O ano de 2023 marca o aniversário de 10 anos de pontificado do papa Francisco.
Por Angelo Ricordi
No dia 13 de março de 2013, os cardeais reunidos em Roma elegeram como papa, o argentino Jorge Mario Bergóglio. Para a surpresa dos fiéis reunidos na Praça da Basílica de São Pedro, além da escolha de um latino-americano, o nome Francisco causou grande comoção. Dias depois o Papa explicou a escolha do nome: “Na eleição, eu tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo, um grande amigo. Quando a coisa começou a ficar um pouco perigosa, ele começou a me tranquilizar. E quando os votos chegaram a 2/3, aconteceu o aplauso esperado, pois, afinal, havia sido eleito o Papa. [...] Ele me abraçou, me beijou e disse: 'Não se esqueça dos pobres'. Aquilo entrou na minha cabeça. Imediatamente lembrei de São Francisco de Assis."
O cardeal cubano Jaime Ortega revelou que na Conferência Geral do dia 09 de março de 2013, que antecedeu a eleição de Francisco, falando aos demais cardeais, Bergóglio descreveu qual deveria ser o perfil do próximo Papa: “Um homem que, através da contemplação de Jesus e da adoração de Jesus, ajude a Igreja a “sair de si mesma rumo às periferias existenciais, que a ajude a ser a mãe fecunda que vive da doce e reconfortante alegria de evangelizar[1]”. Ao ser eleito, esse modelo programático de papado pode ser encontrado na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: “Quero , com essa exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de convidá-los para uma nova etapa evangelizadora marcada por essa alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos” (EG, n.1).
Inspirados nessas palavras, queremos nesse artigo sublinhar 10 marcos do caminho percorrido pelo Papa Francisco nesses 10 anos do seu pontificado.
1. Conversão e reforma eclesial:
O primeiro marco nos é revelado pelo teólogo Marcio de França Miranda, na obra a Reforma de Francisco ao destacar que um dos núcleos centrais do seu pontificado está em recuperar o anúncio da mensagem cristã por meio de uma Igreja que anuncie e proclame o coração da mensagem de Jesus Cristo : “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação (EG, n.27) “Uma pastoral em chave missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário (EG, n.34).
2. Igreja “em saída”
O segundo aspecto que queremos destacar do seu pontificado é o modelo de uma Igreja missionária e descentrada. “O principal sentido da Igreja é estar a serviço da implantação do Reino de Deus; ela não é o fim, ela é meio, instrumento de Deus”[2]. Para isso, nos recorda Francisco: “Cada cristão e comunidade há de discernir qual o caminho que o Senhor lhe pede [...] sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho (EG, n.20).
3. Redescobrir a dimensão pessoal do encontro com Cristo
O aspecto central do encontro com Cristo marca fortemente o pensamento do Papa Francisco. Tanto do Documento de Aparecida, como na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, Francisco recupera uma afirmação magistral do Papa Bento XVI: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (EG, n.7; Documento de Aparecida, n. 243).
4. A santidade ao alcance de todos
Como decorrência primeira do encontro com Cristo e da vivência trinitária de uma espiritualidade encarnada, Papa Francisco nos ensina na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: “Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra sem a conceber como um caminho de santidade, porque “a vontade de Deus é que sejais santo (1ª Ts 4,3). Cada santo é uma missão, um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, em um momento determinado da história, um aspecto do Evangelho (n. 19). Essa santidade não se restringe aos santos canonizados ou beatificados, mas às pessoas que vivem no cotidiano de suas vidas a santidade ao pé da porta, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus” (n. 7).
5. O discernimento
Como bom filho de Santo Inácio, Francisco nos ensina que o discernimento é a característica mais importante da espiritualidade inaciana: “O discernimento é a leitura narrativa dos momentos bons e dos momentos escuros, das consolações e desolações que experimentamos ao longo da nossa vida. No discernimento é o coração que nos fala de Deus, e nós devemos aprender a compreender a sua linguagem. Perguntemo-nos, no final do dia, por exemplo: o que aconteceu hoje no meu coração? Alguns pensam que fazer este exame de consciência é fazer a contabilidade dos pecados que cometemos – e cometemos muitos – mas é também perguntar-se “o que aconteceu dentro de mim, tive alegrias? O que me causou alegria? Fiquei triste? Qual o motivo da tristeza? E assim aprender a discernir o que acontece dentro de nós” (Catequese do Discernimento, 19/11/2022).
6. O nome de Deus é misericórdia
Em 13 de março de 2015 o Papa Francisco ao anunciar a proclamação de um Ano Santo Extraordinário escreveu: “Decidi convocar um Jubileu Extraordinário que tenha seu centro na Misericórdia de Deus. Será um Ano Santo da Misericórdia”. O paradigma de uma Igreja Misericordiosa estava no centro de sua reflexão: “A Igreja não está no mundo para condenar, mas para permitir o encontro com aquele amor visceral que é a misericórdia de Deus. Para que isso aconteça, tenho repetido muitas vezes, é preciso sair [...] Espero que o jubileu extraordinário faça emergir cada vez mais o rosto de uma Igreja que redescobre as entranhas da misericórdia e que vai ao encontro de tantos feridos necessitados da escuta, compreensão e amor (Deus é misericórdia, p.86).
