Mídia comercial e mídias comunitárias e populares trataram a questão do impeachment de Dilma Rousseff de formas distintas.
Por Elaine Tavares
Antes de qualquer coisa vamos estabelecer um consenso sobre os conceitos. O que é a mídia comercial e o que são as mídias comunitárias, populares e os ativistas digitais. Bom, a mídia comercial reúne os grandes meios de comunicação, empresas privadas que usam o espaço público – com as TVs e Rádios – e empresas privadas que atuam no espaço privado: os jornalões dos grandes centros e os jornais médios e pequenos dos municípios menores.
A mídia comunitária e popular é composta por um conjunto bem diverso de meios. Espaços privados de gente que tem uma posição política mais avançada e que organiza blogs e páginas pessoais, espaços públicos comunitários – o caso das rádios e TVs comunitárias – espaços sindicais e do movimento social, espaços de grupos organizados de produção de informação, espaços no éter de pessoas físicas que de forma isolada produzem e distribuem informações.
Pois bem, agora vamos ver como esses dois blocos se comportaram durante o processo de discussão do impedimento da presidenta Dilma Roussef. O primeiro, que é reconhecidamente o braço armado ideológico da classe dominante, fez o que lhe é comum: defender os interesses dessa classe. E quais eram? Criar um consenso nacional sobre a necessidade da saída da Dilma e consolidar a derrubada do PT do governo. Para tanto usaram o tema da corrupção, useiro e vezeiro nos processos de golpe. Como já existe um consenso generalizado na sociedade de repúdio à corrupção, apelar a isso é sempre uma boa estratégia. Então, começaram as reportagens sobre o tema cuja intenção principal era implicar a presidenta. Nenhuma ligação sobre o fato de ter sido esse governo o que deu as condições para que a Polícia Federal pudesse aprofundar as denúncias e chegar aos verdadeiros implicados.
Se observarmos com cuidado vamos ver que desde o final das eleições que acabaram conduzindo Dilma ao segundo mandato, já teve inicio a cruzada anti-PT. O tal do terceiro turno, que nunca se encerrou. Não houve um dia que a mídia comercial não tenha feito alguma matéria que levasse a essa formação de consenso: o PT era ruim para o país. Os casos de corrupção que foram sendo levantados só serviram para consolidar esse mantra. Junte a isso o arrefecimento do “espetáculo do crescimento” e estava formado o caldo perfeito paro que veio a seguir.
A queda de braço do governo com Eduardo Cunha, por exemplo, que foi o estopim do golpe, teve um tratamento totalmente manipulado. Em nenhum momento a mídia comercial deixou claro que a presidenta se recusava a blindar o então aliado que estava – ele sim – acusado de corrupção. E foi justamente essa recusa em defender Eduardo na comissão de ética que levou à vingança do mesmo, com o pedido de impedimento de Dilma. Assim, estava virado o jogo e a presidenta foi quem começou a aparecer como corrupta.
O bombardeio na mídia comercial para implicar Dilma foi feroz. Quem não se lembra da conversa gravada com Lula, divulgada no Jornal Nacional – e em todos os grandes jornais televisivos - como a prova definitiva da culpa de Dilma? E o que havia na gravação? Nada. Ocorre que ninguém prestou atenção ao conteúdo ou ao contexto da fala. Todo o cenário espetacularizado foi montado para criar uma sensação: a culpa de Dilma. O tom da voz dos apresentadores, os trechos fragmentados incompreensíveis e inconclusivos. Era o carnaval da corrupção. O consenso já estava criado. Ninguém precisava escutar com atenção a conversa para saber que ali estavam as provas. E as gentes foram às ruas pedir o fora Dilma, inclusive usando a última frase da conversa entre ela e Lula, quando o presidente se despede e diz: tchau, querida. Isso acabou virando o mote da campanha do impedimento. Orientadas pelos jornais nacionais as pessoas batiam panelas e saíam às ruas. Muitas sem saber, inclusive, que aquelas gigantescas manifestações estavam sendo organizadas e financiadas pelos mais “importantes” corruptos do país, liderados por Fiesp e outras entidades internacionais, também useiras e vezeiras em financiar golpes de estado.
