O Estado costuma desenhar as fronteiras territoriais com precisão matemática, conferindo-lhes um status inexpugnável.
Por Alfredo J. Gonçalves
Convém iniciar com um alerta: não existem olhares únicos, como gavetas fechadas e incomunicáveis. Todos se misturam e se entrecruzam. Cada um, além de influenciar os outros, também é por eles influenciado. Em conjunto, criam uma rede de visibilidade onde se introduzem canais que se comunicam, como uma espécie de raios infravermelhos. Apesar do alerta, não é difícil identificar diferentes formas de observar as migrações e os migrantes, umas claras e diretas, outras oblíquas ou enviesadas. Dito isso, frente ao fenômeno migratório, o olhar das autoridades em geral é de alarme e de perigo permanentes. Para eles, a migração representa um problema a ser enfrentado. Na busca de soluções, números e estatísticas, valem mais do que as pessoas com seus dramas e aflições. Trata-se de um olhar policiesco e vigilante. O Estado costuma desenhar as fronteiras territoriais com precisão matemática, conferindo-lhes um status inexpugnável. Prevalece aqui a famigerada “ideologia de segurança nacional”, em sua ótica militar e em sua ambiguidade, onde não faltam lacunas e fissuras, como potenciais pontos de passagem. A teimosia e criatividade dos migrantes fazem o resto.
Em segundo lugar, o olhar de grande parte da população e da mídia em geral constitui uma mescla de medo e ameaça. O “outro, diferente e novo”, como lembra a visão popular, sempre nos deixam com um pé atrás, ou com uma pulga atrás da orelha. Tudo o que chega de fora nos interpela e incomoda. Por nada deste mundo a população que romper com a tranquilidade das águas paradas. Uma pedra atirada num lago pacífico tende a criar ondas cujos efeitos são imprevisíveis. A mesmice do cotidiano, por mais tediosa que seja, oferece certa proteção. Por outro lado, qualquer mudança que traz novidades desconhecidas, se e quando espetacularizada pelos meios de comunicação, com frequência se transforma em tormenta. Esta, por sua vez, não condiz com a pacata rotina do dia a dia. A terra não se alimenta de tempestades, mas de chuva fina, mansa e prolongada. A tempestade lava, devasta e destrói o solo, lavando consigo os nutrientes necessários à vida. Daí o rechaço a tudo que é estranho, quando não a discriminação, o preconceito e a xenofobia.
Segue-se o olhar jurídico-burocrático. Enxerga através dos óculos da legislação migratória. As leis, contudo, são cegas: não conhecem rostos, nomes, dramas e histórias. Permanecem indiferentes ao sofrimento de quem a procura. Estamos diante de um olhar medido, calculado, cirúrgico e legalista. Mas o legalismo nem sempre é legítimo, e tanto menos leva em conta a justiça e a paz. A rigidez fria, nua e crua da lei acaba por sacrificar os imigrantes indocumentados no altar da defesa nacional. Rotula-os como ilegais, clandestinos, irregulares. Para a burocracia, quem não possui os documentos em dia, não pode ser considerado cidadão. Disso decorre o processo de “caça às bruxas” e de deportação. A solução melhor e mais rápida é ver-se livres dessa onda de intrusos. Nada de abrir precedentes que costumam se tornar incontroláveis “Por que vocês não ficaram em casa”? Essa é a pergunta ao mesmo tempo crítica e sarcástica, subentendida por trás dos rostos impassíveis dos burocratas. Ou então “Que direito têm vocês de virem perturbar nosso sossego e nossa paz? O lugar de vocês é do outro lado”! Do outro lado da fronteira, do mar, do deserto, da floresta.
Por último, mas em primeiro plano, temos o olhar revestido pelo enfoque dos direitos humanos. De cara, vale a pena insistir que ao direito internacional de ir-e-vir corresponde o direito de ficar. Com efeito, se milhares e milhões de pessoas abandonam a terra onde deixaram sepultados os restos mortais de seus antepassados, não podemos naturalizar essa saída como normal. Semelhante processo de fuga deve-se a motivações que têm a ver não somente com a política econômica de cada lugar, mas sobretudo com as assimetrias progressivas da economia globalizada. A desigualdade socioeconômica concentra, por uma parte, renda e riqueza nas mãos de um punhado de milionários e bilionários, e por outra parte, abandona a maioria da população a condições extremamente precárias e vulneráveis. Soma-se a esse estado de coisas as tensões, conflitos e guerras, tanto do ponto de vista étnico e religioso quanto do ponto de vista político e ideológico. Ultimamente, os efeitos catastróficos das mudanças climáticas vêm agravando a fuga em massa.
Resulta desse cenário a necessidade de acolher, proteger, promover e integrar os que, em desespero de causa, batem à porta. O que confere real direito de cidadania não é apenas o passaporte desta ou daquela nação, e sim o simples fato de ter vindo ao mundo. A certidão de nascimento consiste no documento primordial para o direito a uma vida justa, digna, fraterna e solidária em qualquer lugar do planeta. Para seguir com o Papa Francisco, essa é a “nossa casa comum” e, nela, todos somos convidados a viver como irmãos e irmãs.