A metáfora poderia se estender à “nossa casa comum”, na expressão do Papa Francisco.
Por Alfredo J. Gonçalves
Passemos a palavra a um dos evangelistas: “Jesus estava ensinando numa sinagoga em dia de sábado. Havia aí uma mulher que, fazia dezoito anos, estava com um espírito que a tornava doente. Era encurvada e incapaz de se endireitar. Vendo-a, Jesus dirigiu-se a ela e disse: ‘Mulher, tu estás livre de tua enfermidade’. Jesus colocou as mãos sobre ela e imediatamente a mulher se endireitou, e começou a louvar a Deus” (Lc 13, 10-13). Lucas é o único que reporta esse episódio da mulher encurvada. Mulher encurvada que, de alguma forma, representa a condição das mulheres no contexto da época, encurvadas pelo peso de uma sociedade patriarcal, preconceituosa e de forte marginalização. Encurvada também pela sensação de culpabilidade e pecado diante da lei religiosa intolerante e da opinião pública, ambas facilmente interiorizadas.
Uma vez mais, Jesus não teme romper com a rígida legislação judaica – “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” – e com o toque de suas mãos recoloca a mulher de pé, novamente em condições de se levantar e caminhar com as próprias pernas. Mulher anônima, junto à qual se podem acrescentar tantas outras pessoas nas mesmas condições, mas que recebem a oportunidade de endireitar o próprio corpo, erguer a cabeça, olhar em frente, e endireitar igualmente a vida em direções alternativas. E uma vez mais, a religião é usada como uma espécie de apoio, um trampolim, uma plataforma para que todo e qualquer ser humano possa retomar sua existência, renovada pela fé e esperança em Deus.
O texto se aplica aos dias de hoje como a precisão de uma luva. Não são poucas as mulheres encurvadas na sociedade contemporânea. Subjugadas pelo patriarcalismo e o machismo, que se desdobram perversamente na violência doméstica, uma das mais comuns, porque protegida e inviabilizada, devido à inviolabilidade da casa/lar/família. Mas subjugadas também pelas duplas jornadas de trabalho e/ou pelos salários inferiores aos dos homens, no desempenho de tarefas absolutamente idênticas. E subjugadas, ainda, pela ameaça dos seus companheiros (sejam estes namorados, noivos, maridos ou amantes) quando se arriscam a um “não” perante um relacionamento malsucedido. Isso para sequer abordar, neste espaço reduzido, as consequências nocivas do medo, da vergonha, da difamação e da dependência econômica – peso que com grande frequência recai sobre as mulheres, encurvando-as e paralisando-as, impossibilitando-lhes novas relações.
Desnecessário acrescentar que a pandemia do Covid-19, ao levar ao desgaste inúmeras ligações amorosas devido ao convívio diário e compulsório pela obrigação do isolamento social, não raro agravou a situação de muitas mulheres. Estas viam-se forçadas a uma proximidade 24 horas por dia com aquele que, mesmo sendo seu companheiro (ou justamente por sê-lo), se achava no direito de dispor do seu corpo e da sua vida. Basta constatar o aumento da violência familiar e dos feminicídios não só no decorrer das contaminações e mortes, mas também no período que se seguiu, até os dias atuais. Ainda desta vez, mulheres encurvadas, e com possibilidades mínimas de dizer um sonoro “não”.
A metáfora da mulher encurvada, entretanto, poderia se estender à “nossa casa comum”, na expressão do Papa Francisco. A mãe Terra, efetivamente, representa nos tempos que correm um organismo vivo, sem dúvida, mas encurvado. As mudanças climáticas se abatem sobre ela com uma violência e uma rapidez cada vez mais devastadoras. A alternância sempre mais irregular e imprevista de frio e calor levados ao extremo revelam um organismo agitado e febril, que caminha a passos acelerados para um aquecimento global tantas vezes previsto e denunciado. Sucessivos furacões, ciclones, estiagens e inundações, entre outras catástrofes, fazem com que a Terra, mãe que deve ser fonte de vida e cuidado com sua continuidade, venha a se tornar lugar de fuga e de morte. Nosso planeta, com efeito, não suporta o ritmo enlouquecido e endiabrado do modelo político e econômico imposto pela fatia mais rica e poderosa da humanidade.
O lucro e a acumulação de capital não podem seguir sendo os motores da relação entre Natureza, de um lado, e Humanidade, de outro. Outros tipos de relação são possíveis e positivos, como nos ensinam numerosas experiências ao redor do globo. Mais do que a exploração até as últimas possibilidades do solo, subsolo, água, ar e florestas e animais, além da força de trabalho humana, torna-se urgente cultivar a convivência e o cuidado com as coisas e as diversas formas de vida, a biodiversidade. A Terra está encurvada! Qual o papel da fé em geral, e de cada religião em particular, para contribuir com a cura dessa enfermidade, devolvendo ao planeta o direito e o dever de ser mãe?