Padre Sávio: discípulo e mestre da missão

Uma missão sem compromisso que não se aproxima das vítimas por receio de sujar as mãos ou a barra da túnica, não serve, melhor não a fazer.

Por Jaime C. Patias *

Fez a sua Páscoa no dia 07 de março de 2024 em Parma na Itália, o padre Sávio Corinaldesi, aos 87 anos. Gostaria de deixar o meu testemunho sobre este grande missionário Xaveriano que tive a graça de conhecer e com quem depois trabalhei na Equipe das Pontifícias Obras Missionárias (POM) em Brasília (DF) durante três anos (2012-2014). Com a mesma idade do Papa Francisco, padre Sávio era para nós, um “evangelho vivo” com páginas de sabedoria abertas nas melhores rubricas do Verbo encarnado. Nele tudo era missão e nada era planejado ou realizado sem o horizonte da missão. Cultivava um estilo de vida simples que por si só comunicava a essência do evangelho: o amor a Deus e ao próximo, valores que deveriam contagiar toda a humanidade.

Contava que a sua vocação missionária nasceu quando ele era seminarista do seminário menor na diocese de Iesi, província de Ancona. Os missionários italianos passavam pela casa e falavam das missões. Com os retiros e leituras sobre a evangelização feita pelas congregações no mundo o interesse aumentou. Terminado o segundo ano de teologia, decidiu passar do seminário diocesano para a comunidade dos Xaverianos em Parma onde fiz o noviciado e concluí os estudos.

Mergulhar na realidade do povo

Após a ordenação em 1961, trabalho na Espanha, por seis anos, na Animação Missionária dos seminários a serviço das POM. A sua trajetória mostra uma profunda sintonia entre fé e vida, espiritualidade e missão, teoria e prática. Aproveitando dos estudos no seminário e faculdades ao chegar no Brasil em 1968, praticou o principal fundamento da missão: mergulhar na realidade do povo. Foram 24 anos de apostolado na prelazia do Xingu e nas dioceses de Belém e Abaetetuba (PA), lugares por ele considerados uma escola de vida. “Com o tempo, me convenci de que, o que eu tinha para ensinar não era maior do que a riqueza que o povo possuía para me oferecer”. Ocupou também, o cargo de superior dos Xaverianos da Amazônia e foi secretário executivo do Regional Norte 2 da CNBB (Pará e Amapá).

E foi vivendo a missão encarnada que, nos anos sequentes, ele se transformou em mestre de animação e formação missionária com atuação no Centro de Formação Intercultural (Cenfi) e Centro Cultural Missionário (CCM), nas POM e organismos da CNBB em Brasília. Todas as suas ações eram motivadas pelo sonho de ver a Igreja do Brasil se tornar cada vez mais missionária. Não resta dúvida. Hoje podemos afirmar que os seus esforções contribuíram decisivamente para isso.

Na sua metodologia a reflexão nascia da prática que, por sua vez, inspirava novos reflexões e processos que levavam ao compromisso com a missão. Nas POM, além de assessorar cursos e formações em todo o Brasil, escrevia artigos e produzia subsídios entre os quais as Novenas Missionárias para a Campanha do mês de outubro realizada em todas as dioceses. Apesar da idade e limitações físicas utilizava as novas tecnologias para organizar apresentações em Power Point, mostrar vídeos e imagens que suscitavam reflexões. Nas viagens, quando podia, evitava o avião optando pelo ônibus ou carona. Não queria incomodar mesmo que tivesse de dormir num banco da rodoviária.

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O local e o universal da missão

Atento ao novo e sempre procurando dar respostas aos desafios, investiu na formação de lideranças e na organização das instancias de animação e cooperação missionária, sem ficar restrito ao local, mas com um coração aberto à dimensão universal da missão. Padre Sávio observava que a ideia da missão além-fronteiras na Igreja no Brasil, inicialmente não foi bem aceita. Não havia muita abertura. Mas nos documentos da CNBB e do magistério da Igreja havia colocações marcantes sobre o tema. O Documento de Aparecida 2007 (n. 365) alertou para não cair na armadilha de pensar que a missão termina nos limites da Igreja local. Não cansava de repetir um dos fundamentos da teologia da missão: “A Igreja é por sua natureza e identidade missionária” e “as missões ad gentes não são algo facultativo para a Igreja local, mas fazem parte constitutiva de sua responsabilidade”. Recordava as palavras do saudoso dom Luciano Mendes de Almeida, que em um retiro para os Xaverianos, observou que “os missionários estrangeiros não teriam cumprido com sua missão no Brasil, porque foram ótimos missionários, mas não souberam ensinar os brasileiros a serem missionários além-fronteiras”. Por isso insistia tanto na abertura da Igreja local à missão universal.

Uma Igreja samaritana

Outro valor muito presente na vida do padre Sávio era a opção pelos pobres. Manifestava preocupação com certas tendências e atitudes. “A nossa Igreja esqueceu que deve ser samaritana. Voltou a prestigiar os sacerdotes e os levitas que rodeiam nossos altares e povoam nossos templos (cfr. Lc 10, 25-37). Uma Igreja de ritos, cultos, cerimônias, muito incenso que nada tem a ver com Jesus Cristo. Em um mundo que criou o café descafeinado, o cigarro sem nicotina, o leite desnatado... nós inventamos a missão ‘sem saída’, o envio ‘sem destino’. Uma missão que não se aproxima das vítimas por receio de sujar as mãos ou a barra da túnica. Uma missão descompromissada assim, não serve mesmo, melhor não a fazer”.

