O governo do presidente Macri pensa que o processo de integração deve ser aberto, por isso estão questionando o Mercosul. Desse modo, a integração, na concepção de Macri, deve ser com o mundo desenvolvido, abrindo totalmente as fronteiras, aponta o jornalista Washington Uranga.
Por Patricia Fachin
A divulgação recente do caso de corrupção envolvendo José López, ex-secretário do Governo de Cristina Kirchner, acirrou ainda mais os ânimos e o momento de turbulência política que a Argentina está atravessando. Cenário que é agravado pela crise econômica do país, que já enfrenta um índice de inflação que chega aos 42% e uma massa de desempregados que, segundo dados do governo argentino, está entre 25 e 30 mil pessoas, mas que para as organizações sindicais já alcança os 150 mil.
Conforme ressalta, em entrevista por telefone à IHU On-Line, o jornalista e pesquisador argentino Washington Uranga, a discrepância nos índices é uma das dificuldades de se trabalhar com dados na Argentina, pois “há poucas estatísticas econômicas confiáveis, então cada número que se coloca no debate é passível de questionamento, principalmente político”, explica.
Entretanto, para Uranga, em uma saída às ruas é possível constatar os reflexos e a gravidade da crise. “Esse contexto se nota especialmente nas regiões mais periféricas das cidades de Buenos Aires e de Rosário. Nestes lugares esses dados se comprovam, por exemplo, nas observações de sacerdotes católicos que trabalham nos bairros mais populares, que têm assinalado o aumento do número de restaurantes populares, onde as pessoas que não têm trabalho, e tampouco alimento em casa, buscam o que comer. Aumenta também o número de pessoas que recolhem materiais recicláveis no lixo para vender como forma de subsistência. Além disso, há um nível de agitação social que está crescendo e que é difícil de prever como vai seguir se desenvolvendo”, aponta.
Ao longo da entrevista, o jornalista analisa as diversas perspectivas da situação política e econômica da argentina e as medidas que têm sido tomadas para a resolução dos problemas que o país vem atravessando, como a abertura ao capital estrangeiro e o alinhamento a políticas neoliberais. “O governo do presidente Macri está fazendo uma abertura para a Aliança do Pacífico. A Argentina entrou como observadora, porque não há outra forma de ingressar nesse bloco, uma vez que o país faz parte do Mercosul. A Aliança do Pacífico, que reúne Chile, Peru, Colômbia e México, é uma estratégia do governo dos Estados Unidos para colocar outro nome no grupo que em outro momento se chamava ALCA (Área de Livre Comércio das Américas)”, analisa.
A partir da Argentina, Uranga lança um olhar sobre a América Latina e percebe um elemento em comum que atravessa a trajetória de todos os países latinos. “Há uma questão que não está resolvida, que é o tema das grandes lideranças que estão encerrando ciclos e não estão conseguindo sucessores que possam seguir seu trabalho. Não há construções políticas institucionais que garantam a continuidade dos projetos. Por outro lado, está claro que os governos progressistas se constituem em uma ameaça para o poder econômico e financeiro internacional e isso é parte de uma luta pelo poder. Nessa luta se ganha e se perde, e me parece que este é um momento de retrocesso dos setores populares e dos governos progressistas. A história da América Latina, nesse sentido, é uma história pendular. É um vai e vem, no qual hoje esse pêndulo está favorecendo os setores mais conservadores”, avalia.
Washington Uranga é jornalista argentino, professor e pesquisador de comunicação. Sua área de especialização são problemas de comunicação ligados a processos de cidadania, participação, políticas públicas e planejamento de comunicação. É colunista do jornal Pagina 12, de Buenos Aires. Assessora organizações sociais, entidades públicas e governos. Atualmente, dirige o Mestrado em Comunicação Institucional da Universidade Nacional de San Luis.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Na semana passada divulgou-se o caso de corrupção na Argentina envolvendo o homem-chave do kirchnerismo, José López. Qual é o impacto político dessa notícia para o kirchnerismo e de que modo ela está repercutindo no país?
Washington Uranga – Para o governo do presidente Macri essa notícia foi favorável, porque tirou da primeira página de todos os jornais as informações sobre a situação econômica da Argentina, que é complexa em razão dos altos índices de inflação e do custo social que o ajuste econômico da aliança Cambiemos está gerando. Para o Kirchnerismo é um golpe político muito forte que agudiza a fragmentação política que vem ocorrendo desde a derrota eleitoral do ano anterior. O que se pode chamar estritamente de Kirchnerismo, mas de um modo geral de peronismo, está muito fragmentado. Não há lideranças claras e a notícia e a situação de López agudiza tudo isso.
