A democracia e uma sociedade democrática são uma construção diária e vigilante. Nunca se pode considerá-las prontas ou definitivas no Brasil e no continente latino-americano.
Por Selvino Heck*
O golpe militar foi há exatos 53 anos, em 31 de março de 1964, ou melhor, primeiro de abril de 1964 (a data ‘oficial’ foi adiantada, porque o primeiro de abril, no imaginário popular, significa ‘dia da mentira’ e tudo mais). Os tempos ardiam na primeira quadra dos anos 1960 e nos anos seguintes.
Desde 1985, portanto há mais de 30 anos, vivemos tempos inéditos de democracia: uma Constituinte que produziu uma Constituição Cidadã, eleições diretas depois de grandes mobilizações populares, governos populares com Orçamento Participativo e políticas públicas com participação social e popular. Para um país chamado Brasil com sua história, escravocrata e de muito pouca democracia, não é pequeno ou menor este período democrático e suas conquistas.
E achávamos que este tempo democrático alargado, 30 anos - só houve outro tão longo, de 19 anos, entre 1945 e 1964 –, e a democracia estavam consolidados. Não estão.
Os tempos ardem porque a direita e os setores conservadores ressurgiram e a velha mídia e seus aliados, que apoiaram o golpe em 64, estão hoje apoiando e dando um golpe mais uma vez. A diferença é que então, 53 anos atrás, todos os setores democráticos eram contra o golpe militar. Hoje, grande parte dos setores democráticos de então, e que sofreram o golpe militar e lutaram pela redemocratização, o PMDB e o PSDB, até o PSB, para ficar só em partidos, não só apoiam como perpetraram o golpe atual.
É verdade que o golpe de agora não é militar, portanto tem outras características. Mas continua sendo um golpe contra a democracia e o voto de 54 milhões de brasileiras e brasileiros, que elegeram legitimamente Dilma presidente. E é um golpe que está ameaçando a liberdade, está cortando direitos, especialmente dos mais pobres e dos trabalhadores, e acabando com a soberania nacional.
Os tempos ardem porque a esquerda e os setores democráticos da sociedade resistem. Estão aí as manifestações todos os dias, o carnaval, o 8 de março, o 15 de março, as de hoje, 31 de março, e anuncia-se uma Greve Geral para 28 de abril, convocada por todas as Centrais Sindicais.
Mas não basta resistir. É preciso apontar futuro, propor um programa para o momento e construir um projeto de sociedade para amanhã.
As Reformas de Base, não feitas nos anos 1960 e motivo principal do golpe militar – setores da classe média, mídia, elites nacionais e internacionais usaram o medo do suposto comunismo que viria como pretexto para acabar com as Reformas de Base –, precisam ainda ser feitas, 53 anos depois: a política, a tributária, a agrária, a da mídia. E Reformas de Base e estruturantes não são as reformas da previdência e trabalhista propostas pelo governo golpista de plantão, que acabam com a Nação e a soberania, aumentam a desigualdade social e penalizam unicamente os pobres e os trabalhadores.
A democracia e uma sociedade democrática são uma construção diária e vigilante. Nunca se pode considerá-las prontas ou definitivas no Brasil e no continente latino-americano. Vivemos tempos de denúncia, e são tempos de anúncio. As Jornadas de Abril, o Abril Vermelho, a Greve Geral em construção, o sexto Congresso do PT, em andamento, tudo preparando um grande Primeiro de Maio, são elementos de resistência e sinais de que a democracia pode e deve ser mantida e/ou reconquistada.
Escrevi um poema, publicado no CAJADO, Ano III, número 11, jornal do Movimento Peregrinos da Pastoral de Juventude, fev-março/1980, tempos de ditadura, e que parece escrito hoje ou para hoje, 2017: “LUTADORES. A sensação mais forte/ é de impotência./ Nada somos/ e os batalhões inimigos são amplos,/ têm a pele pintada para a guerra,/ o rosto feroz./ Quase somos sozinhos,/ sem armas,/ apenas a palavra,/ sem força,/ apenas a ideia,/ sem estratégia,/ apenas a esperança./ São poucos os companheiros,/ poucas as companheiras/ e a coragem./ Vivemos presos à casa,/ ao medo,/ pouco sabemos da vida/ e da dor./ Mal distinguimos o limite/entre o sofrimento do povo/ e a verdade,/ entre o silêncio/ e a liberdade./ O continente é mais vasto/ que nossa união e cansaço./ No entanto,/ meu irmão,/ minha irmã,/ não dobramos o corpo,/ não apagamos a luta. A MANHÃ PERTENCE AO POVO.”
1964, 1980, tempos de ditadura militar, os tempos ardiam. Mas a manhã chegou. Os tempos ardem outra vez e arderão por muito tempo. A manhã há de chegar de novo.