Solidão, a eterna companheira

Que minha solidão me sirva de companhia. Que eu tenha a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada. E mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Clarice Lispector

Por Juacy da Silva

Em 1982, quando eu integrava o Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, moramos por quase dez anos, na época com meus 40 anos apenas, menos da metade do que tenho hoje, fui designado para proferir uma palestra em um curso de Extensão, com aproximadamente 50 mulheres, senhoras na faixa dos 50 a 60  ou 70 anos, no Clube Militar da Lagoa, no Jardim Botânico.

O tema da palestra, ainda me lembro muito bem, era “O papel e os desafios da mulher na sociedade brasileira atual” (este atual eram os anos oitenta do século passado) e o objetivo era promover um diálogo com aquele grupo de mulheres, todas ou a quase totalidade, esposas ou viúvas de militares, sobre os desafios que, naquele período, as mulheres estavam enfrentando, no Brasil e no resto do mundo.

A conjuntura nacional era marcada pelo que seria considerado o início do fim do ciclo de governos militares, governo Figueiredo, já se falava em abertura, as passeatas pelas diretas já estavam iniciando suas articulações e já se vislumbrava um período de distensão política a institucional.

Falei sobre a evolução da luta das mulheres por emancipação, igualdade (de gênero), violência contra as mulheres, no mundo e no Brasil, sobre a mulher e o mercado de trabalho, sobre o papel da mulher na filantropia e nas ações sociais e também algumas reflexões sobre a presença e participação da mulher na política.

Depois de 45 ou 50 minutos de palestra, havia um intervalo para um lanche, um cafezinho e alguns diálogos mais coloquiais com as participantes, todas ávidas por questionamentos, perguntas e sugestões para que eu retornasse e pudesse ampliar aquele diálogo, o que acabou acontecendo por duas ou três vezes, abordando o mesmo tema, mas com outros enfoques.

Retornando ao recinto do curso, um auditório bonito, arejado e com uma vista magnifica tanto para a Lagoa Rodrigo de Freitas quanto para o Cristo Redentor, o que estimulava ainda mais as reflexões.

caminhoIniciado o segundo período que era denominado de “debates”, a coordenadora, se não me falha a memória era uma Procuradora aposentada do Estado do Rio Grande do Norte, chamada Zélia Madruga, não se hoje ainda está viva ou já partiu para o “andar de cima”, que há alguns anos havia realizado o Curso na Escola Superior de Guerra, selecionava as perguntas, que eram “feitas” por escrito, em um formulário próprio, e chamava cada participante que havia feito as perguntas.

O tempo entre pergunta e explicações complementares era de três minutos, cabendo ao palestrante um tempo um pouco maior, de cinco minutos, para responder ou refletir sobre os questionamentos. Diversas perguntas foram feitas, sobre os temas tratados durante a exposição.

Em um dado momento, a coordenadora chamou uma determinada participante, confesso que não me lembro o nome da mesma, quando ela ao iniciar o que seria a pergunta, apresentou-se disse o nome e alguns dados de praxe, informando que era viúva há alguns anos, filhos criados e ela estava morando sozinha.

A pergunta foi , mais ou menos a seguinte, “professor eu gostaria que o senhor discorresse um pouco mais sobre um assunto que afeta muito as mulheres, principalmente, mas não exclusivamente, as viúvas, que é a solidão, a angústia que ataca a gente, principalmente à noite”, como podemos resolver isto?”

Confesso que fui pego de surpresa diante daquela indagação, que, imediatamente, percebi que era uma situação real, concreta, o que poderíamos denominar de um “drama existencial”. Eu jamais, em toda a minha caminhada como professor e palestrante, em constantes viagens por diversos estados participando de cursos de extensão e de especialização sobre temas variados, jamais havia me defrontado com semelhante questionamento e que pela minha formação como sociólogo, mestre em sociologia e curioso em questões políticas, geopolíticas e militares, não era afeito a reflexões de natureza existencial, sobre dramas reais de pessoas que, seja pela viuvez ou por outras razões são obrigadas a viverem sozinhas, às vezes mesmo rodeadas de outras pessoas, mas sozinhas por dentro.

Informei à participante que a indagação, com certeza, seria melhor respondida ou objeto de reflexão mais profunda por parte de profissionais de outras áreas como psicologia, psicanálise, psiquiatria ou analista, mas que eu iria aventurar algumas reflexões, mesmo sabendo que não conseguiria responder a contento.