Não pode ficar fora dessa análise o peso do tema dos meios de comunicação, hoje absolutamente controlados pela aliança Cambiemos e pelo governo do presidente Macri. A maioria dos meios de comunicação atua blindando de proteção midiática o governo, além de alimentar campanhas como as que suscitam informações sobre José López, e outras que vão de encontro às medidas implementadas pelo governo anterior.
IHU On-Line - Essa notícia de corrupção acaba tendo um impacto no governo Macri também? Em que sentido?
Washington Uranga – Como mencionei antes, essa notícia acaba tendo um impacto positivo no governo Macri, porque tira da primeira página dos jornais outros temas que são muito negativos, como o aprofundamento da inflação e da crise econômica. Nesse sentido, o que Macri tem feito é avançar em outras medidas, incluindo medidas legislativas, aproveitando a fragilidade da oposição.
O golpe político para o peronismo e Kirchnerismo é evidente porque ainda se soma a outros de diversas ordens. Esse impacto se expressa também na restrita aparição pública de Cristina Kirchner.
"Não pode ficar fora dessa análise o peso dos meios de comunicação, hoje absolutamente controlados pela aliança Cambiemos e pelo governo Macri"
IHU On-Line - Pode nos dar um panorama sobre a atual situação social e econômica da Argentina? Muitos falam em aumento do desemprego, no aumento no custo de vida. A que o senhor atribui essa situação?
Washington Uranga – A inflação do último ano até agora - medida de junho a março -, de acordo com estatísticas oficiais, está em 42%. É um índice altíssimo que não se registrava na Argentina desde o começo dos anos 1990. Isso impacta duramente os salários dos trabalhadores, em particular porque os ajustes que têm sido feitos pelos acordos coletivos de trabalho em nenhum caso alcançaram esses 42%, o máximo que conseguiram chegar foi a aproximadamente 30 ou 33%.
Então, evidentemente os salários têm perdido poder aquisitivo. A essa situação é preciso somar a existência de uma onda de demissões em todo o país. Não há números exatos, mas o próprio governo admite que o número de demitidos pode estar entre 25 e 30 mil pessoas e este é um número muito alto para a Argentina. Certamente essa soma é muito maior, alguns sindicatos falam de um total de aproximadamente 150 mil pessoas sem trabalho.
Esse contexto se nota especialmente nas regiões mais periféricas das cidades de Buenos Aires e de Rosário. Nestes lugares esses dados se comprovam, por exemplo, nas observações de sacerdotes católicos que trabalham nos bairros mais populares, que têm assinalado o aumento do número de restaurantes populares, onde as pessoas que não têm trabalho, e tampouco alimento em casa, buscam o que comer. Aumenta também o número de pessoas que recolhem materiais recicláveis no lixo para vender como forma de subsistência. Além disso, há um nível de agitação social que está crescendo e que é difícil de prever como vai seguir se desenvolvendo.
O governo havia anunciado melhorias na situação geral para o segundo semestre, porém os economistas, governistas ou não, não creem que uma recuperação da economia possa se dar de imediato. Também, alguns setores do governo já começaram a falar que não será no segundo semestre, mas talvez ao longo do próximo ano que terá início a recuperação econômica que consistiria, segundo as fontes oficiais, no aumento dos investimentos. De todo modo, essa também é uma situação difícil de estimar, porque esses investimentos vão acompanhar uma abertura quase irrestrita do mercado para as importações, que prejudicaram seriamente as pequenas e médias empresas, deixando desempregados muitos trabalhadores de organizações desses portes, que são as maiores provedoras de postos de emprego na Argentina.
IHU On-Line - Essa situação é resultado das políticas adotadas no governo Macri ou das políticas que vinham sendo desenvolvidas no governo Kirchner?
Washington Uranga – Não há uma resposta única para esta questão. Creio que o governo do presidente Macri adotou um plano econômico de ajuste que supõe uma transferência massiva de recursos para setores da economia concentrada. Pode haver uma consequência do que o governo chama de herança do Kirchnerismo, mas o que se evidencia é que, mesmo com as dificuldades, a Argentina cresceu 2,2% no ano passado e os índices que hoje se observam não são resultados de medidas anteriores, mas sim derivam de decisões de políticas econômicas atuais. Certamente esse é um debate intenso, mas, em minha opinião, as consequências mais diretas são as medidas econômicas que o governo atual tomou, o qual, entretanto, atribui todos os problemas às decisões do governo anterior.
