Binômio ruptura e continuidade na política

Talvez o enigma esteja na forma de lidar com o binômio ruptura/continuidade. Nenhum tipo de construção social, por mais revolucionária que seja, pode levar em consideração somente a ruptura.

Por Alfredo J. Gonçalves

Há tempo que o edifício ruiu. Pessoalmente, sonhos e esperanças se romperam no caminho. Do ponto de vista social, político e econômico, lutas e projetos se estilhaçaram nos corredores obscuros do poder. Mofo e ferrugem se acumularam com o passar do tempo. O vinho novo da esperança cedeu lugar à apatia e às leis do mercado. Sem o óleo lubrificador dos princípios éticos e morais, a complexa engrenagem da burocracia administrativa emperrou. Pulverizou-se a construção d’ “O Brasil que queremos”, expressão cunhada do decorrer da 2ª SSB – Segunda Semana Social, em meados da década de 1990. Nas mãos vazias, às vezes sujas, ficaram os pedaços, os farrapos e os cacos. Será possível, com estes últimos, reerguer o prédio?

Boa parte dos atores e protagonistas envolvidos – agentes sociopastorais, movimentos, igrejas, grupos, trabalho de base, organizações não governamentais, entidades, campanhas, iniciativas populares, mobilizações – boa parte deles, repito, rebentou-se no chão. Não poucos rastejam e mordem o pó como serpentes recém-expulsas do paraíso. Amargaram a travessia do êxodo e do deserto, do exílio e da diáspora!... Mas nada de terra prometida! Nada daquelas alternativas tão ansiadas! Em lugar delas, sobraram montanhas de ruínas, cinzas e escombros. Uma vez mais, será possível com essas sobras levantar um novo edifício?

Talvez o enigma esteja na forma de lidar com o binômio ruptura/continuidade. Nenhum tipo de construção social, por mais revolucionária que seja, pode levar em consideração somente a ruptura. E inversamente, nenhum ideal conservador, por mais apegado que esteja à tradição e estrutura do passado, pode cantar somente o mantra da continuidade. A transformação sócio-transformadora rompe evidentemente com determinados mecanismos obtusos que entravam as mudanças urgentes e necessárias. Mas isso não quer dizer “jogar fora a criança com a água suja do banho”. Ao lado de uma ruptura indispensável com o projeto cristalizado e retrógrado, torna-se igualmente indispensável garimpar o entulho, separando criteriosamente os resíduos a serem atirados ao lixo do material que pode ser aproveitado para a nova obra.

Imediatismo, voluntarismo e personalismo – poder-se-iam acrescentar outros “ismos” – formam algumas das ervas daninhas que costumam frequentar o terreno insólito da política brasileira. Grande parte de nossos políticos, ao serem eleitos pelas urnas, fazem do próprio mandato um instrumento pessoal, familiar ou corporativista. Veem o campo administrativo como espécie de tábula rasa para os seus projetos. Daí um duplo equívoco: ou começam do zero, deixando de lado o que vem dos antecedentes; ou então, no extremo oposto, seguem o rumo das coisas como se nada tivesse acontecido. De um lado, ignoram a dose de ruptura necessária para estabelecer as bases de um novo governo e de uma nova esperança; de outro, ignoram do mesmo modo a dose necessária de continuidade para impedir uma passagem traumática.

A prática política passa a funcionar como um pêndulo entre dois polos. Em lugar de um estudo cuidadoso dos problemas e necessidades básicas da população, privilegia-se a cada eleição um dos polos. E estes nem sequer precisam ser os extremos de um espectro, como, por exemplo, direita e esquerda.

Com frequência, a polarização ocorre dentro da mesma concepção política, quando não dentro do mesmo partido ou coligação. Importante mesmo é deixar bem cravado o selo da marca pessoal, em vistas ao próximo pleito. Disso resulta que o extrato social que ergue a estátua é o mesmo que depois a reduz a cinzas. Pelo caminho, de ano a ano, restam as ruínas de obras e projetos inacabados. Proliferam, desse modo, os pedaços, os farrapos e os cacos de edifícios materiais, políticos e históricos que vão se fazendo, desfazendo e refazendo, sem qualquer avaliação mais séria. E tudo isso em detrimento de um uso correto, responsável e racional das verbas públicas. Os cofres do Estado tudo suportam, uma vez que os políticos estão mais interessados com suas contas bancárias. Resta o sábio desafio de governar com o grau certo de ruptura e continuidade, em benefício do bem-estar comum.

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do Serviço de Proteção ao Migrante (SPM) - Rio de Janeiro.

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