Quase 40 anos se passaram desde aquela indagação, eis que o destino ou a fatalidade veio colocar fim à nossa vida conjugal, quando no dia 20 de novembro de 2021, três dias após chegarmos aos EUA, para passar mais uma temporada de seis ou mais meses, com nossas filhas, netos e neta, Afife Bussiki da Silva, minha esposa querida e amada, exatamente durante 52 anos, 4 meses e 18 dias, teve sua vida terrena interrompida, por uma parada cardíaca fulminante, sem que qualquer socorro pudesse restaurar-lhe a vida. O nosso juramento matrimonial estava sendo cumprido... “até que a morte os separe”, e assim, muitos planos e sonhos foram interrompidos de forma definitiva.

Foi a experiência mais profunda, triste e dramática de minha vida, eu nunca havia presenciado a morte de alguém e, de repente, mesmo rodeado de minhas filhas, netos e neta, senti o que aquela senhora colocara como fundamento de seu questionamento, a solidão, a angústia e a tristeza mais profunda que jamais havia sentido, passaria a fazer parte de meu cotidiano, dia e noite, mas principalmente à noite quando a gente consegue ouvir o “barulho” de um silêncio profundo que nos invade a alma e teima em falar bem de mansinho, como um diálogo com o nosso interior e também nos induz a um diálogo com o criador, com a divindade em que a gente acredita, pouco importa o nome que a gente costuma dar a este Ser que transcende a nossa compreensão que, para nós cristãos, denominamos de Deus.

Há poucos dias celebramos na Catedral Senhor Bom Jesus de Cuiabá, na presença de apenas algumas pessoas amigas e parentes, uma missa para rememorarmos os 18 meses, exatamente um ano e meio do falecimento de Afife, mãe dedicada, avó super carinhosa, esposa maravilhosa, companheira em todas as horas, tanto em meio às alegrias quanto aos dissabores, tristezas e desafios que a vida nos reserva.

Na celebração, a missa rezada pelo nosso amigo e conselheiro, Padre Deusdédit, foi, por um momento, poucos minutos, em que conseguiu realizar uma viagem mental, interior, ao longo de mais de meio século de vida conjugal e familiar, consegui relembrar tantos detalhes, nossas mudanças no Brasil e nos EUA, mais de 15 ou quase 20; o nascimento das filhas, dos netos e da neta, o período da adolescência, juventude e idade adulta das mesmas, a experiência delas vindo a ser também mães e o tempo em que, Afife e eu, vivíamos sozinhos aqui em Cuiabá enquanto as filhas, netos e neta nos EUA e depois parte da família na Europa.

Mesmo quando vivíamos sozinhos em Cuiabá, Afife e eu, na mesma casa onde moramos desde que casamos, há mais de 52 anos, voltávamos a ocupar, toda impregnada de lembranças de quando duas de nossas três filhas viveram seus primeiros anos de existência.

Como éramos apenas nós dois, Ela e Eu, vivíamos sozinhos, vez por outra recebendo a visita de parentes e algumas pessoas amigas,  mas em completa harmonia e não nos sentíamos sozinhos, “fazíamos companhia mutuamente”, costumávamos caminhar diariamente de mãos dadas, o que sempre chamava a atenção das pessoas e, neste sentido a solidão não tinha lugar e vez em nossas vidas.

Todavia, como há algum tempo escrevi um artigo intitulado “Mulheres invisíveis”, tentando refletir sobre a vida das viúvas, principalmente das que vivem totalmente solitárias, as vezes em estado de extrema pobreza, apesar de que muitas após a partida do cônjuge continuam a viver na companhia de filhos/filhas, netos/netas, cujas situações emocionais e existenciais são diferentes, pelo fato de que as primeiras vivem realmente sozinhas.

No artigo abordei apenas a situação das viúvas, já que representam a grande maioria das pessoas cujos cônjuges deixaram este plano terreno. Os viúvos são muito menos em quantidade em todos os países, inclusive no Brasil, quando comparados com as viúvas.

Não sei o que se passa com os viúvos, pois ainda não me foi dada a oportunidade de “pesquisar”, indagar de alguns desses sobre os desafios existenciais e emocionais que enfrentam. Mas sei como eu me sinto, uma luta permanente para impedir que a angústia, o medo, a solidão e, o que é mais grave, a depressão e ansiedade tomem conta de minha saúde mental e emocional.

Ao longo desses 18 meses de vida solitária, “curtindo” a solidão, se é que este termo pode ser utilizado neste contexto, ou passando pela experiência real, concreta de viver sozinho, em uma casa, relativamente  grande, onde tudo relembra uma vida familiar e conjugal longa, confesso, não tem sido fácil.

