A cacofonia do mercado

O subjetivismo de quem apresenta a notícia e de quem a consome não deixam lugar ao objetivismo jornalístico.O ruído substitui a comunicação.

Por Alfredo J. Gonçalves*

O capitalismo inicial, fortemente marcado pelo espírito sóbrio e puritano como forma de eleição divina em vista da salvação (Max Weber), limitava de forma considerável o “livre direito de consumo individual”. Por outro lado, valores de caráter religioso e ético, impedimentos tradicionais e autoritários e a pressão sociocultural, contribuíam ainda mais para essa inibição pessoal do consumo imediato dos novos produtos da Revolução Industrial.

“Da mesma forma que a política se emancipou do religioso e o econômico do político, o cultural (os modos de vida) libertou-se dos costumes e tradições em nome do princípio da liberdade individual. Para além da novas disjunção das ordens, combinou-se, assim, uma esfera cultural libertal-individualista em concordância de princípio com o que funda o sistema econômico do mercado livre” (LIPOVETSKY Gilles & SERROY Jean; O capitalismo estético na era da globalização, Edições 70, Lisboa, 2014, pag. 453).

shopping_2Com tais palavras, Lepovetsky nos introduz no que ele chama de capitalismo transestético, em tempos de hipermodernidade e hiperconsumo. Em semelhante contexto, predomina não tanto a hierarquia das classes sociais rigidamente enquadradas ou a disputa com o vizinho pela melhor aparência, mas os gostos, emoções, experiências e sentimentos subjetivos. Numa palavra, emerge uma era do consumo estético, onde os produtos imateriais (lazer, turismo, sensações novas e diversas) tomam em boa parte o lugar das inovações materiais.

Evidentemente não desaparece o consumo compulsivo, esse frenesi aliado ao prazer exacerbado de “ir às compras”. Tampouco desaparece o apetite cada vez mais voraz pelas novidades despejadas no mercado a um ritmo de avalanche. E nem diminui a velocidade do ciclo produção-venda-compra-descarte. Ao contrário, prossegue a construção acelerada de exuberantes centros comerciais (os shopping centers), grandiloquentes supermercados, luxuosas lojas, desfiles de moda... O que muda é a qualidade dos objetos consumidos, bem como o olhar e a maneira de os consumir.

Mais do que seguir uma determinada moda, antes imperativa e dominadora, instala-se um mosaico plural de modas diversas. Coabitam, lado a lado, quase em todos os setores sociais, moda alta e moda baixa, o original e a cópia, o “gosto” e o “não gosto”, (kistch). Ao invés de estabelecer diferenças e limites nitidamente demarcados, desaparecem os critérios hierárquicos de pertença social ou a vontade de distinguir-se. Impera, em vez disso, um consumo estético fluído, versátil, convivial, onde os estilos se misturam. Vale o desejo imediato, o prazer do momento, o desfrute mágico do presente – o que leva ao culto do efêmero, do volátil, do virtual. O importante é “estar numa boa”!

O capitalismo capta as várias sensibilidades em jogo. Além de impor a “moda do momento”, através de um marketing cada vez mais pesado e apelativo, é capaz de estetizar outros gostos menos “nobres”. Tudo se converte em arte e esta transfigura-se em espetáculo. Daí a produção e venda programada de objetos imateriais: viagens, sensações, experiência inéditas. A cidade, o centro comercial, a loja e o supermercado – tudo é cuidadosamente preparado e iluminado para a grande encenação. Mais do que comercializar “coisas”, compra-se e vende-se “gostos e emoções”.

Mosaico de gostos, entretanto, muitas vezes converte-se em verdadeira cacofonia. Cacofonia social, política, econômica e cultural do mercado livre. É o que se deduz, por exemplo, dos noticiários radiofônicos ou televisivos. O sensacionalismo espetacular toma o lugar do fato conciso, concreto e coerente. O subjetivismo de quem apresenta a notícia e de quem a consome não deixam lugar ao objetivismo jornalístico. O ruído substitui a comunicação.

Roma, 20 de janeiro de 2017.

*Alfredo J. Gonçalves é Superior dos Missionários de São Carlos.

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