Alijar as comunidades Guarani Kaiowá de seus territórios tradicionais importa em decretar o seu extermínio definitivo.
Por Gabriel dos Anjos Vilardi
Por fim, não haverá qualquer possibilidade de pacificação social enquanto não houver a demarcação dos territórios dos Guarani Kaiowá. Trata-se de uma evidente questão de justiça! Adiar essa reparação histórica é prolongar o massacre. Usar de quaisquer subterfúgios para pressionar as comunidades indígenas a cederem seus direitos fundamentais, como parece desejar o ministro Gilmar Mendes com essa imoral mesa de negociação, implica em concordar com o extermínio dos povos originários.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Eis o artigo.
Nesta segunda-feira (5) foi aberta, no Supremo Tribunal Federal, pela determinação do ministro Gilmar Mendes, uma surpreendente mesa de conciliação entre os Povos Indígenas e seus oponentes históricos, as autoritárias agrofamílias latifundiárias, que há séculos perseguem os habitantes originários do Brasil. A inédita e duvidosa iniciativa do relator das ações diretas de inconstitucionalidade (ADINs) que questionam o marco temporal, reestabelecido pela Lei 14.701/23, tem contribuído para a escalada dos ataques aos povos originários. Enquanto força uma discutível transação sobre os direitos fundamentais dos indígenas, a Suprema Corte mantém tais comunidades sob a implacável mira de seus algozes.
Entre as principais e mais recentes vítimas estão os Kaingang de Santa Catarina, os Avá-Guarani do Paraná e, especialmente, os Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul. Pertencentes ao tronco Tupi e à família linguística tupi-guarani, os Guarani estão divididos entre os subgrupos Mby’a, Nhandeva ou Avá e Kaiowá. Vivem desde tempos imemoriais entre o Paraguai e Mato Grosso do Sul. Com o desembarque dos europeus, passaram a ser perseguidos e escravizados pelos "encomenderos" espanhóis e pelos bandeirantes portugueses.
Expulsos de seus territórios e sujeitos a toda espécie de violações de sua dignidade humana, lutam pela garantia de parte dessas terras ancestrais. Mas não só. Por mais absurdo que possa parecer, lutam também pelo direito à memória, porque os atuais colonizadores alegam que essas comunidades não viviam ali e não tem direito a terra. Em nome da sagrada propriedade privada e da idolátrica segurança jurídica, os inimigos dos Povos Indígenas cometem um avassalador genocídio cultural. Um apagamento que se perpetua há séculos, como observa Paulo Suess:
“Os vestígios dos oprimidos, às vezes, perdem-se na poeira dos séculos, como a sepultura dos profetas. Os conquistadores não se apropriam somente das riquezas materiais e espirituais dos conquistados. Sempre são também os destruidores de sua memória e profanadores dos sepulcros de seus sábios. Enquanto Francisco Pizarro ganhou uma sepultura bem cuidada na catedral de Lima, os restos mortais de um Bartolomeu de Las Casas simplesmente se perderam. Perderam-se?”[1]
Apartados violentamente de seus territórios originários, os tekohas, suas comunidades foram empurradas para situações sub-humanas de desagregação social e indigência cruel. Todavia, mesmo cercados pelas extensas propriedades rurais dominadas pela monocultura da soja, os Guarani Kaiowá resistem em pequenas e superpopulosas reservas indígenas e em acampamentos montados nas beiras das estradas. O estado de abandono a que foram relegados em nome de um pseudodesenvolvimento é vergonhoso para todo o país.
Um modo de vida que não se deixou dominar pelo capital e seu doentio modelo agroexportador em larga escala, preocupado unicamente com o lucro. A mera resistência de comunidades inteiras que se mantêm ligadas à terra de uma forma diferente significa uma ameaça ao sistema. E as ameaças devem ser eliminadas, como se vê nos sucessivos e massivos crimes cometidos contra os Guarani Kaiowá.
