Em entrevista, o pastor Ariovaldo Ramos, analisa assuntos polêmicos como crime organizado, legalização das drogas e antipetismo.
Por NINJA Mídia
A ascensão do protestantismo no Brasil é um fenômeno eminentemente urbano. O crescimento se explica, em grande medida, pelo acolhimento que a igreja consegue dar à base da pirâmide social: os não-brancos, as mulheres, os pobres. Trabalho que a esquerda brasileira deixou de lado desde que alcançou o executivo, se afastando das periferias e deixando espaço para um projeto de direita conservador e moralista.
“O que move a história é a religião” decretou uma vez o historiador britânico Arnold Toynbee, reconhecido por afirmar premonitoriamente o fim da União Soviética pela inexistência de uma fé que sustentasse sua ideologia.
O projeto de poder da ‘Nação Evangélica’, capitaneado pela Igreja Universal do Reino de Deus, acaba de vencer as eleições em uma das maiores cidades brasileiras com uma mensagem popular e uma teologia que entende na prosperidade e no dinheiro a bênção divina.
Crime organizado, legalização das drogas, diversidade sexual, o antipetismo e a resistência evangélica são alguns dos temas que a Mídia NINJA procurou compreender ao entrevistar o Pastor Ariovaldo Ramos, ex-presidente da AEVB (Associação Evangélica Brasileira) e um dos fundadores da potente Frente de Evangélicos Pelo Estado de Direito, uma resposta ao grande número de fieis expulsos de suas igrejas por criticarem o golpe de estado em curso no país.
Os evangélicos no Brasil
Pastor Ariovaldo: O avanço do protestantismo tem duas respostas: uma é a do fiel, que vai dizer “é Deus”. Outra possível, que não anula Deus, é a de que esse é um fenômeno eminentemente urbano, em que 85% do povo brasileiro mora na cidade.
Os Evangélicos no Brasil são um grupo crescendo desde a década de 1980: multifacetado, com muitas denominações e unidades independentes, com uma teologia rarefeita e, portanto, sem um discurso único, unidos basicamente pela confissão que Jesus Cristo é o único salvador. Como a maioria é pentecostal, vem da lógica que são batizados pelo Espírito Santo.
No entanto, as confissões de fé não são equânimes: há um número de evangélicos que se reconhece como tais, mas provavelmente não se encaixam em muitas doutrinas protestantes. É um movimento popular crescendo na base.
Em 1996, o Instituto de Estudos da Religião detectou que o movimento evangélico tinha chegado à base da pirâmide, e isso é um fenômeno. É a primeira vez na história moderna que uma fé estrangeira - precisamos lembrar que a fé evangélica como a gente conhece chegou aqui no século XIX - consegue chegar na base da pirâmide. Quando você consegue chegar lá, mexe com a cultura, pois ela é preservada na base.
Os evangélicos chegaram lá através dos pentecostais, e esse movimento explodiu. Os ‘históricos’ [protestantes tradicionais] têm uma definição mais conceitual, já os ‘pentecostais’ têm uma definição mais empírica, uma experiência que traz manifestações visíveis, notórias e perceptíveis.
Isso é o que eu diria dos evangélicos: é uma teologia muito rarefeita e multifacetada.
Há outra coisa que une: a figura do pastor. Sua liderança é muito forte e a fidelidade a ela também. Isso é menor nos históricos que vieram da reforma protestante, mas mesmo entre eles essa força institucional do líder começou a ganhar força. A maioria consegue esmagar a minoria e a força pentecostal é gigantesca em número, presença e volume.
Nós moramos em 200 cidades que são as que têm entre 150 e 200 mil habitantes, e o homem urbano é um homem de migração, ele saiu de sua localidade natural para buscar uma oportunidade fugindo de ‘N’ problemas que o Brasil tem e conhece, seja ambiental, da seca, ciclos climáticos ou mesmo a grilagem de terras, entre outros.
O homem rural foi sendo expulso: cerca de 40% a 50% das terras brasileiras estão com 2% da população, e onde está esse povo rural? Nas cidades. A cidade desassocia o ser humano da sua fonte primeira de construção de identidade, porque ele não está mais em um ambiente de segurança, não está mais no ambiente familiar, não está mais na região rural, não é mais “o filho do seu João”, agora ele é um número.
