Se os santos falassem

A Boa Nova da Salvação passa pelo toque solidário.

Por Alfredo J. Gonçalves

Neste último feriadão, que incluiu o aniversário de São Paulo e o final de semana, me dei ao capricho de visitar uma série de igrejas no centro desta “pauliceia desvairada”, como a batizou o poeta Mário de Andrade. Por longos minutos, chegado às vezes a horas, pus-me a observar os devotos (alguns visivelmente turistas) que, sós ou acompanhados, iam entrando e saindo. Na penumbra das naves, a primeira coisa que chama a atenção é o modo de as pessoas manifestarem sua fé ou religiosidade. Se muitos visitantes apenas entram, dão uma volta pelos corredores e logo saem, uma expressiva porcentagem deles se detém por algum tempo diante do nicho de cada santo. Ali não raro se ajoelha, põe-se a gesticular, outras vezes a falar até mesmo em voz audível, antes de seguir para o próximo altar. Os mais requisitados são notoriamente Sto. Antônio, Sta. Luzia, São Francisco, Sta. Edwiges, N. Sra. Aparecida, São Sebastião. Compreensivelmente, poucos se dirigem ao sacrário, pois o Cristo eucarístico permanece sem corpo e oculto.

O que mais surpreende, todavia, é o número de pessoas que, além de ajoelhar, rezar e implorar, fazem questão de tocar na imagem. Quando esta encontra-se fora do alcance, serve tocar em algo que faça parte do próprio nicho/altar. E neste caso, o toque inclui também o metal ou madeira do sacrário, a toalha ou mesmo a lamparina permanentemente acesa que o acompanha. Ou então o altar das celebrações, e assim por diante. A devoção se expressa pelo toque na imagem do santo ou em algo com aureola de sagrado. Toques longos, aparentemente dramáticos, não poucos regados a suspiros e lágrimas... E eu me perguntava: quantas penas e desabafos deixam ali as pessoas? Quantas dúvidas e quantas perguntas sem resposta são ali depositados? Quantas dores e males sem remédio ali são carpidas em silêncio, aos pés do santo, da santa, de Maria ou do Deus invisível? Quantos nós não desatados, quantas desavenças, discórdias e desamores ganham ali algum alívio? De forma particular as mulheres, que representam a maioria, quantos hematomas cuidadosamente escondidos dos próprios familiares, para não piorar a violência de seu cotidiano brutal e tormentoso!?

Depõem ali sua angústia, na tentativa de retornar a casa com ao menos uma gota de bálsamo que as permita, a pulso, levar adiante suas vidas amarguradas. E minha pergunta se aprofunda: não será o toque a linguagem de quem muito sofreu ou muito amou? Quem em vida passou pelo céu ou pelo inferno, bem sabe que sem o toque amigo dificilmente nos salvamos. Um toque nas costas, no ombro, no braço constitui uma poderosa alavanca para quem experimenta o medo e a tristeza, o fracasso e o desengano, a frustração ou a impotência. As mães o pressentem naturalmente, mas todos necessitamos dessa “palavra feita de dedos” para erguer a cabeça, aliviar o pranto, enxugar as lágrimas e seguir em frente. Se na igreja as pessoas buscam o santo é porque nele podem tocar, falar de suas mágoas, ao passo que Deus permanece surdo e indiferente.

A verdade é que a existência humana consiste numa travessia através de uma densa floresta, emaranhada de espinhos. Dela, ninguém sai imune e ileso de arranhões. Diz, porém, o ditado popular que “não há feridas que não possam cicatrizar”. O toque solidário e o desabafo que encontra um alguém com tempo para escutar são verdadeiros remédios para os males do corpo e da alma. Com maior razão numa metrópole gigantesca e sem ouvidos, como esta selva de pedra. “A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida”, diz o poeta Vinicius de Morais. São Paulo, a cidade das multidões, é também a cidade da solidão e do abandono. O universo urbano é o deserto moderno. Neste, apesar de tantos rostos e tropeções, sentimo-nos não raro anônimos, irreconhecíveis, esquecidos. Em meio à multidão apressada, não há encontro/diálogo, e sim atropelo e indiferença. Esbarramo-nos, mas fugimos desconfiados do toque e do olhar.

E sempre no interior dessas igrejas, me dou conta das inúmeras vezes que Jesus de Nazaré, nos quatro relatos evangélicos, tocava e se deixava tocar pelos que o procuravam ansiosos: pobres, doentes, marginalizados. Indefesos, excluídos. “Alguém me tocou” – diz Ele. Os discípulos tentam demovê-lo dessa ideia: “Não vês a confusão reinante”? Mas a sensibilidade do Mestre tem plena consciência que alguém, mais abandonado e necessitado do que o “fã clube” que o segue pela estrada, necessita do toque divino para curar-se e salvar-se, para resgatar o corpo e a alma feridos. O mesmo irá se repetir com os cegos de nascença e com tantos outros “descartáveis” para uma sociedade cuja religião tinha se cristalizado em rituais e sacrifícios. A Boa Nova do Evangelho, a salvação, necessariamente passa pelo toque solidário. A condição humana, nua e desamparada, reveste-se do toque divino que lhe confere uma esfera nova e luminosa.

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM,  São Paulo.
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