7. A fraternidade e a amizade social
O discernimento no pensamento de Francisco nos conduz à misericórdia, vivida como um projeto onde todos somos irmãos, onde a fraternidade e amizade social são o caminho para a recuperação da dignidade de cada pessoa humana: “Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente [...] precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar para frente. Como é importante sonhar juntos. Sozinho corre-se o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é junto que se constroem sonhos” (FT, n.8).
8. A casa comum
Sobre a ecologia nos adverte o Papa Francisco: “A ecologia humana é inseparável da noção de bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social. É o conjunto das condições da vida social que permite, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (LS, n.156). Em outras palavras, a ecologia e o cuidado com a Casa Comum passam pelo enfrentamento das desigualdades a que estão submetidos os homens e mulheres mais vulneráveis.
9. Pacto educativo global
Tudo começa e termina na educação integral: “Se queremos um mundo mais fraterno, devemos educar as novas gerações para reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada um nasceu ou habita (FT, 1). Este princípio fundamental – «conhece-te a ti mesmo» – orientou sempre a educação, mas é necessário não descurar outros princípios essenciais: «conhece o teu irmão», a fim de educar para o acolhimento do outro [cf. Carta enc. Fratelli tutti; Documento sobre A fraternidade humana (Abu Dhabi, 04/II/2019)]; «conhece a criação», a fim de educar para o cuidado da casa comum (LS); e «conhece o Transcendente», a fim de educar para o grande mistério da vida. Temos a peito uma formação integral que se resume no conhecer-se a si mesmo, ao próprio irmão, à criação e ao Transcendente. Não podemos esconder às novas gerações as verdades que dão sentido à vida. (Papa Francisco, Audiência 05/11/2021).
10. Economia solidária
A economia e a política estão interconectas fortemente no Pacto Global de Francisco: “Necessitamos de políticos apaixonados pela missão de garantir para todo o povo os três Ts – terra, teto, trabalho.- além da educação e serviços de saúde. Isto é, políticos com horizontes amplos, que abram novos caminhos para que o povo se organize e se expresse” (Vamos sonhar juntos, p.123).
A escolha destes 10 marcos não exclui outras perspectivas ou diferentes visões sobre o papado de Francisco. Ela tem uma função pedagógica que nos convida a perceber que nestes 10 anos de pontificado, Francisco foi fiel ao projeto de uma Igreja descentrada, que redescobre a pessoa e a mística de Jesus de Nazaré, vivida na perspectiva da misericórdia, encarnada no discernimento, na vivência da fraternidade, na educação integral e ecológica que nos convidam a uma práxis revolucionária. O Pacto Educativo Global e a Economia de Francisco e Clara, mais do que simples movimentos, são apostas concretas da utopia e do desenvolvimento integral presentes no sonho de Jesus para toda a humanidade: vida em plenitude para todos (Jo 10,10).
Ao percorrermos o caminho realizado até aqui por Francisco nos deparamos com um modelo de liderança profética e servidora que ultrapassa as fronteiras da Igreja Católica e dialoga com o mundo todo. Ao fazer esse diálogo de maneira propositiva e consciente, reconhecemos os limites e o alcance de sua proposta, seja dentro da própria Igreja, seja na oposição sistemática do mercado à proposta de um desenvolvimento integral. O modelo da liderança humilde de Francisco é mais complexo do que seus detratores pensam. Exige ampliação da consciência, reposicionamento da própria Igreja diante do mundo e dos seus problemas. Termino com a imagem do peregrino, metáfora presente no pensamento de Francisco: “alguém que descentra e, assim, consegue transcender. Sair de si mesmo, se abre para um novo horizonte e, quando volta para casa, já não é mais o mesmo, e sua casa também não será. É tempo de peregrinação” (FRANCISCO, 2020).
REFERÊNCIAS
DOCUMENTO DE APARECIDA. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Edições CNBB, Paulus, Paulinas, 2008.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. A alegria do Evangelho sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus-Loyola, 2013.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si – sobre o cuidado da Casa Comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
FRANCISCO, Papa. O nome de Deus é misericórdia. São Paulo: Planeta, 2016.
FRANCISCO, Papa. Gaudete et Exsultate – Sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2018.
FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. São Paulo: Paulus, 2020.
FRANCISCO, Papa. Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
FRANCISCO, Papa. Discursos. Encontro “Religiões e Educação: Pacto Educativo Global”. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2021/october/documents/20211005-pattoeducativo-globale.html. Acesso em: 01 de fevereiro de 2022.
FRANCISCO, Papa. Audiência Geral. Catequese sobre o discernimento 6. Os elementos do discernimento. O livro da própria vida (19/10/2022). Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2022/documents/20221019-udienza-generale.html. Acesso em: 01 de fevereiro de 2022.
MIRANDA, Mario de França. A reforma de Francisco. Fundamentos teológicos. São Paulo: Paulinas, 2017.
Rodari, Paolo. O discurso de Bergoglio que convenceu os cardeais a elegê-lo: “A Igreja deve sair de si mesma”. Tradução de Moisés Sbardelotto. In: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/186-noticias-2017/565907-o-discurso-de-bergoglio-que-convenceu-os-cardeais-a-elege-lo-a-igreja-deve-sair-de-si-mesma Acesso em 01 de jan. 2023.
[1] https://www.ihu.unisinos.br/categorias/186-noticias-2017/565907-o-discurso-de-bergoglio-que-convenceu-os-cardeais-a-elege-lo-a-igreja-deve-sair-de-si-mesma
[2] MIRANDA, Mario de França. A reforma de Francisco, fundamentos teológicos. São Paulo: Paulinas, 2017, p.60.