Quando chega à cidade precisa de comunidade e de acolhida, precisa ser reconhecido através de um nome. Então constrói comunidades do jeito que ele é, por exemplo, ele toma cachaça no mesmo bar, compra pão na mesma padaria, passa para ler as manchetes de jornal na mesma banca, anda no mesmo ônibus, no mesmo horário, e assim vai criando uma comunidade, alguém que o reconheça e que saiba dele, e nesse sentido a igreja evangélica é imbatível.
Quando ele entra na comunidade e é acolhido como um ser humano, é chamado pelo nome, recebe palavras que o dignificam e deixa de ser um sujeito perdido na cidade para ser um potencial de Deus, isso recupera a dignidade dele. Agora não é mais alguém da drogadição, do alcoolismo: agora tem uma comunidade, tem gente que ora por ele, gente que torce por ele, gente que o abraça.
Ele muda a forma de vestir, ascende socialmente.Pode ser obreiro, evangelista, líder, pastor. Em que outro lugar da cidade ele consegue isso? Que outro lugar do estado permite isso? Onde essa elite subdesenvolvida no Brasil, que acha que a nação é só deles, permite um espaço desse? Não tem jeito, não tem como competir com isso. Lá o cara volta a ter nome, e mais, se ele tiver experiência com Deus, passa a ser referência, é o cara que fala com Deus, o cara que tem conhecimento, que cuida das crianças, é a “dona Maria” que tem uma oração poderosa, por exemplo, e com isso não tem como competir, não tem instituição nenhuma que possa o fazer.
Os evangélicos são os mais pobres. As pessoas pensam que os evangélicos são homens, brancos e ricos, mas os que são evangélicos são os não-brancos, os pobres e as mulheres. Mais de 60% da igreja são mulheres e negras. As crianças são atraídas porque tem lugar onde elas são amadas, recebidas, há uma programação para elas, tem música, enfim, é a ideia do Cristo de acolhimento.
A maioria das igrejas evangélicas está na periferia, ou seja, na base pegou. Faltava a esse grupo uma teologia mais elaborada que conseguisse perceber a face progressista da fé cristã. Por isso cresce tanto, independente da pessoa ter ou não um encontro com o Cristo, porque ela tem um encontro com o ser humano, que é uma coisa que muito dos intelectuais custaram a perceber.
Na igrejinha da periferia, a proposta é que a pessoa tenha um encontro com Jesus, com Deus e com o Espírito Santo e a trindade. Mas se não tiver esse encontro, vai ter um encontro com o ser humano, e dessa forma recupera sua noção de humanidade. Isso faz muita diferença em um povo alijado de seus direitos, oprimido, sem perspectiva em uma nação em que a lei não é séria e os acessos são negados.
Quando chega na comunidade, tem acesso e conta com a força mais poderosa que é Deus, pode orar, pedir por justiça, misericórdia e ter uma esperança. Se você pega uma mulher negra não evangélica, jogada na periferia, e pergunta sua fonte de esperança, o que ela vai dizer? Que ela espera do estado? Dos homens? Da elite branca? Mas se você a encontrar e ela tiver se convertido, vai dizer: “Eu espero em Deus, espero em Cristo, tenho meus irmãos e eles oram por mim, eles cuidam de mim”, e esse é um elemento na fé cristã que ninguém se dá conta, principalmente os intelectuais e a esquerda.
A ‘Nação Evangélica’ e o projeto de poder
Pastor Ariovaldo: A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) vem crescendo no poder, haja visto que eles descobriram o que o governo Lula não conseguiu descobrir a tempo, que para vencer no mundo moderno, você precisa ter a mídia. Você não precisa ter exércitos. Se tiver a mídia, tá feito. Eles sempre souberam disso e correram atrás como um sedento corre atrás de água. A sociedade moderna é uma sociedade midiática.
