Depois de 100 anos, a cidade e o Santuário de Fátima, em Portugal têm-se renovado e reinventado. Os peregrinos são cada vez mais, e de lugares mais distantes, e até a mensagem que deu origem a este fenômeno se mantém atual.
Por Francisco Pedro *
Fotos: Ana Paula
Quando aterrou no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa, em maio de 2010, o então papa Bento XVI recuperou a frase emblemática do cardeal Cerejeira: “não foi a Igreja que impôs Fátima, foi Fátima que se impôs à Igreja”. Passaram sete anos. Mas talvez valha a pena retomar a afirmação, para formular uma nova questão: “foi Fátima que se impôs à Igreja, ou foram os crentes que impuseram Fátima à Igreja?”
Situemo-nos nas origens. Três crianças, que não sabiam ler nem escrever e que seguramente não haviam ultrapassado as fronteiras dos terrenos onde diariamente pastavam as ovelhas, sustento da família, dizem ter “visto” uma aparição de Nossa Senhora. Entre elas, tinham combinado não revelar a “visão”. Mas Jacinta, a mais nova do grupo, não conseguiu guardar segredo. Contou à mãe. E a notícia ganhou contornos de ‘milagre’, de uma nova luz, de uma nova esperança, para a população mais devota. Será essa a mais que provável explicação para justificar a “presença de 50 a 60 pessoas” no então descampado da Cova da Iria, no dia da “segunda aparição” relatada por Jacinta e Francisco Marto e a prima Lúcia de Jesus, a 13 de junho de 1917. Uma romaria de gente que nunca mais parou de crescer. Até os dias de hoje. As previsões mais otimistas estimam que este ano se desloquem a Fátima perto de oito milhões de pessoas. E um destes banhos de multidão é esperado já em 12 e 13 de maio, com a visita do papa Francisco, o quarto Pontífice a ajoelhar-se aos pés da imagem idolatrada nos quatro cantos do mundo.
Tal como a 100 anos, grande parte destes peregrinos, vem à procura de conforto interior. Pode ser apenas por uma questão de equilíbrio emocional, de reconciliação com a vida, de experimentação de um momento de introspecção anônima longe dos olhares mais paroquianos, ou de uma vivência espiritual que só uma massa humana como a que se concentra na Cova da Iria pode proporcionar. Mas basta ouvir os testemunhos para depreender que o verdadeiro ‘ímã’ que atrai a esmagadora maioria das pessoas é a fé, a crença e a esperança - numa cura, no nascimento de um filho, na concórdia, no fim das guerras, na extinção da fome. Já era assim em 1917, como testemunham os escritos da época ao fazerem referência aos pedidos de graças feitos através da vidente Lúcia e as esmolas deixadas pelos crentes. Continua a ser assim em 2017.
Experiências sensoriais
Nas grandes peregrinações internacionais aniversárias, nos dias 13 de maio a outubro, são aos milhares as pessoas que aproveitam para cumprir promessas, normalmente de joelhos, na passadeira de mármore que atravessa todo o recinto do Santuário, até à Capelinha das Aparições. Ao lado do templo que alberga a imagem de Nossa Senhora de Fátima, o tocheiro transforma-se numa chama imensa e quase contínua, fruto da grande quantidade de velas e outros artigos em cera oferecidos pelos peregrinos. Nos dois dias de celebrações, chegam a consumir-se quase 30 toneladas de cera. Isto sem contar com as velas utilizadas pelos peregrinos na procissão noturna, uma prática comum desde a década de 1920, que transforma o recinto num “rio de luz” e numa “experiência sensorial e estética que fortalece a própria fé”, como explica o reitor do Santuário de Fátima, padre Carlos Cabecinhas.
Ofertas para fins sociais
Ao nível das contribuições, que surgem nos relatos da irmã Lúcia logo a partir das primeiras aparições, a tradição não só se manteve como foi acompanhando o ritmo de crescimento e popularidade do Santuário de Fátima. Nas últimas contas apresentadas pelos responsáveis do templo mariano, relativas a 2005, a parcela de ofertas dos peregrinos situava-se nos 9,3 milhões de euros. Parte deste dinheiro, asseguram os responsáveis do Santuário, é canalizada para obras de cunho social.
No campo urbanístico, as transformações foram muitas. O monte da Cova Iria, que antes pertencia à família de Lúcia e que não passava de um terreno com árvores e terras de cultivo, deu lugar ao “coração espiritual de Portugal, onde pulsa a vida espiritual do nosso povo, e do mundo”, segundo palavras de Bento XVI. Primeiro foi construída a Capelinha das Aparições, depois a Basílica de Nossa Senhora e mais tarde a Basílica da Santíssima Trindade. O ano passado, o altar foi reformulado e já este ano o piso do recinto de oração foi regularizado, com um novo tapete de asfalto. Em redor do templo, a cidade cresceu, reforçando a oferta comercial, de restauração e hoteleira. Às cerca de 400 lojas de artigos religiosos, de acordo com estimativas de Alexandre Marto, presidente da Associação Empresarial de Ourém-Fátima (ACISO), juntam-se mais de 70 unidades hoteleiras, que disponibilizam perto de 7.500 camas, um negócio que, em 2015, gerou um faturamento superior a 27 milhões de euros. Há ainda mais 7.000 camas geridas pelas dezenas de congregações religiosas instaladas em Fátima.
Mensagem para o mundo
Na origem de todo este movimento impulsionado pela fé e pela devoção mariana, está uma mensagem, que apesar de centenária, continua plena de atualidade, como fez questão de recordar recentemente numa conferência sobre o Centenário das Aparições, em Roma (Itália), o bispo de Leiria-Fátima. “Provavelmente, só hoje, depois de quase um século, estamos em posição de compreender mais profundamente a verdade, a riqueza e toda a extensão desta mensagem”, disse Antônio Marto, sublinhando que os anúncios e os pedidos da Virgem Maria aos videntes permanecem válidos e atuais, pois apelam ao regresso do “ato de adoração a Deus ao centro da vida da Igreja e do mundo, em contraste com o ambiente de perseguição, de ateísmo e indiferença religiosa”.
Aliás, basta recuperar as palavras proferidas pelo papa Paulo VI em Fátima, em maio de 1967, para compreender o que quer dizer Antônio Marto. Na ocasião, o Pontífice elegeu duas intenções como elementos chave da sua peregrinação. A primeira, virada para dentro da própria Igreja: “Queremos pedir a Maria uma Igreja viva, uma Igreja verdadeira, uma Igreja unida, uma Igreja Santa”. A segunda, relacionada com o apelo à paz no mundo: “Não penseis em projetos de destruição e de morte, de revolução e de violência; pensai em projetos de conforto comum e de colaboração solidária. Pensai na gravidade e na grandeza desta hora, que pode ser decisiva para a história da geração presente e futura”, afirmou o primeiro papa a visitar a Cova da Iria, num período em que “grande parte da humanidade” se encontrava “em estado de indigência e de fome” e o mundo “estava em perigo”, face ao “grande arsenal de armas terrivelmente mortíferas”. A finalizar o seu discurso aos peregrinos, Paulo VI formulou um desejo: “Que este quadro do mundo nunca mais venha a registar lutas, tragédias e catástrofes, mas sim as conquistas do amor e as vitórias da paz”. Um desejo que continua a arrastar multidões à Cova da Iria.