A libertação é um processo, uma caminhada coletiva, através do diálogo e só ocorre quando as massas de excluídos, injustiçados e explorados tiverem a consciência de que também tem direitos e fazem jus à dignidade humana.
Por Juacy da Silva
Sonhar é imaginar o impossível, é ver possíveis os desejos mais profundos, é a capacidade de criar uma nova realidade. A expectativa de mudança, seja pela expressão de uma mente criativa e dinâmica ou pela fuga de uma vida de sofrimento, perda e privações. Eduardo Marchiori, em A Importância de Sonhar, 30/01/2019.
Sonhar com libertação simboliza que a autoestima de quem luta por uma causa aumenta e a pessoa ou os grupos sociais se sentem melhor preparados e empoderados ao tomarem decisões ou agirem em qualquer situação, onde uma mudança radical do “status quo” seja a única solução para o estabelecimento de uma nova ordem econômica, social, cultural ou política.
Um sonho para ter o poder de transformar, revolucionar a realidade, mudar paradigmas, em busca de uma sociedade justa, solidária, inclusiva e sustentável, precisa de muitas pessoas sonhando, agindo, lutando juntas. Ninguém se liberta sozinho/sozinha. A libertação é um processo, uma caminhada coletiva, através do diálogo e só ocorre quando as massas de excluídos, injustiçados e explorados tiverem a consciência de que também tem direitos e fazem jus à dignidade humana.
Em seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, pronunciado em Washington, quando da grande marcha que os negros/negras realizaram em 28 de Agosto de 1963, há praticamente 70 anos, pavimentou a luta contra o racismo estrutural nos EUA. Assim discursou Martin Luther King, Jr “Eu tenho um sonho de que, um dia, até mesmo o estado do Mississipi, um estado sufocado pelo calor da injustiça, será transformado num oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos/filhas, um dia, viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo conteúdo de seu caráter. Quando deixarmos soar a liberdade, quando a deixarmos soar em cada povoação e em cada lugarejo, em cada estado e em cada cidade, poderemos acelerar o advento daquele dia em que todos os filhos de Deus, homens negros e homens brancos, judeus e cristãos, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar com as palavras do antigo espiritual negro: "Livres, enfim. Livres, enfim. Agradecemos a Deus, todo poderoso, somos livres, enfim”.
Além da consciência de seus direitos e da dignidade intrínseca como seres humanos, a libertação exige um passo a mais, a coragem para lutar por direitos, dignidade, justiça, liberdade e equidade. Existe um pensamento que afirma “quem não tem coragem para lutar por seus direitos, não é digno/digna de tê-los”.
O que transforma a realidade não são apenas os sonhos, mas a coragem de lutar para que os sonhos sejam transformados em realidade, ou seja, os sonhos são as bases para as ações. Sonhos sem ação ficam apenas no plano da contemplação interior e ação sem ter sonhos em sua base,não tem poder de descortinar novos horizontes e a coragem de mudar paradigmas ultrapassados.
Dizem que a história não é outra coisa a não ser a luta por libertação, através de décadas, séculos e milênios. A escravidão, a exclusão, a discriminação, seja de gênero, idade (etarismo) ou que tenha por base algum fator; o racismo, principalmente o racismo estrutural, são formas que aprisionam milhões de pessoas na indignidade humana.
No plano religioso, transcendental, a libertação do pecado, em busca do paraíso perdido, do “Jardim do Eden”, da “Terra sem Males” e na perspectiva apocalíptica, da “Nova terra e novo Céu”, sempre é enfatizada, porém em uma dimensão que as vezes ignora ou mascara a realidade política, social e econômica, contribuindo, assim, para aprofundar a alienação, principalmente entre as camadas pobres e excluídas. É neste sentido que surge uma frase muito polêmica de Karl Marx, quando diz que “a religião é o ópio do povo”. Com isso ele queria dizer que a religião serve como um anestésico para suportar o sofrimento enfrentado pelos trabalhadores.
No entanto, não podemos permitir que tudo seja transformado em fonte de alienação política, cultural e ideológica, impossibilitando que as pessoas, grupos e países escravizados, injustiçados, vilipendiados e excluídos imaginem que sempre foi, é, continua sendo e será eternamente.
O fator trabalho é um bom exemplo. Para os escravocratas, a escravidão não era problema, mesmo que esta prática desumana que vigorou por séculos e milênios tenha sido utilizada para a acumulação de bens, riquezas, propriedades e até mesmo como base para uma vida de luxúria e nababesca; apesar de que a escravidão seja a forma mais cruel no contexto social, político e econômico.