Você quer o poder? O que precisa? A mídia. Qual mídia? A TV. Pensamos que havíamos avançado ao colocar 94% das crianças na escola, mas isso é só o começo. Tem que aperfeiçoar o ensino até o cara chegar em um estágio de crítica. Se não está em um estado de crítica, não foi educado. Por isso essa historia de ‘Escola Sem Partido’ é um crime contra a educação. Não porque priva o sujeito de certos conhecimentos, mas porque retira dele a capacidade de chegar a um estágio de crítica
Esses caras têm essa noção, têm uma mensagem popular, uma teologia em que avaliam o capitalismo e que diz: a bênção de Deus é financeira, é a prosperidade. Os -cristãos- históricos demoraram para reagir, porque são muito influenciados pelo calvinismo que pregava isso de alguma maneira. No calvinismo, uma das provas que você era um eleito de Deus é o quanto você prospera.
A Universal sabe exatamente o que está fazendo, tem uma visão muito clara. O Pastor Caio Fabio uma vez falou que o Edir Macedo disse a ele: “você usa a isca para o peixe que você quer pegar”. Isso é negócio complicado se você tem um povo semianalfabeto, analfabeto funcional, destituído dos seus direitos, com um estado ausente e uma elite voraz.
Eles têm um projeto claro de poder e começaram incendiar isso, ou seja, a disseminar. Até começarem, a maioria do evangélicos não pensava assim, inclusive tinha uma certa ojeriza a movimento com questões político-partidárias, mas depois assimilaram a mesma lógica e começaram a chamar os deputados e vereadores de “nossos missionários na política”.
Isso foi ganhando um certo utilitarismo, porque para os evangélicos o missionário é um cara que tem uma função, de modo geral, de anunciar o Cristo, mas agora significa levar os interesses da igreja. No primeiro momento esses interesses eram para o seu funcionamento na cidade, ou seja, não atrapalhar a gente, não pedir para a gente abaixar o som, não chatear a gente porque fechamos a rua, não ficar em cima porque não temos todo estacionamento que a gente precisa.
Depois muda pro discurso de “tomar o país”, e esse discurso nasce na IURD e nas lideranças neopentecostais, com um sonho de uma nação evangélica, que não é só brasileira, é internacional. Começam a mostrar vídeos de como é uma cidade, uma nação que os evangélicos governam. Então o pessoal diz: “É isso aí, Brasília é só corrupção, os coronéis mandavam em tudo, eles expulsam a gente da terra, mandam a gente embora. Temos que ter uma nação evangélica!”.
Isso evolui para uma pauta moral. Quando chega nesse ponto não é só uma questão de ter uma nação evangélica, mas é uma questão de salvar a família. Aí vem o Crivella com o discurso: “O Paes cuidou da cidade, eu vou cuidar de você”, mas você fala para os progressistas e eles não querem saber. Vocês não sabem o que é o nosso povo, sua carência, o cara é explorado, explorado e explorado, e não tem saída. A Mais Valia não leva a mais nada a não ser à escravidão.
Mas a quem vão pedir socorro? Tem que pedir socorro a Deus. Aí vem o pastor que acredita mesmo e diz: “Vem para Deus, Deus é uma realidade, vamos lá, coragem!”. Mas tem outro que acredita em Deus, mas é um “pelego”, prepara o povo para ser explorado, e o povo não percebe, pois está sob acolhimento.
O Crivella representa, na minha opinião, essa visão de acolhimento e a pauta moral. Chego a me perguntar se ele realmente tem um projeto político. Acho que ele é um homem inteligente, como um senador teve participações interessantíssimas, discursos interessantíssimos, ele não caiu de paraquedas, construiu uma história.
Agora a grande pergunta é se ele vai conseguir fazer a ruptura entre o púlpito e a tribuna, entre a cadeira do bispo e a cadeira do prefeito. Se vai perceber que tem uma pauta comum e não pode ter pautas distintas. Porque senão vai ferir direitos civis. Ele vai se lembrar que um Estado laico de um lado não legisla sobre a fé do outro lado? Não pode permitir que a fé incida sobre a legislação.
Agora, ele é homem da IURD, que é a dona da Record. Se eu fosse os caras da Globo, pensaria duas vezes antes de saber como o Rio vai ficar agora. O Crivella é um cara muito interessante e ter sido indicado pela Universal é um golpe de gênio, pois é o cara mais bem preparado de lá, de todos evangélicos. Ele demonstrou isso em seu mandato no Senado e na campanha.
