O avião

Demétrio Valentini *

O acidente com o avião da Air France continua repercutindo. Todos nos sentimos consternados, solidários com os familiares que ainda aguardam alguma notícia que elucide o que aconteceu, e pensando nas vítimas, imaginando o que teria se passado com elas.

Esses sentimentos são uma expressão de humanidade, que aflora com mais intensidade quando um fato é amplamente divulgado, como aconteceu com este episódio. Comove pensar nos noivos que tinham celebrado seu casamento na véspera, nas professoras que tinham longamente preparado sua excursão para a Europa, na família que viajava de férias para a Grécia. E assim, como a aeromoça que passa para vistoriar cada fileira de assentos, nossa imaginação percorre todo o avião, misturando nosso desejo de evitar a tragédia, com a incapacidade de tomar qualquer providência.

Mas, além da solidariedade com as vítimas e seus familiares, todos os acidentes com aviões repercutem de maneira especial em nosso subconsciente. Porque o avião é o símbolo de um sonho acalentado desde os primórdios da humanidade, e acolhido no íntimo de cada pessoa humana. O sonho de voar, e superar os limites humanos. Desde meninos, temos inveja dos pássaros, e sonhamos também nós alçar vôo. Qual a criança que já não se imaginou voando, de braços abertos, pairando livre no ar, vencendo a atração da gravidade?

Cada desastre de avião é uma frustração deste sonho acalentado por todos. Uma derrota de nossa utopia de liberdade e de transcendência. Por isto, os desastres de avião repercutem mais do que os outros. Eles são uma afronta à aspiração mais simbólica e mais arrojada de nossa condição humana: superar os condicionamentos físicos, que cerceiam nosso sonho de infinitude.

Faz muito pouco tempo que este sonho teve uma concretização prática na invenção do avião. Foi em Paris, no dia 23 de outubro de 1906, só cem anos atrás, que o brasileiro Santos Dumont conseguiu fazer sua primeira demonstração de voar, com um aparelho mais pesado do que o ar, o seu famoso 14 Bis, o primeiro artefato voador. Era para Paris que se dirigia agora o 447. Esta circunstância parece acrescentar dramaticidade a este acidente com o avião da Air France. Pois a história parece dizer que a rota primordial da aviação é o trajeto Rio-Paris, que lembra Santos Dumont, que saiu do Rio e foi a Paris fazer sua demonstração de vôo.

O invento de Santos Dumont se propagou com muita rapidez. Nem é de estranhar que outros reivindiquem a autoria desta descoberta. Quem dispunha de mais condições técnicas, pôde levar em frente as intuições já presentes no vôo do pioneiro da aviação, em 1906.

Pouco tempo depois, Santos Dumont viu com muita tristeza sua invenção ser colocada a serviço da destruição, na primeira guerra mundial. Infelizmente, foi a guerra que acelerou a tecnologia da aviação. Só depois da segunda guerra mundial, a indústria tomou decididamente o rumo da construção de aviões de passageiros, colocando a aviação no centro do sistema mundial de transporte.

Mas, vamos de novo acompanhar o 447. A hora e o lugar do acidente são as únicas referências para imaginarmos o que terá acontecido. Naquela hora, e naquele ponto do trajeto, a tripulação já tinha servido a janta, e apagado as luzes para favorecer o descanso e o sono dos passageiros. Provável que a maioria estivesse dormindo, com a tranqüilidade de quem estava seguro nas mãos do experiente comandante, e na solidez do possante aparelho que os transportava. Até a eventual pane elétrica parecia vir a propósito, para favorecer um ambiente melhor para o sono. Se o comandante nem teve tempo para informar os controladores do vôo, muito menos teve tempo para advertir os passageiros. É muito provável que não tenham se dado conta de nada. A violência com que o avião se precipitou no mar, provocou a súbita despressurização, que tira a consciência até de quem está acordado.

Assim, do sonho de voar, e do sono do voo, devem ter passado para a dura realidade de sucumbir à força da gravidade. E terão acordado num destino onde certamente não imaginavam chegar.

Enquanto isto, com os pés no chão, ficamos meditando sobre nossa condição humana. Continuamos prisioneiros de tantos limites. Mas sentimos o desejo irresistível de superá-los. O avião continua símbolo de nossa vocação ao transcendente. Mas dispomos de asas mais potentes e mais seguras para empreender a grande travessia da vida. Como lembra a Encíclica Veritatis Splendor, a fé a razão suas duas asas potentes que nos levam à plenitude da verdade. Dentro desta plenitude, encontramos lugar para todos. Para que os já chegaram, e para os que ainda estamos em viagem.

* Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira Fonte: Diocese de Jales

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