Todavia, apesar desta forma cruel, que impunha ou ainda hoje impõe sofrimento e morte a tantas pessoas, mesmo assim, isto não impediu que ao longo da história grupos religiosos, Igrejas e pessoas que se diziam ou se dizem “tementes” a Deus ou aos “deuses”, utilizassem do trabalho escravo , ou na atualidade trabalho semiescravo ou “análogo à escravidão” em proveito próprio.
Assim, a luta por dignidade humana, em defesa dos direitos humanos, estejam eles inscritos em leis, decretos ou regulamentos, inclusive nas Constituições Nacionais ou em tratados internacionais, mas que na verdade não passam de letra morta, como se diz “para inglês ver”, tem sido uma constante.
A realidade também tem demonstrado que a luta pela libertação das pessoas ou dos povos, que vivem sob o jugo das injustiças, da opressão, da exclusão, do desrespeito aos princípios básicos da dignidade humana, tem custado o sofrimento, a tortura, o encarceramento e até mesmo a vida de milhares de quem são conceituados como “ativistas”, que lutam, seja pela plenitude dos Direitos Humanos em geral ou específicos.
Na atualidade a questão da violência contra a mulher, principalmente a violência física, psicológica, moral, financeira, patrimonial continua representando paradigmas arcaicos, patriarcais, machistas que colocam a mulher na condição de propriedade do marido, do namorado, do noivo ou do amante e, neste sentido, a mulher passa a viver na condição que se assemelha a escravidão.
Da mesma forma que o senhor (escravocrata) tinha o escravo como sua propriedade, sobre o qual tinha poder de vida e morte; também a violência contra a mulher nos dias atuais, em todos os países, inclusive no Brasil, coloca na condição de escrava, independente da cor da pele; razão pela qual a luta pela igualdade de direitos em termos de gênero é também um sonho de libertação.
O mesmo também ocorre em relação ao meio ambiente, quando, por exemplo, a Constituição Federal de nosso país (1988) estabelece de forma clara que o meio ambiente é objeto da garantia e reconhecimento como um direito, aos estabelecer que “Art. 225. – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.
A luta contra o desrespeito a esses preceitos constitucionais tem custado perseguição, intolerância, ameaças, sofrimento e até mesmo a vida de muitos ambientalistas, como Chico Mendes, Irmã Dorothy, inúmeras lideranças de trabalhadores rurais, posseiros, extrativistas e de povos indígenas, cujo exemplo, mais recente, que apenas confirma o que tem ocorrido ao longo da história do Brasil, é o genocídio do povo Yanomami e de tantas outras lideranças indígenas país afora.
Enfim, a defesa da democracia, do estado democrático de direito se essas lutas não estiverem realmente ancoradas em sonhos de libertação do povo que vive em condição “análoga à escravidão” (que não deixa de ser um eufemismo), tudo não passará de um engodo, uma vez que as estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais permanecem inalteradas, reproduzindo os mesmos processos que geram dependência, injustiças e violência contra as pessoas ou grupos sociais e demográficos.
Por isso, os sonhos de libertação não podem estar vinculados apenas aos discursos, ao enunciado das leis e regulamentos, precisam ir mais a fundo, fomentar ações que sejam sociotransformadoras baseadas em novos paradigmas.
Precisamos refletir de forma mais crítica, inclusive, em relação à definição de políticas públicas e suas implementações e substituir tantos “blá-blá-blá”, por medidas concretas.
Os sonhos de libertação precisam estar ancorados em três dimensões, como podemos imaginar em um triangulo: na base do triângulo deve estar o conhecimento, pois sem conhecermos a realidade em toda a sua profundidade, nada muda; do lado esquerdo do triângulo podemos colocar a segunda dimensão que é a conscientização, incluindo a interpretação da realidade, suas causas verdadeiras; e do lado direito do triângulo, a terceira dimensão, que são os novos paradigmas, que representam a nova realidade que buscamos, sonhamos ou almejamos.
Pense nisso, reflita, dialogue com outras pessoas, engaje-se nas diversas formas e frentes de luta para libertação de quem sofre, de que é violentado/violentada, de quem é injustiçado/injustiçada, de quem seja excluído/excluída, de quem vive na pobreza e na miséria. É neste contexto que se sonha com a libertação!