Enquanto prefeito, ainda deu muita sorte, pois se elege em um Estado falido, qualquer coisa que fizer será nivelada de baixo e assim vai brilhar. O PMDB conseguiu a proeza de destruir um Estado como o Rio de Janeiro e mesmo assim assumiu o controle do país. É uma coisa assustadora.
A direita nunca teve o povo, principalmente depois de mais de 20 anos de ditadura. Os pastores puseram o povo na rua, porque o preconceito dos intelectuais (da ala dos progressistas) em relação aos evangélicos, isolou esses intelectuais. Por causa do preconceito, eles zombavam dos caras. Isso é um problema do materialismo exacerbado: quando o materialismo assume, deixa de ser uma metodologia de administração da história para se tornar uma teologia.
A esquerda e a religião
Pastor Ariovaldo: Toda religião caminha para o extremismo. São Thomas de Aquino nos levou a pensar que os extremos se encontram. Então era inevitável. Isso gera o que? Preconceito.
Onde é que o preconceito é mais forte? Quando ele é exercido em nome de Deus ou da negação de Deus, que dá no mesmo. São duas faces da mesma moeda. Isso isola esse povo que está no looping, na base da pirâmide. É na base da pirâmide que a gente canta samba e forró pé de serra, não é essa “bobajada” da classe média não, é lá na base. E quem está na base?
Os movimentos sociais recuaram porque acharam que tinham tomado o poder. Cometemos o erro de achar que em um país semipresidencialista ganhar o Executivo era tomar o poder. Ficou claro no golpe que não é. Então, o pastor está lá, é autoridade, ponto. Ele é uma dessas autoridades inquestionáveis, porque é quase um oráculo divino. Se ele subir um pouco e falar: “assim disse o Senhor”, acabou, amigo. Acabou! Você nunca vai mexer naquilo, porque tudo que você precisa fazer em relação aqueles que têm fé é colocar na cabeça deles uma dúvida que é: “e se for Deus mesmo?”. Ninguém quer brigar com Deus.
Mas as pessoas não perceberam isso. A gente leu Marx, tá ok, mas a gente não leu Toynbe. E o Arnold Toynbee dizia que o que move a história é a religião. A gente tinha que ter perguntado as duas coisas e entendido que tem uma outra força aqui. A força econômica não é hegemônica: tem uma outra força que não pode ser desprezada, e quando surge no púlpito vira verdade. Se na TV é um caminho epistemológico, no culto é aletea, ou seja, verdade, como dizem os gregos. Na TV é epistêmico o caminho para chegar à verdade, mas no púlpito é aletea, a excelência da verdade. Então acabou, não tem mais o que falar.
Esse púlpito foi conhecido pela mídia de que o mal moral da nação era o Partido dos Trabalhadores. Que o PT atentava contra nossa moral. Por que isso aconteceu? Porque nossa teologia foi adulterada, a fé cristã não é moralista. A fé cristã tem moral, mas não é moralista, porque a fé cristã acredita que toda salvação é uma obra da bondade de Deus e não do mérito humano.
Onde o mérito está excluído, o moralismo também está, porque não tem nada que eu possa fazer que possa melhorar minha relação com Deus. É o ato bondoso, misericordioso e gracioso de Deus: não tem nada a ver com mérito humano, mas com a capacidade divina de perdoar. Isso foi adulterado por causa da cultura brasileira.
Evangélicos e o AntiPetismo
Pastor Ariovaldo: Começou assim, a mídia começou a propagar que o Partido dos Trabalhadores estava fomentando a imoralidade. Não é verdade, o Partido dos Trabalhadores nunca trabalhou com essa lógica.
A primeira coisa que aconteceu foi disseminar a ideia de que o governo popular era comunista. De forma rarefeita a mídia aqui e ali não ensinava, não trazia os dados, trazia só as versões. Então ficou aquela coisa de comunismo.
Os evangélicos têm um medo, porque a gente cresceu ouvindo sobre a perseguição que os comunistas faziam aos cristãos, e na verdade era viés do movimento, mas dependendo de como a notícia chega, é a que fica. Os evangélicos temiam. Não tem nada a ver, por enquanto, com questão econômica, a livre iniciativa ou com capitalismo, tem a ver com “eles matam os cristãos”.