Há um tema chave que é a decisão muito incisiva que o governo tomou de aumentar as tarifas dos serviços públicos. Em alguns casos esse aumento chegou a 200 ou 300%, sob o argumento de que o governo anterior estava subsidiando parte dos custos e, portanto, seria necessário corrigir o déficit deixado. Hoje, depois do aumento dessas tarifas de serviços, se viu que mesmo assim o déficit fiscal não diminuiu. Isso significa que o governo está gastando em outras áreas e esse não era o principal problema.
É necessário considerar que é muito difícil de trabalhar com estatísticas na Argentina. Há poucas estatísticas econômicas confiáveis, então cada número que se coloca no debate é passível de questionamento, principalmente político.
IHU On-Line - O governo Macri poderia não ter reajustado o preço dos serviços públicos?
Washington Uranga – Os serviços públicos deveriam ser ajustados porque, efetivamente, havia tarifas muito baixas, mas isso é uma decisão política. Certamente era necessário corrigir as tarifas para os setores que arrecadam mais receita, mas mesmo para esses setores o ajuste não poderia ter sido feito dessa forma. As mudanças deveriam ter sido feitas gradualmente porque o impacto agora é muito forte, com consequências para a pequena e média indústria, para as escolas, universidades, que multiplicaram por dez seus custos com energia elétrica, por exemplo.
"O governo do presidente Macri pensa que o processo de integração deve ser aberto, por isso estão questionando o Mercosul"
IHU On-Line – Há outras maneiras de fazer esse ajuste econômico? Que políticas seriam essenciais hoje na Argentina?
Washington Uranga – Os economistas dizem que a Argentina necessita de uma economia em que se mantenham altos níveis de consumo. Para isso é preciso manter o poder aquisitivo dos salários e fundamentalmente deve se manter ativa a pequena e média indústria. O governo do presidente Macri pensa o contrário. Para ele o país deve crescer a partir de investimento estrangeiro e dá grande ênfase para a garantia da entrada desses recursos no país, o que até o momento ainda não aconteceu, e à abertura quase irrestrita para as importações, que hoje está seriamente prejudicando a indústria local.
Atualmente tem havido manifestações dos produtores de carne suína, porque está sendo diminuída a produção local em função da entrada irrestrita de carne suína brasileira no mercado argentino. Algo similar está acontecendo com a indústria automotiva argentina, que não teria como manter-se se não tivesse feito um acordo com o Brasil para conter a entrada de automóveis brasileiros na Argentina. Se esse acordo não tivesse sido firmado, seguramente a indústria automotiva argentina quebraria.
IHU On-Line - Quais são as diferenças essenciais entre os governos Kirchner e Macri? Que visão e que projeto de país cada um deles tem para a Argentina?
Washington Uranga – São projetos muito diferentes. O projeto político levado adiante pelo presidente Néstor Kirchner e pela presidente Cristina Fernández privilegiava os setores populares, com renda mais baixa, e pensava em termos de integração política, econômica e comercial latino-americana. O governo do presidente Macri pensa que o processo de integração deve ser aberto, por isso estão questionando o Mercosul, embora hoje estejam sendo mais cuidadosos com os termos dessa crítica. Desse modo, a integração, na concepção de Macri, deve ser com o mundo desenvolvido, abrindo totalmente as fronteiras.
As medidas tomadas já nos primeiros meses do governo macrista apontaram para a centralização de investimentos nos setores mais concentrados da economia. O favorecimento dessa área é lógico porque o presidente Macri e sua equipe econômica provêm de uma classe econômica de altos investimentos e é dessa classe que veio a maioria dos votos que ele recebeu na sua aliança “Cambiemos”, o contrário do que aconteceu com a “Frente para la Victoria”, de Kirchner.
IHU On-Line - A próxima pergunta é justamente sobre esse ponto que você comenta em relação ao Mercosul. Qual é a política do governo Macri para o Mercosul? Como ela está sendo vista na Argentina? Que impacto a mudança de postura da Argentina em relação ao Mercosul pode trazer para a América Latina?
Washington Uranga – O governo do presidente Macri está fazendo uma abertura para a Aliança do Pacífico. A Argentina entrou como observadora, porque não há outra forma de ingressar nesse bloco, uma vez que o país faz parte do Mercosul. A Aliança do Pacífico, que reúne Chile, Peru, Colômbia e México, é uma estratégia do governo dos Estados Unidos para colocar outro nome no grupo que em outro momento se chamava ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). Uma das diferenças em relação ao Mercosul é que há medidas e decisões que cada um dos países pode tomar com liberdade, sem consultar os demais aliados do bloco. Assim, de acordo com algumas informações que temos, há avanços nas conversações com o governo do presidente Temer, no Brasil, que manifestou uma posição, segundo dizem os argentinos que fizeram esse contato, também muito próxima a deles.
