Podemos nos perguntar: por que o pecado de Adão foi imediatamente transmitido a todos seus descendentes?
Por Márcio Oliveira Elias
No Evangelho de Jesus, narrado pelas comunidades joaninas, escutamos que: “No começo a Palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus” (Jo 1,1). Esta premissa nos encaminha para as narrativas da criação, insertas nos capítulos 1 e 2 do Livro do Gênesis, que revelam a preciosa e sempre presença da Palavra como impulsionadora do amor criativo e produtivo da Santa Trindade (Gn 1,26).
No texto de Gênesis (2,8), dentro de seu processo criativo, observamos que Deus plantou um jardim no Éden, como espaço singular na terra. Na tradição judaica, o Éden (também chamado singelamente de “paraíso”), é considerado o “jardim de Deus”, ou, por analogia exegética, a “morada do Senhor” na sua terra criada, descrito em Gênesis (2,8-14) e no Livro do profeta Ezequiel (28,13). No Livro do profeta Jeremias (17,7-8) e nos Salmos (1,1-3), também se referenciam as árvores e águas do Senhor, mas sem mencionar explicitamente o Éden.
O Jardim do Éden pode ser compreendido teologicamente como um prelúdio ao “Tabernáculo do Senhor” (Êxodo 40) e ao “Templo de Salomão”, em Jerusalém (Cr 1-2);um local sagrado onde os fiéis humanos podiam estabelecer uma relação pessoal e próxima com Deus. No Livro das origens Deus fez dele um ambiente relacional, cultivando toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer, fundando ao centro a Árvore da Vida e a Árvore da Ciência do Bem e do Mal.
O nome ‘Éden’ deriva do acadiano ‘edinnun’, que vem da expressão suméria ‘edin’, significando “planície” ou “estepe”, e está intimamente relacionado ao sentido de plantação frutífera e bem regada.
Outra associação é feita com o sentido hebraico para “prazer”, assim ficando: “e o Senhor Deus havia plantado um paraíso de prazer”, equivalente a “um jardim no Éden” (Gn 2,8). Neste jardim paradisíaco e morada do Criador na terra, o ser humano é colocado a desfrutar de sua habitação e da relação com o Senhor (Gn 2,15).
Pela Tradição Sacerdotal no texto de Gênesis, o Éden é apresentado como um santuário e lugar onde Deus habita e caminha, na continuada visão do Primeiro Testamento. Um local onde a santificação se desenvolvia na harmonia relacional entre o Divino e o humano, criado a sua imagem.
A Graça da Palavra doadora
Nos relatos da criação pela Palavra de Deus, compreendemos que o ser humano criado (Gn 1,26; e 2,4b.21-22) recebe, pela Graça Divina, três especiais graus de dons: os naturais, os sobrenaturais e os preternaturais. Os dons naturais são o corpo, a alma, os cinco sentidos e as faculdades de raciocinar e dialogar, inerentes ao humano; os dons sobrenaturais são a graça santificante e a filiação divina, que nomeiam a herança do céu e se fazem templo da Trindade na pessoa humana.
Os dons preternaturais são a isenção da morte (Gn 2,17;3,3-4.19), a integridade (Gn 2,25; 3,7-11) e impassibilidade (Gn 3,16). Esses graus de dons concedidos tornam o ser humano ativo partícipe da Sagrada Natureza, vivenciando as responsabilidades de sua relação pessoal com seu Criador. Estes dois últimos dons se fizeram presentes nos primeiros pais da humanidade em razão da infinita bondade da Palavra doadora.
A Palavra Criadora agraciou o ser humano com os dons naturais de sua condição própria, formada à imagem e semelhança do Altíssimo. Os dons sobrenaturais, que ultrapassam as exigências da natureza humana, foram pura doação que elevou os primeiros pais à condição de filhos muito amados. Os dons preternaturais específicos não igualaram a natureza humana à Natureza Divina, mas são condições doadas aos primeiros pais para que os levem a viver, sempre em harmonia, segundo a relação pessoal estabelecida por Deus e para Deus.
O dom da integridade consiste na imunidade à concupiscência; ou seja, a razão humana que não se deixaria guiar pelo apetite sensitivo de nenhum movimento desordenado, removendo todos os obstáculos amorais que pudessem impedir a vida sobrenatural da graça. Com o dom da isenção da morte, a pessoa humana não sofreria a desagregação dos diversos elementos de toda a matéria animada (“ãnima”, alma), vivendo no paraíso terrestre (Éden) até o seu mistérico translado ao céu (eternidade), junto da Palavra Criadora.