Depois, quando os evangélicos começaram a elaborar a pauta moral, principalmente contra a comunidade LGBT, o pessoal começa a disseminar que o governo popular não só apoiava essa comunidade de forma explícita, como tinha cartilhas ensinando as crianças a optarem por outro gênero.
Me lembro muitas vezes que as pessoas me falavam isso: “como você apoia um negócio desse?”, e eu respondia: “traz a cartilha, deixa eu ver”. Nunca chegou a cartilha.
Isso foi aquela angústia, “o que vai acontecer com meu filho”. A pauta moral foi ganhando força. Qual a única forma de deter a imoralidade dos pagãos e dos ateus em uma nação evangélica? Esses caras estão prontos para ouvir qualquer coisa que leve você a essa pauta moral. Além disso, líderes expressivos da fé evangélica começaram a dizer explicitamente “não votem no Partido dos Trabalhadores”.
Quando o Lula chegou, foi diferente. Primeiro porque o Lula era um cara do povo. Segundo porque o país estava falido. Hoje todo mundo, não sei porque, venera o Fernando Henrique Cardoso (FHC), mas quando o FHC estava terminando o mandato dele, a gente estava às escuras no apagão.
Não conheço nenhum jeito mais efetivo de sabotar uma nação do que apagão. Você deixar, mesmo que um dia, 18 estados sem luz. Sabe quanto isso custa? Sabe quanto custa uma linha de voltagem interrompida? Sabe quantos caras têm gerador próprio? O nome para isso é sabotagem, em qualquer lugar do mundo. Faltou brio para mídia dar nome aos bois. Além do cara desvalorizar a nossa moeda em 90% da noite para o dia e reduzir nossos ativos a quase zero e vender nossos ativos a preço de banana, o cara deixa a gente sem luz.
Então você tem um Estado falido e as massas alvoroçadas, e chega o Lula. O Lula é cara do acordo trabalhista, da ideia de que é possível haver mais acordo entre proletário local e proprietário local do que entre as internacionais, sejam socialistas ou capitalistas.
No primeiro momento o Lula consegue fechar esse acordo, porque convence os empresários de que o cara estava vendendo tudo, que se não apoiassem, não teriam nada, pois estavam falidas a construção naval, a siderurgia em desespero, e sofrendo apagão. Por isso ele consegue a formulação trabalhista.
Os evangélicos tinham uma certa desconfiança, mas a gente é majoritariamente pobre, feminino e negro. Nossos pastores estão em contato direto com a pobreza, com a miséria, aí vem um cara que emana do povo, que fala sobre a fome e chora, então todo mundo se une. “Precisamos salvar esse país, porque nosso ex-presidente só faltou entregar a chave”.
Por isso deu tanto trabalho para demover a figura do Lula do governo popular. Isso só acontece quando a Dilma sobe ao poder e se afasta das bases. Quando a Dilma se afasta dos movimentos de base, também se afasta dos movimentos da periferia, que são majoritariamente evangélicos. Se afasta do MST, do MTST, que está cheio de evangélico.
A falta de diálogo abriu um vazio ideológico que podia ser preenchido por qualquer um. Foi criando na cabeça dos pastores a ideia de que tinham sido enganados. Eles que até então ouviam o grupo A, começam gradativamente a ouvir o grupo B por causa da distância. Não foi falta de gritar.
Não bastasse isso, tem toda uma articulação da direita, muito bem pensada. A direita sabe exatamente com quem falar, ela não vai conseguir nos caras engajados politicamente, mas nos caras que têm uma preocupação moral. O moralismo segrega, o ser humano deixa de ser digno pelo fato de existir, ele precisa fazer alguma coisa para ser digno.
A fé cristã ensina que o ser é humano porque ele existe, não importa a forma, mas quando você briga por moralismo, ele exige que o cara se prove digno e qualquer movimento que exige de outro ser humano que ele se prove digno, está contaminado, é só saber falar.
