Brasil em Guerra

Ente 2005 e 2015, o Brasil teve 318 mil jovens assassinados, a um ritmo que supera, desde 2012, a marca de 30 mil mortes violentas por ano.

Por Selvino Heck*

Na Inglaterra, até semanas atrás, 3 atentados resultaram em 34 mortes em 73 dias de 2017. No Brasil, no Estado de Pernambuco, com zero atentados, houve 1.095 mortes em 73 dias do mesmo ano.

Segundo levantamento da Esri Story Maps e da PeaceTech Lab, todos os atentados terroristas do mundo nos cinco primeiros meses de 2017 não superam o ‘número de homicídios registrado no Brasil em três semanas de 2015 que, no ano todo, chegou a 50.080 homicídios. Isso significa 28,9 mortes a cada 100 mil habitantes. Em 498 ataques, 3.314 pessoas morreram no mundo. Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, cerca de 3,4 mil pessoas foram assassinadas no Brasil a cada três semanas em 2015. Altamira, no Pará, lidera a relação dos municípios mais violentos, com uma taxa de homicídios (Rosária Garcia Costa, Biblioteca, Folha Revista, Folha do Mate, 10-11/06/17).

Os números tornam-se ainda mais trágicos quando se aprofunda seu detalhamento. Manchete do jornal Valor Econômico (06.06.17, p. A2): PAÍS TEVE 318 MIL JOVENS ASSASSINADOS EM UMA DÉCADA E MAIS DE 70% SÃO NEGROS.

brasilmulherenfrentapolicia1307Ente 2005 e 2015, o Brasil teve 318 mil jovens assassinados, a um ritmo que supera, desde 2012, a marca de 30 mil mortes violentas por ano. Só em 2015, a morte de jovens respondeu por 54,1% dos 59.080 homicídios registrados no Brasil. A maioria era negra: de cada 100 assassinados, no Brasil, 71 são negros, de acordo com o relatório Atlas da Violência, divulgada pelo Fórum de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As vítimas dos assassinatos, além disso, são cada vez mais jovens: na média, aos 21 anos, contra os 25 anos em que eram assassinados em média na década de 80. A taxa de homicídios da população jovem era de 60,9 mortes a cada 100 mil pessoas em 2015, crescimento de 17,2% sobre 2015.

O retrato ainda é pior para a população negra, principal vítima dos assassinatos. Os homicídios de jovens e negros do sexo masculino equivalem a uma situação de guerra, alerta o relatório, que aponta que o cidadão negro tem 23,5% mais chances de morrer assassinado quando comparado aos cidadãos de outras etnias, já descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado e bairro de residência.

Feito um recorte de cor/etnia, descobre-se o seguinte. Na década de 2005 a 2015, a taxa de homicídio de negros cresceu 18,2%; a de indivíduos não-negros, por outro lado, caiu 12,2% no mesmo período. Verificou-se um aumento proporcional da diferença nas mortes violentas de negros em 16 Estados, sendo que esta diferença aumentou mais em Sergipe (171,9%).

O assassinato de negros, no entanto, é disseminado em todo o país. O Atlas destaca quem em todas as Unidades da Federação, com exceção do Paraná, os negros com idade entre 12 e 29 anos apresentavam mais risco de exposição à violência que os brancos na mesma faixa etária. Em 2012, o risco relativo de um jovem negro ser vítima de homicídio era 2,6 vezes maior do que um jovem branco.

Enquanto os assassinatos de mulheres não negras tiveram redução de 7,4% entre 2005 e 2015, atingindo 3,1 mortes para cada 100 mil mulheres – ou seja, abaixo da média nacional –, os homicídios de mulheres negras cresceram 22% no mesmo período, chegando à taxa de 5,2 mortes para cada 100 mil mulheres negras.

Os dados mostram ainda um alarmante recrudescimento dos indicadores de homicídios nas regiões Norte e Nordeste. Dos dez Estados em que o número de homicídios cresceu mais de 100% na década analisada, cinco são do Nordeste e quatro do Norte: Rio Grande do Norte (280,5%); Sergipe (167,7%); Tocantins (164%); Maranhão (160,7%); Amazonas (145,7%); Ceará (145%); Roraima (113,7%); Bahia (108,7%); Paraíba (104,3%). A exceção na lista dos maiores aumentos da década é Goiás, do Centro-Oeste, onde o número de homicídios cresceu 104,2%.

A Diretora Executiva do Fórum, Samira Bueno, comparou os homicídios no Brasil em 20 anos com a Guerra do Vietnã, conflito que durou duas décadas e em que morreram 1,1 milhão de pessoas. Entre 1995 e 2015, 1,3 milhão de pessoas foram assassinadas no país. Em outra análise, ela comparou o número de pessoas mortas no Brasil por ano a uma queda de um Boeing 737 por dia. Os homicídios no Brasil representam mais de 10% de todos os homicídios no mundo. É uma verdadeira crise civilizatória”, diz o pesquisador do IPEA Daniel Cerqueira, um dos responsáveis pela pesquisa.

Quais as causas desta tragédia? Diz o relatório: “Apesar do avanço dos indicadores socioeconômicos e da melhoria das condições de vida da população entre 2005 e 2015, continuamos uma nação extremamente desigual.”

“Que país é esse? Você tem milhares de jovens nas cadeias, entupidas de gente aprendendo a roubar cada vez mais. Corrupção generalizada entre os políticos, crise econômica profunda”, diz o economista Naércio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) (In O patrimonialismo está excluindo a população – Elites que lutam por manter privilégios impedem o avanço do país, Valor Econômico, Especial, 08.06.17, p. A14). E acrescenta Naércio: “O brasileiro não confia no outro. E parte disso vem desse processo de grande concentração de renda, de ativos, nas mãos de poucas pessoas. E de poucas oportunidades para a grande maioria da população. Existem as instituições políticas extrativistas (como estamos vendo à farta nas denúncias de todos os dias, grifo meu), que existem para preservar o poder econômico e político nas mãos de uma elite. E tudo isso é muito difícil de ser mudado.”

Qual a saída? Segundo Samira Bueno, em primeiro lugar, “a violência tem que ser prioridade para o desenvolvimento do Estado brasileiro”. De outro lado, ao comparar as cidades de mais de 100 mil habitantes, com o menor índice de homicídios, Jaraguá do Sul (SC), e o maior, Altamira (PA), a primeira tem basicamente o dobro de jovens na escola. De acordo com Daniel Cerqueira, “isso mostra que a questão educacional é de primeira ordem”. Em terceiro, enquanto o Brasil não enfrentar pra valer a brutal desigualdade econômica e social, ainda uma das maiores do mundo, mesmo com os avanços de políticas e programas sociais das últimas décadas (e que agora estão sendo fulminados pelo governo golpista). Para isso, as Reformas de Base dos anos 1960, impedidas pelo golpe militar, continuam urgentes e necessárias nos anos 2010/2020: reforma tributária em primeiro lugar, reforma agrária, reforma política, reforma dos meios de comunicação, entre as mais urgentes.

Enquanto não se criar uma consciência nacional de que o Brasil está numa verdadeira guerra, em especial com a mortandade de jovens negros e mulheres negras, a violência não só vai continuar quanto crescer, como se está vendo todos os dias, com o consequente aumento do medo e a insegurança geral. E as soluções da direita raivosa e preconceituosa ganhando espaço, em vez dos direitos e da democracia.

*Selvino Heck é deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990).

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