Com a alteridade indígena negada como possibilidade alternativa de existência, resta um Brasil mais empobrecido e intolerante, como aponta o assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi):
“O sistema colonial considerava a alteridade dos povos conquistados inferioridade e a reciprocidade de sua economia, que era a base de sua igualdade, improdutividade. Os Estados Nacionais Modernos, prisioneiros da mundialização do mercado com seu potencial colonizador, todavia, tornaram-se novos colonizadores dos outros (minorias ou não), muitas vezes incapazes de admitir alternativas frente ao macrossistema cultural e econômico. Vícios herdados se juntaram a novos vícios estruturais dos quais os Estados Modernos são herdeiros, prisioneiros e defensores”.[2]
Nas últimas semanas, apesar do desinteresse da grande mídia em noticiar o banho de sangue promovido pelos ruralistas do Centro-Oeste, dezenas de vídeos furaram a bolha das redes sociais com cenas perturbadoras. O país vem assistindo estarrecido a um verdadeiro massacre do Povo Guarani Kaiowá, com dezenas de indígenas barbaramente feridos. Qualquer cientista social teria dificuldade em explicar que tamanhas violações de Direitos Humanos acontecem em um Estado que se reconhece como Democrático e de Direito.
Alijar as comunidades Guarani Kaiowá de seus territórios tradicionais importa em decretar o seu extermínio definitivo. Essa decisão política vem sendo sustentada em uma série de estereótipos estigmatizantes e no racismo institucional impregnado no poder público. Sob uma ótica neoliberal baseada no consumo desenfreado, não se reconhece a importância do Bem Viver para os Povos Indígenas. Estes não estão preocupados em sugar as riquezas da terra, como se fossem meras mercadorias. Sua lógica é desprezada e incompreendida pelos gurus do mercado e pelos gestores públicos, que pretendem impor seus planos de produção externos:
“Não só a fome do pobre, também o desprezo daquele que é diferente, sua alteridade como inferioridade, enfim, a agressão ao outro, ameaçam a vida de povos, civilizações e indivíduos. A alteridade é uma riqueza a ser permanentemente defendida. A alteridade é uma arma de resistência contra a ‘mesmice sistêmica’. A pobreza, como resultante da assimetria social, é uma patologia a ser superada. A igualdade visa não somente a superação dessa patologia social, mas também o reconhecimento da alteridade cultural de todos, sem obrigação de justificá-la”.[3]
Mesmo o Supremo Tribunal Federal tendo declarado inconstitucional a tese do Marco Temporal, o cenário só se agravou para as comunidades originárias com a aprovação provocativa da Lei 14.701/23. Com o ajuizamento de novas ações na Corte Suprema, para derrubar mais uma vez a acintosa teoria que confirma a roubo de centenas de Terras Indígenas, a poderosa e super representada bancada do agronegócio ameaça pautar a Proposta de Emenda Constitucional nº 48. Referida PEC pretende alterar o artigo 231 para acrescentar esse infundado limitador temporal no texto constitucional.
Eventual aprovação da mencionada PEC acarretaria, entre outros, no desrespeito aos princípios da proibição do retrocesso social e da separação de poderes, em que se prevê a competência da Corte Constitucional para interpretar a Constituição da República, como sua última guardiã. Como se não bastasse, isso implicaria ainda no descumprimento da vedação de alteração de cláusula pétrea. Isto porque o reconhecimento das terras ancestrais dos Povos Indígenas consiste em um direito fundamental, que não pode ser modificado nem mesmo pelo Congresso Nacional.
Infelizmente, para a frustração e a decepção do movimento indígena e de todos aqueles e aquelas que apoiam a sua causa, o governo Lula não tem cumprido a contento com suas promessas de campanha. Além de não avançar em seu dever constitucional de sanar o imenso passivo de Terras Indígenas não demarcadas, sua posição diante dos conflitos agrários tem sido inaceitável.