Quando eu olho para o que aconteceu no Brasil, fico pensando que você tem verdadeiros mestres da comunicação por trás de tudo isso, que tem um negócio pensado e organizado. O fato do governo Dilma ter se afastado das bases sociais, deixou o governo popular sem a única força que sempre teve, que é a mobilização do povo, contando que o pessoal da coligação era confiável, o que já se sabia que não era, então o púlpito ganhou um contorno de verdade incontestável, ele já é quando fala das coisas da fé, daí a pular para as coisas da política foi um detalhe.
Crime Organizado e Legalização das Drogas
Pastor Ariovaldo: Sempre tivemos a religião com poder de barganha, aprendemos com o grupo fundador da nação a negociar com as entidades da floresta. Num outro grupo a gente aprendeu a negociar com os santos, em outro com os exus e orixás, sempre barganha. Oferece alguma coisa e recebe em troca.
Quando os pentecostais chegaram na base da pirâmide, eles vieram oferecendo poder, não necessariamente barganha, mas poder, que era o poder da oração. Se você está preocupado com poder, quem tem poder é Jesus Cristo: “Vem aqui que nós vamos orar e seja lá o que tiver acontecendo com você será resolvido”. Foram conquistando gente assim.
Aí chega a teologia da prosperidade, uma teologia de barganha, que diz que se você der, Deus devolve cem vezes mais. Isso é barganha. Ela se une à religião brasileira que é uma religião de barganha e de busca de poder. Esses caras tentam convencer todo mundo que o poder está conosco.
Agora, se você é um sujeito que vive da violência, a única coisa que você quer é fechar seu corpo. Quer ter a certeza de que os caras vão atirar em você e não vão te acertar, e se acertar você não vai morrer. Significa que você está buscando o luminoso, o sobrenatural, porque naturalmente qualquer ser humano baleado está complicado. Você tem que decidir onde está, já decidiu que não está com os católicos, e agora você está decidindo que não está com religiões de matrizes africanas, aí começa a ficar simpático com evangélicos. Tem pastor que apoia isso? É possível, eu não boto mais a mão no fogo por um bocado de cara aí, mas no discurso dificilmente.
O cara não consegue sair de lá, porque está naquele ambiente, e a questão da droga é uma questão que aqui no Brasil a gente não enfrenta, só criminaliza, não para para discutir que a droga é antes de tudo uma questão de saúde pública.
A droga confere poder a uma determinada casta e temos que achar uma forma de derrotá-la. O estado brasileiro opta pela forma norte-americana, que através do enfrentamento bélico. Não dá pra competir com um cara do enfrentamento bélico.
A outra opção, que ninguém quer conversar, é como a gente faz para tirar a droga da mão do traficante? Como faz para o estado assumir a responsabilidade por isso e começar a ajudar o dependente químico? Porque hoje eu ajudo uma pá’ de drogado, mas não tenho acesso a ele, vou atrás o tempo todo. E se isso não tivesse na mão dessa casta, tivesse na mão do estado?
Sei que falar em legalização é muito complicado, não é simples, mas tô dizendo que tem um problema aqui e o jeito como estamos resolvendo o problema não está resolvendo. Se a gente achasse outro jeito em que a gente tem acesso ao dependente, em que o cara, pra ter o que quer, tem que passar por nós, a gente pode dizer: “é isso mesmo que você quer fazer da vida? Quer perder a capacidade de raciocínio?”, ninguém enfrenta isso.
Provavelmente o cara que me vê falando isso, me estigmatiza. Mas o fato é: tem gente morrendo na rua. 60 mil pessoas morrem por ano aqui, grande parte delas por causa da violência das ruas. Outra por causa da violência policial, porque se você vai para o enfrentamento bélico, tende a aumentar o poder discricionário da polícia, ou seja, dá licença para o cara matar. Se você não faz isso explicitamente, faz implicitamente. Hoje a igreja só atinge o usuário, não consegue mexer com a estrutura, tem um montão de clínica, de casa lar, casa refúgio etc.
Esses traficantes não são evangélicos na acepção do termo, pois não seriam traficantes, mas eles aceitam a oração dos evangélicos, e os evangélicos oram por quem quer que seja. A lógica deles é que o poder está na oração dos evangélicos. Aqui vem a terceira colocação, que é: você não pode dar espaço ao que não é divino, ao que não é de Deus, porque se você der espaço ao que não é de Deus, Deus não abençoa você.