Não foi sem razão que a manifestação do domingo que levou milhões às ruas pedindo a saída da presidenta, foi televisionada desde os primeiros momentos, ao vivo, por emissoras que jamais abririam espaço na sua programação para manifestações políticas. Pois essa se fez em tempo real na casa de outros milhões de brasileiros. Já a resposta dos movimentos sociais, dias depois, mereceu algumas notas, senão o silenciamento. Ou seja, a mídia atuava de maneira fundamental na construção de uma ideia, na criação de um consenso.
E a mídia alternativa? Qual foi o seu papel? Esses espaços atuaram como sempre fazem no trato com a notícia, buscando trazer as informações dentro do seu contexto para que as pessoas tenham noção da totalidade. Foi assim, nos chamados “blogs sujos” de jornalistas de esquerda ou progressistas, foi assim nas páginas de sindicatos e movimentos sociais e foi assim nos coletivos livres de produção de notícias. A outra versão, os fatos no contexto, as realidades destapadas.
Mas, toda essa gente – que desde sempre atuou na contrainformação – contou com uma ajuda inesperada. Os chamados ativistas digitais. Que são pessoas comuns, não necessariamente envolvidas em coletivos ou movimentos, que se agregaram a essa linha de divulgação das informações e passaram a atuar de forma intensa nas redes sociais. Assim, de repente, todo o trabalho realizado por essa mídia alternativa, comunitária e popular, começou a ser viralizado, horizontalmente pelos ativistas. A rede passou a ser um espaço de contrainformação importantíssimo e passou a também mobilizar pessoas para atos de protesto, ou de apoio à Dilma.
Aqui é bem importante fazer uma relação com a chamada “primavera árabe”, na qual as mídias sociais foram bastante utilizadas, só de que maneira contrária. As pessoas reproduziam a informação que era criada pelas forças de desestabilização dos governos, financiadas pelas instituições golpistas internacionais. A fabricação do consenso foi de que lá, naqueles países, Argélia, Líbano, Líbia, Síria, estava nascendo uma revolução “popular” contra os regimes autoritários, quando na verdade, era uma ação violenta dos países centrais contra o nacionalismo árabe. Naqueles dias do que foi o grande inverno das populações árabes, as redes sociais eram usadas com maestria pelos “tanques de pensamento” do sistema capitalista mundial. É claro que os governos em questão não eram ilhas de paz e amor, estavam eivados de suas contradições, e é claro também que havia resistência popular, mas o que se viu nas redes – e que foram reproduzidos nas grandes cadeias de informação comercial – foram informações produzidas a dedo pelos think tanks.
É fato que no Brasil também tivemos o ativismo de direita, que foi grande e poderoso, com a ação articulada do Revoltados On Line e MBL, mas nesse campo eles acabaram, de certa forma derrotados, pois ainda que tenham arrebanhado milhões de seguidores, não conseguiram estabelecer o consenso nas redes sociais. O ativismo de esquerda enfrentou a máquina comercial e os tanques de pensamento da direita com uma ação coletiva, massiva, horizontal e articulada, e colocou o povo nas ruas. Manifestações gigantescas passaram a acontecer até o dia da votação do impedimento, e continuam a se realizar nesses dias todos de governo golpista. Impossível negar o papel fundamental dessa rede no processo de resistência.
Bueno, diante disso, do fato de que o ativismo digital foi decisivo para a articulação da luta nas ruas, surgem as alegações de que agora, o jornalismo não é mais necessário. Pois, se cada pessoa é um comunicador em potencial, não precisa mais da mediação do profissional do jornalismo. E, se a informação circula horizontalmente e em tempo real, tampouco se faz necessária a mediação – coisa que é papel do jornalista fazer.
Defendo contrário a essa tese e arrisco dizer que o jornalismo foi a grande estrela desse processo de mobilização popular. Sem ele - o jornalismo de verdade - não teria sido possível todo esse rastilho de pólvora que se espalhou pelas redes sociais. E o que quero dizer com “jornalismo de verdade”? É essa maneira de narrar a vida de tal forma que o leitor/ouvinte/espectador possa compreender o fato em toda a sua inteireza. Na prática, é a notícia como forma de conhecimento, tal qual ensina o teórico Adelmo Genro Filho, partindo de uma singularidade e dialeticamente passando ao particular e ao universal, permitindo ao que recebe a informação apreendê-la de forma totalizante. Ou seja, dentro de seu contexto geral.