Para mudar esse quadro, padre Sávio acreditava no trabalho das POM focado na formação e em práticas de missão por meio de atividades envolvendo as novas gerações como a Infância e Adolescência Missionária (IAM), a Juventude Missionária (JM), os Conselhos Missionários de Seminarista (Comise), mas também, os idosos e enfermos, as famílias, as lideranças nos Conselhos Missionários Regionais (Comire) e nos cursos promovidos pelo CCM para diversos grupos. Apostava no papel do Conselho Missionário Nacional (Comina) e em sua articulação envolvendo os regionais da CNBB, as dioceses, as congregações e organismos como a Conferência dos Religiosos (CRB), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Comissão Missionária da CNBB, entre outros. Apesar das dificuldades e desafios essa dinâmica continua firme e dando frutos.

Formação dos seminaristas

Quando eu cheguei nas POM em 2012, além de cuidar da comunicação, tive a responsabilidade de herdar do padre Sávio o cargo de Secretário Nacional da Pontifícia União Missionária encarregada da formação missionária dos seminaristas, do clero e da vida consagrada. Padre Sávio tinha muita experiência em quase todos os setores. Começou com a obra da IAM em 2002, passou pela juventude, os seminaristas e presbíteros, chegando até os idosos, enfermos e famílias. Em todos esses grupos ele havia acendido a chama da missão.

O trabalho com os seminaristas enfrentava dificuldades. Era difícil entrar nos seminários e casas de formação para falar sobre a missão. Com a ajuda dos Comires e a persistência na concretização do sonho do padre Sávio, foram criados os Conselhos Missionários de Seminaristas (Comise). A iniciativa ganhou corpo e se espalhou por todos os regionais da CNBB. Os congressos missionários de seminaristas (2010, 2015, 2019 e 2022) as formações nacionais e regionais (Formise), juntamente com as experiencias de missão, impulsionaram a caminhada. Hoje os seminaristas participam da animação missionária da Igreja e temos presbíteros mais sensíveis com a missão. Isso aconteceu e continua a frutificar graças à semente lançada pelo padre Sávio.

A missão ou cresce ou desaparece

No final de 2014, padre Sávio encerrou 13 anos de serviço nas POM e voltou a Belém do Pará. Quando o mal de Parkinson lhe provocava tremores e movimentos involuntários, costumava brincar: “Eu sou um padre tremendo”. Após incansáveis 46 anos de missão no Brasil, em 2015 ele voltar para Itália onde passou a viver no Quarto Andar da Casa Mãe dos Xaverianos na cidade de Parma, com cerca de 60 confrades, sentindo o peso da idade e os anos de doação na missão mundo afora. Em 2017 tive a oportunidade de visitá-lo e partilhar com ele sobre o crescimento nos trabalhos da Pontifícia União Missionária. Na sua lucidez, o padre Sávio soltou a seguinte pérola: “Fico feliz em saber dos avanços sobretudo no trabalho com os seminaristas. A missão ou cresce ou desaparece. Não existe uma missão estagnada. O perigo que corremos é de pensar somente nos nossos quintais. Gostaria que na missão considerássemos não somente o anúncio da fé, mas também o testemunho da caridade, da solidariedade com os povos mais necessitados. Se conseguíssemos comunicar o amor e a misericórdia de Deus ao mundo, isso já seria o suficiente”.

Produzir frutos mesmo pregados numa cruz

Os diálogos com o padre Sávio eram experiências humanas e divinas que tocavam o coração de seus interlocutores. Sintonizava como poucos, a vida com a experiência de Deus. Vale a pena recordar ainda o que disse em 2015 ao se despedir do Brasil: “O meu presente e meu futuro estão nas mãos do meu parceiro, o Dr. Parkinson que vai tomando posse de mim, cada vez mais arrogante e exigente. Ele pensa que vai me ganhar, mas o coitado ignora que nós pertencemos a uma raça de pessoas que, pela graça de Deus, produzem frutos também quando pregadas numa cruz” (SIM - jan/mar 2015).

Na comunidade de Parma, o padre Sávio viu a pandemia de Covid-19 levar alguns dos seus colegas, contudo ele foi poupado. “Estou vivo, pela misericórdia e graça de Deus”, disse-me certo dia em uma chamada telefônica. Também “pregado em sua cruz”, o padre Sávio nos fez entender que é possível ser útil mesmo estando doente, idoso ou fisicamente limitado. No silêncio e na oração permaneceu fiel à missão, a única razão de sua vida até a Páscoa definitiva. Ele que perseverou até o fim receba a coroa dos justos e interceda por nós e pelas necessidades da Igreja e do mundo.

* Pe. Jaime Carlos Patias, missionário da Consolata, diretor do Secretariado para a Comunicação IMC. Roma, 01 abril 2024.

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