vão insuflando a população não-índia e provocando conflitos. O que querem é aterrorizar as famílias e garantir a expulsão.
Agora, com mais essa ação violenta contra sua família, Kerexu está convocando os lutadores sociais da região para que se unam aos Guarani na proteção da aldeia. Se o estado não garante a segurança e sequer se importa com o destino das gentes, eles haverão de encontrar caminhos. Ações de ajuda já estão se construindo. Há braços demais na solidariedade.
E, enquanto isso, as demarcações esperam. O governo quer vencer os indígenas no cansaço. Quanta estupidez. Se esse povo conseguiu sobreviver ao longo processos de destruição imposto pela colônia e pelo capitalismo, não há dúvidas de seguirá lutando.
O Morro dos Cavalos é Guarani. Que se identifiquem os mandantes do crime e que se aja em consequência.