Butembo-Beni, Goma, Bunia, Bukavu e Uvira, destas localidades localizadas na parte oriental da República Democrática do Congo, devastadas pela violência sem fim por parte de vários grupos armados, são provenientes as 4 vítimas da violência que na tarde da quarta-feira, dia 1º, na Nunciatura Apostólica em Kinshasa, ofereceram seu testemunho ao Papa Francisco.
Por O São Paulo
Butembo-Beni, Goma, Bunia, Bukavu e Uvira, destas localidades localizadas na parte oriental da República Democrática do Congo, devastadas pela violência sem fim por parte de vários grupos armados, são provenientes as 4 vítimas da violência que na tarde desta quarta-feira na Nunciatura Apostólica em Kinshasa, ofereceram seu testemunho ao Papa Francisco.
O testemunho de um jovem e outros adolescentes
O primeiro a falar é Ladislas Kambale Kombi, de 17 anos. Seu relato é assustador: ele diz que seu irmão mais velho foi morto em circunstâncias ainda desconhecidas, e seu pai também atingido “por homens com calças de treinamento e camisas militares”. Ele já viu tudo e não consegue mais dormir. Esses homens cortaram seu pai em pedaços, “depois sua cabeça decepada foi colocada em uma cesta” e antes de partir levaram sua mãe que nunca mais voltou. Assim ele e suas duas irmãzinhas ficaram sozinhos.
“É difícil entender tamanha maldade, essa brutalidade quase animal”, afirma e apresenta ao Papa outros jovenzinhos que, como ele, experimentaram pessoalmente a violência e diz: “Seguindo o acompanhamento espiritual e psicossocial de nossa Igreja local, eu e as outras crianças que estão aqui perdoamos nossos algozes. Eis porque coloco diante da Cruz de Cristo vencedor o facão igual ao que matou meu pai”.
Também Léonie Matumaini, que frequenta a escola primária, que colocar junto à cruz uma faca “igual àquela que matou todos os membros da minha família na minha presença e que me foi dada pelos carnífices”. Então Kambale Kakombi Fiston, 13 anos: “Eu perdôo os carnífices que me sequestraram por 9 meses. Peço a Cristo vitorioso na cruz que toque o coração dos algozes para que libertem as outras crianças que ainda estão no mato”.
Uma menina de Goma: estuprada por um ano e sete meses
O testemunho de Bijoux Mukumbi Kamala é lido por Kissa Catarina, porque Bijoux, que está próxima dela, não lê bem o francês. Tem 17 anos. Em 2020, enquanto ia ao rio buscar água com outras meninas, encontrei alguns rebeldes. “Eles nos levaram para a floresta. Cada um dos rebeldes escolhia quem quisesse. O comandante me queria. Ele me violentou como um animal. Foi um sofrimento atroz. Eu permaneci praticamente como sua mulher. Ele me violentava várias vezes ao dia, quando queria, por várias horas. E isso durou 1 ano e 7 meses.” Depois de todo esse tempo, um golpe de sorte: a oportunidade de fugir com uma amiga”.
“Dessa experiência – continua seu testemunho – engravidei. Tive meninas gêmeas, que nunca conhecerão o pai. As outras amigos que foram raptadas comigo naquele dia nunca mais voltaram.”
Denuncia os assassinatos perpetrados em todo o lado por dezenas de grupos armados, as famílias forçadas a deslocar-se, as crianças deixadas órfãs, exploradas nas minas ou como soldados, as meninas e mulheres violadas e torturadas.
“Santidade, em tudo isto a Igreja continua a ser o único refúgio que cura as nossas feridas e consola os nossos corações por meio dos seus numerosos serviços de apoio e conforto”. Sob a cruz de Cristo, Bijoux quer colocar uma esteira “símbolo da minha miséria de mulher violentada”.
Suas palavras são tocantes quando ela pede ao Senhor que a perdoe “pelas condenações que fiz em meu coração contra esses homens” e de perdoar seus estupradores e os levar “a desistir de infligir sofrimento desnecessários às pessoas”. Junto à esteira coloca uma lança “igual àquela com que foram perfurados os peitos de muitos de nossos irmãos. Que Deus nos perdoe a todos – conclui – e nos ensine a respeitar a vida humana”.
Uma vítima de Bunia: só precisamos de paz
É a vez de um sacerdote, padre Guy-Robert Mandro Deholo, mutilado nos dedos de uma das mãos, apresentar o testemunho que Désiré Dhetsina havia escrito antes de desaparecer há alguns meses, do qual não há notícias. Era um sobrevivente de um ataque a um acampamento de deslocados na noite de 1º de fevereiro de 2022 por um grupo armado que matou 63 pessoas, incluindo 24 mulheres e 17 crianças.
