A expressão do ano no Brasil foi mudanças climáticas. Logo atrás estão, respectivamente, resiliência e conflito.
Por Alfredo J. Gonçalves
De acordo com pesquisa realizada pela Cause junto com o Instituto Ideia, uma verificação dos termos que mais impactaram os brasileiros em 2023, a palavra do ano no Brasil foi mudanças climáticas. Logo atrás estão, respectivamente, resiliência e conflito. O resultado não surpreende quando levamos em conta as ondas de calor que caracterizam as últimas semanas, bem como os extremos a bem dizer invertidos de abrasadoras estiagens, por um lado, chuvas torrenciais e inundações, por outro: as primeiras na região amazônica e as segundas nos estados do Sul. Isso, sim, causou grande espanto, na medida em que vemos se avolumarem sempre mais os contrastes e contradições da natureza.
Lê-se na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, que “a humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e coletivos, sobre os seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflete também na vida religiosa” (GP, nº 4).
Ambos os parágrafos anteriores, a respeito das modificações da humanidade sobre a própria história e sobre a natureza, têm implicações diretas ou indiretas nos deslocamentos humanos de massa. O século XIX, por exemplo, em particular nos países do Ocidente, se viu profundamente sacudido pelos efeitos da Revolução Industrial. Com razão, certos estudiosos passaram a defini-lo como o “século do movimento”. Movem-no não apenas a energia da máquina a vapor nos mais diversos meios de transporte, e nem somente o comércio e suas mercadorias multiplicadas pela nova força produção e a produtividade – mas também os trabalhadores e trabalhadores, cruzando fronteiras, mares e oceanos.
Essas “profundas e rápidas transformações” sofrem uma aceleração centuplicada, a ponto de, ao longo do século XX, acabarem por explorar, desbravar e devastar os recursos naturais até a exaustão do planeta terra. A madeira enquanto combustível é substituída pelo carvão mineral e este pelo gás e petróleo, o que, ademais da devastação e contaminação do solo, do ar e da água, provoca o aquecimento global. Ou seja, as mudanças socioeconômicas e políticas desembocam nas mudanças climáticas.
Novamente aqui, aos milhares e milhões, os trabalhadores e trabalhadoras, se movimentam em massa, tanto em fuga das calamidades e catástrofes extremas, quanto em busca das oportunidades oferecidas. Desnecessário acrescentar que “fuga & busca” não possuem limites fixos e precisos, fundindo-se como as águas de diferentes igarapés.
Por trás de tantos e tão numerosos direcionamentos migratórios encontra-se uma opção política e econômica nem sempre confessada e confessável. No xadrez complexo da economia globalizada, migrantes e refugiados figuram como as ondas aparentes e superficiais de correntes subterrâneas invisíveis. Em outras palavras, a vertiginosa velocidade do processo de produção-comércio-consumo, ao mover as placas tectônicas do modo liberal e capitalista de organizar os bens de “nossa casa comum”, provocam poderosos abalos sísmicos que obrigam as pessoas a um vaivém crescente, diferenciado e em todas as direções.
Impõe-se urgente uma encruzilhada: das duas uma, ou mantemos esse ritmo alucinado (endiabrado?) de exploração da terra, solo e subsolo e bens disponíveis; de exploração da força de trabalho humana, beirando a escravidão e a fome; e de exploração do rico patrimônio cultural dos laços e relações que nos unem!.. Ou tiramos o pé do acelerador e em lugar do aumento a produção, primamos pela distribuição justa e equânime do que nos concede a terra e o trabalho, ao mesmo tempo que desenvolvemos um cuidado novo e especial por ambos. O planeta, as relações de trabalho e a redistribuição dos frutos clamam por uma reconversão. As mudanças político-econômicas de um lado, e as mudanças climáticas de outro estão a exigir transformações estruturais, no sentido de conferir cidadania digna a todo ser humano na terra onde nasceu e deixou enterrado seu umbigo, símbolo desse profundo pertencimento.
Somente essa segunda via – que substitui a exploração pelo cuidado – pode nos conduzir ao desejo tão bem expresso pelo Papa Francisco, em sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado deste ano: Livres de escolher se migrar ou ficar. O caminho dessa liberdade de escolha, entretanto, se revela lento e trabalhoso. Remete-nos às outras palavras do ano, citados no início: resiliência e conflito.
Conflito não pelo simples prazer bélico e litigioso, mas pelos obstáculos que comporta todo combate em favor da justiça e da paz. Quanto à resiliência, vale consultar os dicionários: capacidade natural para se recuperar de uma situação adversa; resistência, superação. A travessia do migrante tem que conhecer essas qualidades.