Então, o Mercosul está totalmente debilitado, com tendência a se enfraquecer ainda mais, e não haverá nenhuma medida de fortalecimento, sobretudo se levarmos em conta seu estado hoje. Essa debilidade tem sido provocada pelo governo brasileiro, por uma Venezuela com problemas econômicos sérios e por um governo do Paraguai que tem um ponto de vista muito parecido com o do governo de Macri.
IHU On-Line – Poderia haver outra postura em relação ao Mercosul? O que os últimos governos latino-americanos não fizeram pelo bloco e o que poderia ser feito neste momento?
Washington Uranga – Depende da perspectiva política que cada um dos países tem. Então, se pode agir diferente acerca do Mercosul, como tentaram os governos das presidentas Dilma e Cristina Fernández, que pensavam em outra forma de organização. O mesmo aconteceu na época em que Pepe Mujica governava o Uruguai, pois hoje me parece que Tabaré Vásquez é muito mais flexível a respeito da política do Mercosul. O presidente do Paraguai tampouco tem a intenção de integrar a construção de um bloco regional. Então, outra coisa se pode fazer, mas as decisões são políticas e os alinhamentos dos governos da região hoje estão passando para outro lado.
IHU On-Line - Se Dilma e Cristina pensavam outro modelo para o Mercosul, o que faltou para que esse modelo fosse implementado?
Washington Uranga – Faltaram condições internacionais. A situação econômica internacional não tem sido boa nos últimos tempos e também não foram construídas ferramentas suficientes. O Mercosul é uma construção politicamente interessante e progressista, mas sem uma ferramenta concreta que permitisse operacionalizá-lo. Faltou e continua faltando que o projeto do Mercosul deixe de ser apenas um acordo alfandegário e econômico para tornar-se uma aliança política mais forte.
"A história da América Latina é pendular. É um vai e vem, no qual hoje esse pêndulo está favorecendo os setores mais conservadores"
IHU On-Line - Você concorda com as análises de que há uma crise dos governos progressistas na América Latina? O que aconteceu com esses governos?
Washington Uranga – Os governos progressistas estão enfrentando uma crise. Há algumas análises que apontam com muita clareza que o aumento da capacidade de consumo e da cidadania não se converte necessariamente em consciência política. As melhorias das condições econômicas não se traduziram em um aumento do nível de consciência política e isso é responsabilidade de quem construiu esses avanços.
Há uma questão que não está resolvida, que é o tema das grandes lideranças que estão encerrando ciclos e não estão conseguindo sucessores que possam seguir seu trabalho. Não há construções políticas institucionais que garantam a continuidade dos projetos. Por outro lado, está claro que os governos progressistas se constituem em uma ameaça para o poder econômico e financeiro internacional e isso é parte de uma luta pelo poder. Nessa luta se ganha e se perde, e me parece que este é um momento de retrocesso dos setores populares e dos governos progressistas. A história da América Latina, nesse sentido, é uma história pendular. É um vai e vem, no qual hoje esse pêndulo está favorecendo os setores mais conservadores.
IHU On-Line - Com a crise dos governos progressistas, vislumbra o surgimento de um novo ciclo político na América Latina? Em que consistiria? Há outras forças políticas latino-americanas?
Washington Uranga – Nos últimos anos parece estar crescendo a consciência política, há setores populares organizados em que, sobretudo, há a consciência muito nítida de que existem possibilidades de melhor qualidade de vida e de acesso a direitos, e isto tem sido um incentivo muito grande para reconstruir os espaços políticos. Entretanto, estes movimentos têm acontecido em momentos de incerteza similares em diferentes países, como o Brasil e a Argentina.
A reconstrução parece estar acontecendo desde baixo, a partir das organizações sociais e de processos de reivindicação. Nesse momento temos que esperar para fazer análises, porque tudo ainda é muito recente, complexo e com diversos aspectos conflitivos. Para pensar essa recuperação dos movimentos populares, é necessário ver também como está evoluindo a situação no Equador, onde o presidente Correa não foi reeleito; os que vai acontecer na Venezuela, onde a crise política é muito profunda; e quais são as novidades que podem vir a surgir, por exemplo, no Chile e no Uruguai. O Peru, por exemplo, acaba de eleger outro governo de direita, e com isso creio que o conservadorismo claramente está ganhando espaço e está conformando um novo momento político para toda a região.
IHU On-Line – Na Argentina, o que são esses movimentos de base? Há participação dos estudantes?
