São festas romanas

Suspeito de quem passa um ano inteiro sem dar pela falta de um ente amado, mas sofre no dia combinado para sofrer. Compunge-se e considera cumprida a “tarefa”, porque registrou o lamento.

Por Léo Rosa de Andrade

Desconfio de datas fixadas com antecedência para eventos afetivos. Há certas épocas do ano em que muita gente se porta com desvario. Sofrem, se não conseguem adotar comportamento pronto para ser vestido em hora apontada, esperam que as demais pessoas ajam tal e qual e ficam aborrecidas se alguém não procede da mesma forma. O\a destoante acaba acusado\a de “não ter empatia”, sendo constrangido\a a “participar”.

Há um dia certo para padecer a saudade do\as morto\as. Suspeito de quem passa um ano inteiro sem dar pela falta de um ente amado, mas sofre no dia combinado para sofrer. Compunge-se e considera cumprida a “tarefa”, porque registrou o lamento. Existe, também, data de bons augúrios autoproclamados: no Primeiro do Ano professam-se compromissos depressa abandonados. Nesse dia, pessoas estúpidas estouram foguetes.

Ainda, há os momentos para “soltar a franga”: carnaval, noites de grande efervescência. Todas as coisas podem. Restrições morais relaxadas. Acredito e defendo que todo mundo pode tudo todo dia; o limite é o direito alheio, nem sempre respeitado. No entanto, parece-me estranho tornar-se alegre ou triste em hora marcada. Atenção, amanhã é carnaval, então, amanhã, sai de baixo; depois, a vidinha comum de todos os dias.

Estamos em uma época dessas. Mesmo quem não gosta força-se a estar nas festas. Nos últimos dias de dezembro, todo\as havemos de estar ou parecer felizes. Em verdade, nessas ocasiões padece-se de muita ansiedade. Vê-se que se fazem muitas compras, come-se muito e se bebe exageradamente. Endivida-se e engorda-se, nessas festanças de fim de ano. É tempo, inclusive de se aturarem parentes não agradáveis.

Em seguida, como não poderia deixar de ser, as coisas da vida cotidiana retornam imperativas, atropelando gente empanturrada, de ressaca e, nada incomumente, com algum acréscimo nos boletos. É de se registrar que no transcorrer dessas comemorações aumentam os índices de suicídio, o que não é indício de momento feliz.

Pode ser dito que eu não compreendo o espírito da coisa. Compreendo. O espírito da coisa eu compreendo. O que desejo apontar é que o espírito da coisa não é cumprido. O comportamento geral nessas ocasiões se vulgarizou em hábito irrefletido e engoliu o espírito, que seria circunspecto e introspectivo.

Para a tradição cristã, por exemplo, passamos por um aniversário significativo. O aniversariante, anunciado, não veio nem virá, mas, se houvesse comparecido às festas, encontraria nela o sentido do que pregava? Aceitaria um presente dos que supostamente o festejavam? Estaria sentado, com comodidade moral, à mesa festiva do próprio aniversário? Não sei, não. Jesus era homem de comedimentos.

Não sou propriamente o que se poderia chamar de um animal religioso. Respeito, contudo, ideias, e respeito quem as tem. Entretanto, respeito quem tem ideias se, além de tê-las, delas faz atitude. Professar ideias sem realizá-las na vida concreta é um horrível cinismo; falso moralismo no lugar de valores morais.

Ideias são assunto respeitável. Se as ideias compreendem seu tempo, se trazem avanços sociais, toco-me por admiração. Se a pessoa morre pelo que pensa, não tenho nem que concordar com o seu pensamento, nem com sua opção por morrer, admiro a coragem. Pouco\as convertem ideias em grandezas; esse\as pouco\as, em geral, têm seu valor.

Bem, todo\as sabemos o que Jesus pensava, ou as doutrinas a ele atribuídas, já que, como Sócrates, o pregador semita nada escreveu. O nazareno, embora não seja o pensador mais citado na atualidade, não registra papel pequeno. Ademais, a Bíblia, coletânea que elenca suas parábolas edificantes, é recordista de vendas. Quero dizer: não se faça de bobo\a, você conhece ou pode alcançar facilmente o que o profeta ensinava.

Não sou – e não pretendo sê-lo – o melhor intérprete das pregações de Jesus. Mas conheço festas. Espero não ser levado a mal, mas essas festas “oficiais”, seja o Natal (em que o rabi nasceu), seja o Ano Novo (datado pelo nascimento do Filho do Homem), do jeito que ocorrem, estão mais para Roma de Nero do que para exemplo cristão. Ou será que me engano? Gostaria de estar enganado. Só que não.

Não posso dessaber o que sei: Jesus era frugal, não exigia atestado ideológico, ouvia divergentes, andava com pobres, atendia necessitado\as. A esse tipo de gente prometeu preferencialmente o seu Reino dos Céus. Bem, um bom ano, e que todos os dias a honestidade, o comedimento, a tolerância e os bons livros te toquem a existência e te felicitem o coração.

Léo Rosa de Andrade, escritor, professor, psicanalista e jornalista.

Deixe uma resposta

dois × quatro =