Há uma temerosa reação insuficiente que beira à irresponsável conivência das autoridades federais, com toda a selvageria praticada pelos fazendeiros, no Mato Grosso do Sul. Nas gravações apresentadas pelas organizações indígenas se constata a omissão da Força Nacional de Segurança Pública diante dos ataques contra os Guarani Kaiowá. As fotografias de jovens e idosos sangrando após um aterrorizante tiroteio realizado pelos capangas do agro são revoltantes.
Visitas e promessas vazias não bastam! Representatividade de autoridades federais indígenas, apesar de importante, não garante a vida digna das comunidades massacradas. Já passou da hora do presidente Lula decidir se está a favor ou contra os povos originários. Nesse sentido, bastante lúcida a análise do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas-Dados 2023 do Cimi:
“Esqueceu o governo Lula que a recuperação da convivência democrática, bandeira principal do novo momento político no país, passa necessariamente pela demarcação e proteção dos territórios indígenas (...) É fundamental que o atual governo, no tempo que lhe resta, transforme a estética da representação em uma ética política da justiça e do direito. E é indispensável que o poder Judiciário mantenha, no atual embate jurídico sobre os direitos dos povos indígenas, o que foi definido em setembro de 2023 quanto à inconstitucionalidade do marco temporal”.[4]
Dentro do alarmante índice de 208 assassinatos de indígenas no ano passado, após Roraima com seus inextinguíveis garimpos (47), Mato Grosso do Sul é o segundo estado com mais mortes (43). Não se trata, pois, de fatos isolados ou circunstanciais, mas de uma mentalidade de extermínio, entranhada no poder público local e na parte fascista do agronegócio. Portanto, em face desses crimes sistemáticos contra os Guarani Kaiowá, com suspeitas da participação de policiais militares como seguranças privados dos fazendeiros, o governo federal precisa tomar medidas enérgicas e assertivas.
Esse discurso de conciliação é falso e injusto. O espaço para negociação se fechou quando crimes violentos foram praticados pelos latifundiários. Nesse caso, só cabe a investigação implacável por parte da Polícia Federal para a punição dos responsáveis. Por outro lado, como o estado de Mato Grosso do Sul já demonstrou que não possui condições alguma para proteger as vítimas dessa carnificina, o Executivo federal deve assegurar a segurança e incolumidade das comunidades indígenas atacadas, sob pena de responsabilização direta dos servidores públicos que não cumprirem sua função.
Por fim, não haverá qualquer possibilidade de pacificação social enquanto não houver a demarcação dos territórios dos Guarani Kaiowá. Trata-se de uma evidente questão de justiça! Adiar essa reparação histórica é prolongar o massacre. Usar de quaisquer subterfúgios para pressionar as comunidades indígenas a cederem seus direitos fundamentais, como parece desejar o ministro Gilmar Mendes com essa imoral mesa de negociação, implica em concordar com o extermínio dos povos originários.
Se o presidente Lula e seus líderes no Congresso estão do lado dos indígenas como dizem, devem agir sem meias palavras ou atitudes dúbias. Querer agradar produtores rurais que assassinam lideranças Guarani Kaiowá é totalmente contrário à fronteira da civilidade. O tempo dos discursos bonitos e dos gestos simbólicos terminou. Como disse o atual secretário-executivo do Cimi, “sem Demarcação, não há Democracia”! Que o atual governo passe para a história como aquele que demarcou com clareza os limites entre a barbárie e o Estado Democrático de Direito.
Notas
[1] SUESS, Paulo. A conquista espiritual da América espanhola. Petrópolis: Vozes, 2024. p. 11.
[2] Idem, ibidem. p. 15.
[3] Ibidem, p. 15.
[4] FERNÁNDEZ, Luis Ventura. Violência contra os povos indígenas persiste diante da inércia e da cumplicidade do Estado. Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2023. p. 16.