Washington Uranga – São organizações sociais e populares, das quais os estudantes também fazem parte. São organizações de trabalhadores desempregados, de pequenas e médias empresas, de habitantes da periferia das grandes cidades, e muitas organizações sindicais, as quais têm muitas contradições, mas estão impulsionadas pelas demandas dos trabalhadores por qualidade de vida.
IHU On-Line - Aqui no Brasil os estudantes secundaristas têm se mobilizado muito, ocupando as escolas e reivindicando seus direitos. Na Argentina isso também está acontecendo?
Washington Uranga – Há muitas mobilizações estudantis aqui na Argentina. Houve uma grande manifestação dos estudantes quando o governo Macri tentou fechar e diminuir o investimento em algumas universidades. Foi organizada uma manifestação impressionante em Buenos Aires. O movimento estudantil está muito mobilizado, mas não conduz esse processo de reconstrução dos movimentos populares, mas está acompanhando o que tem sido gerado por outros atores populares.
IHU On-Line – De que modo você avalia a crise na Venezuela? Em sua avaliação, qual é a origem dessa crise?
Washington Uranga – Estou um pouco a distância, então não me atreveria a fazer uma avaliação da situação na Venezuela, porque as informações são muito contraditórias, estão muito manipuladas por todos os atores envolvidos nesse processo. Eu não sou um especialista no cenário internacional, desse modo seria muito temerário eu fazer um juízo de valor sobre o que está acontecendo na Venezuela.
IHU On-Line – Você tem informações sobre como foi o encontro de Macri com o Papa?
Washington Uranga – Foi um encontro muito formal, que seguiu os cânones cerimoniais. Há questões que são fáceis de perceber, como os 22 minutos de conversa com Macri, em comparação com a mais de uma hora dedicada à conversa com Hebe de Bonafini, a presidente da organização Mães da Praça de Maio (Madres de Plaza de Mayo), ou ao tempo que dedicou à presidente Cristina Fernandéz. O Papa, que se expressa com os gestos, está claramente manifestando sua posição com esse comportamento. Além disso, sabemos que Francisco expôs ao presidente Macri questões que o incomodaram, como a prisão, em minha opinião injusta, de Milago Sala, a dirigente popular de Jujuy que está presa quase em uma condição de presa política; entre outras situações, como o revanchismo e a vingança por parte do governo contra alguns setores do peronismo.
O Papa apresentou essas questões, que se sabe que incomodam Macri, e o governo oficialmente não aceitou as observações. Formalmente o governo disse que prefere falar exclusivamente sobre as relações institucionais. Há algumas semanas, a vice-presidente Gabriela Michetti qualificou essas relações como complexas e me parece que essa expressão diz por si mesma o que significou esse encontro.
"O movimento estudantil está muito mobilizado, mas não conduz esse processo de reconstrução dos movimentos populares"
IHU On-Line – Quais são as tensões recentes na Argentina em relação ao Papa? Como ele é visto de um modo geral no país?
Washington Uranga – Os atores políticos que em determinado momento imaginaram que o Papa se posicionaria contra o governo de Cristina Fernandéz são os que hoje criticam duramente Bergoglio. Fazem isso com dureza, mas sem expressar toda a raiva que têm. As críticas ao Papa vêm fundamentalmente de alguns jornalistas alinhados ao governo. Por outro lado, os setores do kirchnerismo, do justicialismo e do peronismo ressaltam a atuação de Francisco e falam sobre esse Papa que defende os pobres.
Essa é uma tensão inevitável. Acho que o Papa é absolutamente coerente com as coisas que têm pregado. Não é porque ele seja mais inclinado à ideologia peronista ou mais anti-macrista, que Bergoglio não está de acordo com o modelo econômico neoliberal que está sendo implantado pelo governo da aliança Cambiemos. As críticas não são um ataque especificamente ao governo, pois essas ideias estão presentes em Evangelii Gaudium e em Laudato Si’.
IHU On-Line – Você percebe alguma mudança de postura de Bergoglio hoje como Papa em comparação com o tempo em que ele foi cardeal na Argentina?
Washington Uranga – Claramente há mudanças, porém não em relação à sua chegada ao poder, mas sim em relação a um Francisco que se tornou ainda mais comprometido com os setores populares que vai muito mais ao cerne dos temas, assumindo diretamente a defesa dos pobres, como seguramente não o fez com tanta ênfase na Argentina, onde ele manteve uma posição mais equilibrada em função de algumas questões políticas internas. Bergoglio sendo Francisco se libertou de uma série de amarras, hoje está em um lugar que transcende o argentino e fala para o mundo, e, como fala para o mundo, tem uma liberdade que antes não tinha.