“Vi a ferocidade: pessoas cortadas como carne de açougue, mulheres estripadas, homens decapitados”. Ele fala de saques contínuos, assassinatos, sequestros naquele campo, “parece – escreve – que a execução de um plano de extermínio, de aniquilação física, moral e espiritual, continua todos os dias”. E manifesta a necessidade de paz, a vontade de regressar às suas aldeias, de reconstruir as suas casas, de voltar a cultivar a terra, “longe do barulho das armas! Queremos viver com dignidade como filhos e filhas de Deus”. Em seu nome e de outros desabrigados, alguns facões e martelos são colocados sob a cruz “para que Cristo nos perdoe o sangue derramado injustamente” e lhes proporcione “momentos de paz e tranquilidade em que todos tenham bons sentimentos um pelo outro”.
O sofrimento de uma província inteira: inundações e confrontos
O último testemunho é de Emelda M’Karhungulu de Bugobe, uma cidade a sudoeste de Bukavu. Ela também não fala francês, então é Almée quem lê para ela. Ela tinha 16 anos quando uma noite em 2005 os rebeldes invadiram sua aldeia “fazendo tantos reféns quanto podiam, fazendo-os carregar as coisas que haviam sido saqueadas”.
Muitos homens mortos no caminho, mulheres levadas para o parque Kahuzi-Biega. A narrativa testemunha uma violência horrível: “Fui mantida como escrava sexual e abusada por três meses. Todos os dias, cinco a dez homens abusavam de cada uma de nós. Fizeram-nos comer o fubá e a carne dos homens mortos. Às vezes eles misturavam cabeças de pessoas com carne de animais. Este costumava ser o nosso alimento diário. Qualquer um que se recusasse a comê-lo era cortado em pedaços”. Até o dia em que Emelda conseguiu escapar ao buscar água no rio.
Emelda pôde ir para casa e receber tratamento. “Através da animação da Igreja tive que assumir e aceitar a minha situação. (…) Hoje vivo bem como uma mulher realizada que aceita o seu passado”.
Mas o relato não se detém no seu sofrimento pessoal, denuncia que toda a sua província “é um lugar de sofrimento e lágrimas”. E diante do Papa recorda as vítimas das cheias dos rios Mulongwe e Kavimvira em abril de 2020 “que perderam tudo devido à erosão selvagem”. 60 pessoas ficaram sob a lama das enchentes, 45 pessoas feridas, 3.500 casas destruídas, 7.700 famílias sem teto. “Os sobreviventes vivem em campos de desastre onde dividem uma tenda com 3 ou 4 famílias, ou seja, várias dezenas de pessoas. (…) A prostituição está crescendo nesses ambientes de vida”.
Mas isso não é tudo: devido às guerras entre diferentes grupos étnicos desde 2019, “nas terras altas dos territórios de Fizi, Mwenga/Itombwe e Uvira, mais de 346.000 pessoas foram deslocadas”. Ao Papa Francisco expressa a alegria e a gratidão de todas as “vítimas de atrocidades e outros desastres” por terem querido empreender este caminho e manifestar a sua proximidade. O gesto que faz é colocar algumas roupas dos homens armados sob a cruz “que ainda nos assustam”. E conclui: “Queremos um futuro diferente. Queremos deixar esse passado sombrio para trás e poder construir um belo futuro. Pedimos justiça e paz. Perdoemos aos nossos algozes tudo o que fizeram e peçamos ao Senhor a graça de uma convivência pacífica, humana e fraterna”.
Um gesto de reconciliação e um ato de compromisso
Após o discurso do Papa, as vítimas da violência que deram seu testemunho recitaram juntas um ato de compromisso com o qual desejam expressar seu desejo de ser um sinal de paz e reconciliação para seu país:
Senhor, nosso Deus, de quem recebemos nosso ser e a vida, hoje colocamos os instrumentos de nosso sofrimento sob a Cruz de Seu Filho. Prometemos perdoar uns aos outros e evitar qualquer caminho de guerra e conflito para resolver as diferenças. Pedimos-te, Pai, a tua graça, de fazer do nosso país um lugar de paz e alegria, de amor e paz onde todos se amam e convivem fraternalmente.
Por fim, pedem ao Senhor que os acompanhe sempre e ao Papa Francisco, que os abençoou no final do encontro, para reze por eles.