A terceira personagem

A oração, se e quando verdadeira, nos devolve à realidade nua e crua do cotidiano.

Por Alfredo J. Gonçalves

Podemos identificá-la, de início, no episódio da sarça ardente (Ex 3, 1-12). Moisés sobe à montanha para se encontrar com Deus. Está perturbado, dividido entre a ira do Faraó, que o persegue por homicídio, de um lado, e o clamor de seu próprio povo, escravo no Egito, de outro. O que arde verdadeiramente não é a sarça, e sim a consciência de Moisés. O que fazer diante de semelhante situação? Busca uma luz, uma saída e, a partir da chama da sarça que não se consome, ocorre o diálogo entre Deus e o profeta. A uma determinada altura, porém, Deus introduz uma terceira personagem: os escravos. “Eu te envio para tirar o meu povo da escravidão do Egito”. A oração, se e quando verdadeira, nos devolve à realidade nua e crua do cotidiano. Ao tentar um entendimento com Deus, no sentido de acalmar sua alma atormentada pela dúvida, Moisés vê-se envolvido pelo contexto histórico de cruel opressão. Chamado a tomar partido, apesar de muitas hesitações, acaba se tornando o líder da libertação rumo ao deserto e à Terra Prometida.

Tomemos, em seguida, o livro de Jonas. Trata-se não de um profeta real e histórico, e sim de uma espécie de fábula psicossocial que, a um tempo, vela e revela uma lição. Jonas é chamado por Deus à cidade de Nínive, onde deve trabalhar para converter sua população. O profeta, entretanto, representa o que há de mais fanático no nacionalismo exacerbado de Israel. Ora, Nínive se caracteriza por ser a cidade do paganismo e do pecado, ele se nega a cumprir tal missão. Inicia-se então um processo de fuga: foge da face de Deus; depois, foge da cidade, correndo ao porto para tomar um navio, preferindo o mar desconhecido à terra conhecida; durante a viagem, desencadeia-se violenta tormenta, a qual, em lugar das ondas, agitam sobretudo a cabeça de Jonas, e este termina por seu atirado às águas como culpado da tempestade; no turbilhão das correntes, é engolido por um grande peixe, fugindo de si mesmo, o que simboliza o retorno ao ventre materno, à total nulidade, ao não querer sequer ter nascido, como ocorrera com Jeremias, aliás. Jonas então volta-se para Deus, numa oração dramática e pungente. E, no meio da angústia orante, o Senhor introduz a terceira personagem: faz com que o peixe vomite Jonas justamente em Nínive. Uma vez mais, a oração devolve o profeta ao contexto de uma realidade que impõe tomar uma decisão. E Jonas finalmente cumpre sua tarefa.

Passado ao Novo Testamento, temos a parábola emblemática do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37). O mestre da lei procura Jesus e pergunta: “o que devo fazer para ganhar a vida eterna?” Provavelmente uma conversa de alto nível, em termos espirituais e teológicos. Ouvira falar da fama do Nazareno, e talvez o queira pô-lo à prova. Mas Jesus, consciente e sabiamente, desloca o foco do diálogo: do espaço do templo para o espaço do caminho, do ambiente religioso para o ambiente social, do âmbito da teologia para o âmbito da pastoral. E introduz a terceira personagem: desta vez, o caído à beira da estrada e, quem sabe, da própria vida. Diante do homem ferido, e somente diante dele, a pergunta pela vida eterna – a salvação – ganha um sentido pleno. Em outras palavras, a atitude de todo cristão, no contexto de uma sociedade que produz vítimas cada vez mais pobres, excluídas e vulneráveis, torna-se o critério da salvação. O mesmo, de resto, verificar-se-á na parábola do Juízo Final (Mt 25, 31-46). Os “benditos de meu Pai” são aqueles que “deram de comer aos famintos” e “de beber aos sedentos”, aqueles que “acolheram os estrangeiros” e “vestiram os nus”, aqueles que “visitaram os doentes” e “os prisioneiros”.

Dessa forma, a subida à montanha para o encontro com Deus complementa-se com a descida ao caminho para o socorro dos pequenos e indefesos. Montanha e caminho, oração e ação social, longe de se excluírem, se integram, se entrelaçam e se interpelam reciprocamente. Enquanto as dúvidas e contradições do caminho requerem uma intimidade com Deus, o diálogo com Este na montanha, por sua vez, devolve ao caminho. Trata-se de duas dimensões indissociáveis da mesma prática religiosa. Montanha sem caminho leva à manipulação e instrumentalização de Deus para interesses não sempre confessáveis; e inversamente, caminho sem montanha leva não raro à manipulação e instrumentalização do povo em vista de interesses políticos ou ideológicos.

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do Serviço de Proteção ao Migrante.

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