No discurso fica a desconfiança se aquela religião é de Deus. O cara está no poder, governa como lhe deve, e quer sobreviver, quer ficar vivo, e para ficar vivo precisa de um poder sobrenatural, e chegou à conclusão de que o poder espiritual e sobrenatural é dos evangélicos, logo tudo o que for contrário tem que sair daqui, porque Deus pode ficar bravo.
É uma autodefesa, porque houve uma deturpação da teologia, que é um Deus de barganha, um Deus que só abençoa a quem o serve, que é exatamente o contrário que diz a bíblia. A bíblia diz que Deus faz vir a chuva sobre justos e sobre injustos, cuida de todos os homens, e infesta todos os homens com seus atributos comunicáveis.
É totalmente contrário do discurso da cultura religiosa brasileira da cultura de barganha, que é um jogo de interesses. Essa adulteração da verdade é o empobrecimento da teologia cristã.
A fé evangélica teve um problema no Brasil: cresceu demais e muito rápido. Nós não tínhamos mais tempo para formar líderes, pastores, nem seminários suficientes. Quando chegou uma teologia capitalista que fomentou essa coisa do empreendedorismo pessoal e individualista, pipocou os ministérios particulares.
Isso é uma somatória, não é uma coisa simples, tem uma complexidade cultural e antropológica. Temos que nos unir, teólogos, antropólogos, sociólogos e pesquisadores para entendermos esse fenômeno e começar a trabalhar.
Eivado e contaminado pelo preconceito, você não analisa nada. O preconceito já chega atacando e destruindo o outro porque ele não pensa como eu, mas o outro está na base da pirâmide. Ele está lá e você não, você vai lá uma vez por mês, e ele está lá em todas as esquinas diariamente, todas as noites, com gente vindo de tudo quanto é canto, com acolhimento, socorro, comida e cultura. Ou você começa a conversar com os caras que ou vai ser derrotado.
Família e Comunidade LGBTT
Pastor Ariovaldo: É uma questão muito complexa para os evangélicos, porque temos uma visão muito clara de uma família heterossexual, isso é muito claro na fé cristã. Temos uma grande tendência à misericórdia, entretanto os cristãos, principalmente os pentecostais, os neopentecostais e mesmo os históricos foram convencidos de que a comunidade LGBT estava tentando interferir na liberdade de culto, em grande parte por causa da PL 122, porque entenderam que ela determinava que um pastor não poderia se recusar a fazer um casamento homoafetivo, e que, se recusasse, seria contra a lei.
Isso nunca iria acontecer, o Brasil é um estado laico, a laicidade é cláusula pétrea, algo assim é inconstitucional, ninguém pode fazer um projeto de lei no Brasil legislando sobre religião nenhuma. A única coisa que está vetada à religião no Brasil é a tentativa de se impor a toda a nação pelo instrumento da lei, que é exatamente o que esse novo movimento neopentecostal ainda não se deu conta.
As pessoas não se deram conta disso e a comunidade LGBT nem sempre teve os melhores porta vozes, então começou a agressão de ambas as partes, em um ambiente de agressão mútua, [a disputa] vai ser uma relação de poder.
Resistência Evangélica
Pastor Ariovaldo: No primeiro momento a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito é uma resistência ao golpe, pura e simplesmente. A gente se deu conta de que o que estava sendo processado no Brasil era um golpe de Estado e reagiu em favor da democracia e do respeito ao voto. A acusação contra a presidenta era absolutamente infundada e de que havia uma urdidura qualquer aqui.
No primeiro momento foi resistência, depois acolhimento, porque um grupo considerável de evangélicos começou a ser banido das suas comunidades, por denunciar que nós estávamos diante de um golpe de Estado. A liderança pastoral se bem trabalhada é promotora de avanço, mas se mal trabalhada é promotora de ditadura.
Então o movimento da Frente foi de acolher essa gente, e de dizer que elas não estão sozinhas e que mais gente como elas estão espalhados pelo país, e não abriu mão da fé cristã, e sabe com clareza que estamos diante de um golpe de estado e que temos que reagir.