A isenção de toda dor ou sofrimento da alma e do corpo foi oferta no dom da impassibilidade, que impossibilita toda a perturbação espiritual, ou corporal,que poderia alterar a perfeita felicidade natural dos primeiros pais no Éden, para que sua união com Deus pudesse se desenvolver em paz e tranquilidade. Os primeiros humanos, criados em estado de graça santificante e a filiação divina, cuidavam perfeitamente das outras criaturas viventes. Em virtude do privilégio preternatural, o ser humano agia como ministro da Divina Providência, fazendo guiar todos os outros seres, que juntos habitavam na morada do Senhor na terra.
Segundo São Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), “... assim como o primeiro homem foi instituído no estado perfeito, quanto ao corpo, de modo que imediatamente pudesse gerar, assim também o foi quanto à alma, para que imediatamente, pudesse instruir os outros e governar” (Suma Teológica, q.94, n.3). O zelo com a morada do Senhor foi a responsabilidade concedida para o exercício de dons agraciados, ultimando o conhecimento de ser pessoa humana em sintonia com o Senhor, Palavra doadora. No Tabernáculo (Êx 40) e no Templo de Salomão, em Jerusalém (Cr 1-2), este zelo consequentemente permaneceu.
A Graça da Palavra libertadora
A Palavra cria em liberdade e com liberdade, porquanto orienta aos primeiros pais, que poderiam dizer “sim” ou “não” aos dons recebidos graciosamente (Gn 2,16-17). A Palavra faz o humano livremente senciente e, exatamente por esta condição exclusiva entre as criaturas, somente salva com o seu pleno consentimento. Assim, num momento de tentação (Gn 3),o ser humano decide contra o desejo de Deus, imergindo em soberba, raiz de todos os pecados (Eclo 10,12-18), desobedecendo e imaginando que poderia se fazer igual ao próprio Criador (Gn 3,1-7). Ocorre assim o‘pecado original’, trazendo consequências sérias aos primeiros pais, que perderam todos os dons sobrenaturais e preternaturais doados pela Graça Divina;mas, pela bondade divina, lhes restou ainda os dons naturais do corpo e da alma, dos cinco sentidos e das faculdades de raciocinar e dialogar, inerentes à sua natureza humana.
Leciona Santo Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) que, uma vez consumada a transgressão, no mesmo instante é destituída na alma a graça santificante dos primeiros pais, que se envergonham da nudez de seu corpo e sentem na sua carne o movimento da rebeldia e da desobediência. Quando a graça abandona a alma, desaparece a obediência das leis do corpo natural às da alma sobrenatural. O pecado originante se compreende como uma revolta íntima e voluntária contra Deus, que rompe com a filiação divina, e produz a desordem e a ruptura com as faculdades preternaturais (Sobre a graça de Cristo e o pecado original, “De gratia Christi et de peccato originali”, 418 d.C.).
No Catecismo da Igreja Católica (CIC n. 1008), no exercício e alicerce na Tradição e nas Sagradas Escrituras, o Magistério ensina que a morte é consequência do pecado, entrando no mundo por causa da soberba humana. Educa que, embora o humano possuísse uma natureza mortal, Deus o destinava por não morrer; portanto, a morte foi contrária aos desígnios do Criador: “A morte corporal, de que o homem estaria isento se não tivesse pecado (Gaudium et spes, 18), é, pois, ‘o último inimigo’ (1Cor 15, 26) da humanidade a ter de ser vencido”.
Podemos nos perguntar: por que o pecado de Adão foi imediatamente transmitido a todos seus descendentes? Podemos considerar que a justiça original fora um dom ofertado livremente pela Palavra, em face de toda a natureza humana na pessoa de Adão (Adamah, hebraico: terra vermelha); este assim como representação de toda a humanidade.
Pelo pecado original de Adão, compreende-se que o mal entrou no mundo, desordenando os desígnios da criação, como nos afirma o Apóstolo Paulo: “Por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte” (Rm 5,12).
A Graça da Palavra encarnada e remissora
O pecado original abriu entre Deus e os seres humanos um abismo relacional abissal, que nos tirou do conforto primevo da morada idílica no Jardim do Éden, onde os primeiros pais tinham uma intercessão vivencial com a Palavra criadora. As portas da eternidade se fecharam e a pessoa contingente, em razão de sua escolha, só poderia oferecer imperfeitas reparações para a grave ofensa cometida. Estariam, então, os pórticos da eterna felicidade inexoravelmente fechados às criaturas humanas?