Nesse sentido é importante observar que houve um casamento perfeito entre os ativistas da informação, que são esses que repassam informações fragmentadas, imagens em tempo real, fatos particulares, sem qualquer análise, e os velhos e novos jornalistas que, usando de toda essa trama de informações segmentadas, faziam as amarrações, apontavam análises da realidade e estruturavam as notícias de forma a oferecer a universalidade do assunto. Jornalistas como Paulo Henrique Amorim, Luis Nassif – para citar alguns mais conhecidos – aos quais poderia agregar jornalistas críticos que existem em todos os estados brasileiros, como eu e o Raul Fitipaldi em Santa Catarina, por exemplo, os coletivos de jornalistas como o Desacato, o Mídia Ninja e os Jornalistas Livres, e os blogs e portais de notícias comandados por jornalistas foram decisivos no processo que se contrapôs aos grandes meios comerciais. Então, o que isso significa? Que o jornalismo está vivo sim, e brilha, e desaloja, e transforma. O jornalismo não morreu como alegam alguns que se comportam ou como neo-ludistas – negando as novas formas de comunicação e buscando destruí-las - bem como os que pensam que agora qualquer pessoa que passa informação na rede é jornalista.
Não é.
O jornalismo é uma forma específica de produzir conhecimento que narra a vida de maneira a articular o que há de singular num fato com a universalidade que ele totaliza no contexto da história dos homens e mulheres. Essa amarração, essa análise, essa totalização precisa ser feita para que as pessoas não se afoguem no mar das informações que lhes chega todos os dias. Os ativistas, que hoje prestam esse inestimável serviço de divulgar as informações mais variáveis precisam se apropriar desse fazer, esse é o grande desafio para eles. Mas, ainda que não se apropriem, há outras milhares de pessoas que atuam com o jornalismo, fazendo isso, trabalhando em uníssono. Esse é um daqueles momentos incríveis, de mudança de temperatura do mundo. Temos que trabalhar juntos para fazer aquilo que o velho Marx apontava, quando também criou uma forma nova de ver o mundo: transformar a realidade para o bem dos trabalhadores.
Resumindo a ópera. A mídia popular, comunitária e os ativistas digitais fizeram a diferença nesse processo do impedimento. Informaram e levaram gente para as ruas na luta contra o golpe. Abriram caminhos por entre a selva de informações da internet e foram capazes de fazer frente aos barões da imprensa. Mas, a mídia comercial ainda é poderosa, vejam o consenso que ela conseguiu criar. Ela forte e não deve ser subestimada. Por isso precisamos seguir na luta por soberania comunicacional, que se plasma na seguinte proposta: a mídia livre precisa de um estado livre e uma comunicação sob o controle da maioria. Outro estado, portanto.
Não duvido nem um pouco de que a classe dominante já esteja atuando no sentido de enfraquecer – senão destruir – essa mídia libertadora que assomou no processo de impedimento. Um dos elementos que nos fazem pensar é a decisão do Facebook – que já abocanhou mais de um bilhão e meio de pessoas na sua rede – criando um novo serviço para que as pessoas sejam obrigadas a entrar diretamente nos sítios das grandes corporações midiáticas. Ou seja, para que um texto seja lido ele precisa estar numa plataforma de uma empresa conveniada ao face. Tudo isso porque a plataforma percebeu que as pessoas estão lendo pessoas ou blogs e não os meios, que tiveram uma queda de mais de 42% na audiência. Logo, esse setor – que nunca perde - está se rearticulando, se aliando às plataformas de rede, para derrotar a informação livre.
Então, o nosso desafio segue o mesmo: mudar a forma de organizar a vida para, então, mudar a forma de fazer comunicação. Construir o socialismo ou qualquer outro modo de vida que inventemos, que garanta não apenas vida boa e bonita para todos, mas também a informação livre, contextualizada e produtora de conhecimento. E, seja como for, o jornalismo seguirá, brilhando e se fazendo, tal qual ensinou Adelmo, livre da manipulação, oferecendo ao que lê/ouve e vê, a universalidade dos fatos.