Por inúmeras vezes parentes e amigos resolvem me dar conselhos, sugestões e falam “você deveria ir morar em um apto”, que é mais seguro, tem vizinhos, tem movimento e isto ajudaria a você vencer esta fase de solidão e às vezes tristeza ou então “porque você não vai morar definitivamente com suas filhas nos EUA?”. Outros parentes, amigos e amigas me recomendam procurar um analista, psicólogo/psicóloga; tomar chá disto ou chá daquilo ou remédio para dormir etc etc.

Entendo a preocupação, a atenção e carinho dessas pessoas para comigo, afinal,  já estou entrando na quarta idade, do alto de meus 81 anos de vida, mas com boa saúde física, mental, emocional , enfim, saúde total e plena. Ainda consigo viver, mesmo sendo idoso, com autonomia e liberdade. Mas sei que pessoas idosas não devem não deveriam morar e viver sozinhas, seja por questões de segurança ou algum problema mais grave que possa acontecer.

Graças a Deus e aos meus esforços, tenho conseguido encarar esta minha nova companheira, companhia que é exatamente a mesma sobre a qual aquela senhora me havia feito a pergunta há praticamente 41 anos, lá no Rio de Janeiro.

Às vezes não consigo dormir, como seria necessário, sei que isto não é bom, que o sono é um dos pilares, um dos fundamentos, ao lado dos exercícios físicos, da alimentação saudável e correta, da participação social, dos cuidados com as doenças que acometem de forma mais grave e mais intensa as pessoas idosas, a tomar as medicações (recomendadas pelos profissionais da saúde – médicos, médicas), a exercitar meu cérebro, principalmente através de muita leitura e a escrita sobre temas variados, a praticar alguma forma de espiritualidade, enfim, procurar ter uma vida plena, mesmo diante das limitações da idade e da conjuntura.

Assim, não fico angustiado diante da solidão; quando ela se aproxima, principalmente à noite, às vezes de madrugada, procuro dialogar com ela, refazendo a jornada já percorrida e pensando na continuidade da mesma, que pode ser de pouco tempo, dias, semanas, anos ou bem longa, como costumo referir, meu horizonte temporal, de existência terrena eu tenho colocado em termos de Centenário, ou seja, em meus planos, até mesmo quando estou dialogando com minha, agora eterna companheira – que é a solidão – faço planos, tento detalhar minhas próximas viagens, no Brasil e no exterior; tento participar ao máximo que eu posso de projetos que representam a continuidade de lutas do passado, em defesa dos direitos dos pobres, excluídos, do meio ambiente, da justiça social.

Isto também tem um significado mágico, faz-me voltar ao período da juventude, dos tempos e dos movimentos estudantis, dos desafios e dos sonhos de criança, de adolescente e de jovem, irriquieto, destemido, após ter saído do convívio familiar, com apenas 13 anos de idade, de uma pequena cidade - Dourados, hoje, Mato Grosso do Sul, então apenas Mato Grosso, para ir sozinho estudar em São Paulo, naquela época, já uma grande metrópole, sempre a maior do Brasil. Tempos também complicados, difíceis, mas tempo de muitos sonhos e desafios que continuam povoando meu ser.

Lá aprendi a viver sozinho, a ter que enfrentar todos os desafios, inclusive também outra forma de solidão, diferente da que hoje é minha companhia e companheira.

Ler, escrever, ouvir música, meditar, rezar, orar, enfim falar com Deus,  fazer longas caminhadas de 6; 8; 10 ou até 15 ou 19 km, sozinho, quando dialogo com meu Eu interior e com Deus, fazer o  bem a outras pessoas que enfrentam algum tipo de dificuldades materiais ou existenciais, refletir sobre o real significado da vida, são algumas formas que utilizo para encarar o que para muita gente é um verdadeiro “bicho papão”, que para essas pessoas causam até medo, um verdadeiro terror, mas que para mim é apenas uma companheira invisível com a qual dialogo, como se diz, “numa boa”.

“Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. Somente através do amor e das amizades é que podemos criar a ilusão, durante um momento, de que não estamos sozinhos”. Orson Welles

Juacy da Silva, professor universitário aposentado, sociólogo, mestre em sociologia, ambientalista, articulador da PEI Pastoral da Ecologia Integral. Email profjuacy@yahoo.com.br Instagram @profjuacy Whats app 65 9 9272 0052

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