O caminho da cruz depura, purifica, guia, cura e salva – conduzindo à vida plena.
Por Alfredo J. Gonçalves*
No caminho trilhado pela espiritualidade mística, a noite pode ser mais luminosa que o dia. Basta ter em conta o chamado “século de ouro” espanhol, com Santa Tereza d’Avila, São João da Cruz e Santo Inácio de Loyola. Para não falar de São Filipe Néri, na França, e de tantos outros. Mas talvez quem melhor tenha ilustrado essa experiência da “treva inebriante” é Angela da Foligno, a qual viveu alguns séculos antes, seguindo de perto a espiritualidade e os passos fulgurantes de São Francisco de Assis. Diz textualmente Angela: “E in quel bene che si vede nella tenebra mi raccolsi tutta, e divenni cosò sicura di Dio, che mai potrei dubitare di lui e di non aver Dio in modo certissimo. E in quel bene così efficacissimo che se vede nella tenebra la mia speranza fermissima è tuta raccolta e sicura”. (Citado por MAZZER, Stefano. “Li amò fino alla fine” – Il Nulla-Tutto dell’amore tra filosofia, mistica e teologia, Città Nuova Editrice, Roma, 2104, pag. 292ss).
Em uma profunda experiência mística, de fato, depois de ter encontrado a face de Deus, de ter conversado com Jesus Crucificado, Angela chega a uma densa e absoluta escuridão. E justamente aí, mais do que nas palavras do Mestre, encontra a paz tanto buscada e desejada. Naquela “nada” em que se sente em meio à noite, descobre o “tudo” que lhe é o amado. Embora a razão se mantenha muito aquém de semelhante mistério, talvez nos seja lícito tentar um balbuciante raciocínio, no sentido de descobrir o maior repouso na mais absoluta falta de luz. Afinal, “Deus é amor” e o amor é marcado com uma simplicidade surpreendentemente e privada de sofisticação.
Vamos à nossa tíbia, modesta e talvez equivocada linha de pensamento. Por que a noite escura aparece mais radiante do que o dia? Na luz do dia, vemos, ouvimos, sentimos e pensamos com certa clareza – quem sabe, com aparente e enganosa clareza! Em meio às trevas, entretanto, mesmo não vendo, não ouvindo, não sentindo e não pensando com a razão, tentamos tatear em profundidade a presença do Senhor. Se este é fiel para orientar-nos durante o percurso do sol (em termos verdadeiros e figurados), muito mais o será quando tanto os raios do astro rei quanto o brilho de sua face se escondem, e improvisamente o ocaso tomba e toma conta da existência. E se, por outro lado, na mais densa escuridão intuimos que o Senhor não nos abandona, mas, ao contrário, se faz mais vizinho, no interior mesmo do tempestade, então desaparecem e se diluem medos e angústias, ansiedades e inquietações, dúvidas e perguntas que a todo momento parecem perturbar a alma e privar-lhe da paz.
Num modo de ver que prima pela inexperiência mística, quem sabe isso explique, ao menos em parte, o grito de Jesus no alto da cruz. Na ausência consciente do Pai, revela-se um presença apenas intuída, mas infinitamente mais radiante e misteriosa que a própria luz do dia. O “nada” do abandono se converte no “tudo” da entrega: “Em tuas mãos entrego o espírito”. Mistério inacessível às palavras – o da cruz – mas de uma ausência-presença que nenhum discurso humano poderá jamais desvendar. E tateando igualmente por esse caminho da inexperiência, talvez tudo isso explique, ainda, como dor e sofrimento, sensação de fracasso e inutilidade, solidão e abandono, pequenez e impotência – possam, ao fim e ao cabo, transfigurar-se numa pequena chama em busca da “noite luminosa”.
Não evidentemente no ato agônico da dilaceração, quando a carne e o espírito se veem rasgados pelo tormento “desta hora”, mas a posteriori, quando nos damos conta que o caminho da cruz depura, purifica, guia, cura e salva – conduzindo à vida plena. O certo é que “a verdadeira pobreza não consiste em dar do que se possui, mas em receber. Pobre não é aquele que oferece algo, mas aquele que, chegado ao total despojamento e aniquilamento da cruz, nada mais pode além de receber. Uma vez mais, o “nada” humano da solidão e do abandono se fundem ao “tudo” divino.
Roma, 6 de junho de 2016.