A outra razão foi a de que nós tínhamos que evoluir para um movimento de Advocacy, porque a gente começou a se dar conta de que os golpistas estavam destruindo o estado social e relativizando a exigibilidade do direito, e toda uma construção de décadas seria solapada.
Sentimos a necessidade de ter uma base para sair às ruas para apoiar a sociedade civil democraticamente organizada e se unir a ela na resistência ao golpe. Hoje estamos evoluindo nessa direção, a gente já conversa com a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo e de certa forma já somos reconhecidos como frente de resistência entre os evangélicos.
Os evangélicos que tomaram essa posição começaram a achar então seu nicho, o seu lugar de acolhimento e de engajamento. Foi assim que começou a Frente. A gente, claro, sonha com a conversão dos irmãos que foram ludibriados por esse discurso contaminado pela voracidade da direita e da elite branca,
Agora a gente está pensando em como a fazer um movimento dentro de casa, mais pedagógico, mas esse é o passo que estamos pensando em como começar, porque imagina que você é crente, está lá na sua igreja, cresceu lá, aprendeu tudo com o pessoal que está lá, e aí tem um movimento no seu país e você começa a tomar posição contrária, e vê seus líderes em outro sentido. Até aí tudo bem. Mas daqui a pouco seu líder diz que se você pensa diferente dele não pode ficar.
Essa é a situação. Ela nasceu do movimento de pregadores do que a gente chama de Teologia da Missão Integral, que é uma teologia libertadora, com ênfase na teologia do Reino de Deus. O alvo do Reino de Deus é a justiça, que é uma realidade em que todos desfrutam igualmente de tudo que Deus dá e doa, portando uma realidade igualitária.
A gente começou a pregar isso e dizer que a igreja tem que abdicar da teologia da prosperidade, do amor às posses e voltar às práticas da partilha, do desenvolvimento sustentável e comunitário. Nós estamos aqui para sermos relevantes na comunidade e fazermos como Cristo, que se responsabilizava pelos enfermos.
O movimento começou a crescer e se difundiu em grande parte do país. Quando veio o golpe de estado, e junto com o golpe de estado, com toda essa construção do discurso. Um grupo de caras que concorda que a fé cristã é uma fé de partilha não conseguiu discernir que esse discurso era um discurso que era atentava contra tudo o que ele estava assimilando.
Decidimos escrever um manifesto que teve milhares de adesões, mas também tivemos rachaduras. Diante das adesões e das rachaduras, decidimos ir para uma ação mais pragmática, incisiva e engajada, e nasceu a Frente. Hoje temos mais de mil pessoas que aderiram das mais diversas denominações em 10 estados, mas o potencial de crescimento é gigante. Entre simpatizantes e pessoas que interagem com a frente somamosmais de duas mil pessoas.
Graças a Deus está crescendo e isso para gente é ótimo, porque eu sou pastor e sei o que significa para um cara dizer, “Pastor, gosto muito de você, mas não posso concordar com você, eu tenho de ir onde a minha convicção está dizendo que Cristo estaria”. É muito difícil dizer para um pastor que ele está em um lugar onde Cristo não está, é quase impensável. O fato desse grupo está crescendo significa que nós começamos uma bola de neve.
Ninguém quer sair da comunidade. A comunidade é um local de convivência, as pessoas se conhecem, se gostam, se visitam. Não é um encontro que você chega lá em um domingo assiste e vai embora. Você está na casa do irmão e o irmão está na sua casa, você vai com ele ao cinema, vão jogar bola juntos.
Para você sair disso tem que haver uma ruptura muito forte, tem que se sentir agredido para além do seu nível de convivência pacífica e tolerante, em que você diz: “não quero sair, mas você está me obrigando a ir embora”, e o pastor responde, “você tem que ir embora”. Isso é uma agressão, porque é ideológico, e trazer a ideologia para dentro da confissão de fé é uma agressão profunda à fé cristã, e foi o que aconteceu no Brasil, ou está acontecendo. Essas pessoas estão sendo alijadas e foi por isso que a gente criou a Frente, para dizer: “você não está sozinho”.