As palavras do Apóstolo Paulo nos trazem alento: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20). O Deus da infinita misericórdia prometeu aponte para tal precipício relacional e, no tempo previsto por seus patriarcas (Gn 12,1-3) e profetas (1Reis 8,56; Mi 5,3; Jr 23,5-6; Zc 9,9; Is 61,1-3) enviou Seu Filho Unigênito, Jesus Cristo, a Palavra encarnada e remissora: “Ó feliz culpa que mereceu tão grande Salvador” (Missal Romano, 2008, p.348).
A própria Palavra criadora, agora feita pessoa humana em missão remissória, se fez criatura para, com uma generosidade inefável, saldar a nossa dívida originante. O Filho de Deus, Jesus Cristo, a Palavra encarnada e remissora, “fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,8), restituiu ao ser humano a graça santificante e a filiação divina, perdidas com o pecado original, permitindo novamente o acesso à morada eterna do Altíssimo, novamente ativos partícipes da Sagrada Natureza sob os dons preternaturais da imortalidade (Gn 2,17;3,3-4.19), da integridade (Gn 2,25; 3,7-11) e da impassibilidade (Gn 3,16), a serem realizados na travessia da ponte da sua Paixão, Morte e Ressurreição: a Páscoa de todos nós.
No Catecismo da Igreja Católica (CIC n. 1009), o Magistério ensina que a morte foi transformada por Jesus, Palavra de Deus encarnada, mas que também sofreu a morte, própria da condição humana pecadora. A Palavra encarnada assumiu a morte na cruz como ato de livre e absoluta submissão à vontade do Abbá (Mc 14,36); contudo, a obediência crística converteu em bênção a maldição da morte (Rm 5,19-21).
O Filho de Deus, Jesus Cristo, a Palavra encarnada e remissora (Jo 1,29-34), veio ao mundo para a purificação e o resgate da humanidade do pecado para o Eterno (1Jo, 1,7).Em Romanos 3,25-26 escutamos: “Deus o destinou a ser vítima que, mediante seu próprio sangue, nos consegue o perdão, contando que nós acreditemos. Assim Deus manifestou a sua justiça, pois antes deixava pecar sem intervir: eram tempos da paciência de Deus. Mas, no tempo presente, ele manifesta e sua justiça para ser justo e para tornar justo quem tem fé em Jesus”.
Santo Agostinho nos diz que: “A Igreja recebeu as chaves do Reino dos Céus para que se opere nela a remissão dos pecados pelo sangue de Cristo e pela ação do Espírito Santo. É nesta Igreja que a alma revive, ela que estava morta pelos pecados, a fim de viver com Cristo, cuja graça nos salvou” (Sermão 214,11).
O Catecismo da Igreja Católica(CIC n. 982), ensina que: “Não há nenhuma falta, por mais grave que seja, que a santa Igreja não possa perdoar. Nem há pessoa, por muito má e culpável que seja, a quem não deva ser proposta a esperança certa do perdão, desde que se arrependa verdadeiramente dos seus erros. Cristo, que morreu por todos os homens, quer que na sua Igreja as portas do perdão estejam sempre abertas a todo aquele que se afastar do pecado”.
A Constituição Dogmática Lumen Gentium (A vontade salvífica do Pai, Cap. 1 n. 2), promulgada pelo Concílio Vaticano II (1964), ensina que: “O Eterno Pai, pelo libérrimo e insondável desígnio da Sua sabedoria e bondade, criou o universo, decidiu elevar os homens à participação da vida divina e não os abandonou, uma vez caídos em Adão, antes, em atenção a Cristo Redentor «que é a imagem de Deus invisível, primogênito de toda a criação» (Col 1,15) sempre lhes concedeu os auxílios para se salvarem.
Aos eleitos, o Pai, antes de todos os séculos os «discerniu e predestinou para reproduzirem a imagem de Seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito de uma multidão de irmãos» (Rom. 8,29)”.
A Graça da Palavra viva e plenificadora
Diante do discernimento sobre o acontecimento do pecado original cometido pelos primeiros pais, tomando como consequência a encarnação do Verbo Divino para a nossa remissão, podemos também refletir se, caso os primeiros pais não tivessem cometido o pecado da soberba, a Palavra de Deus teria se encarnado? Precisaria o ser humano se distanciar de Deus?
No comentário ao Evangelho de Lucas, Santo Agostinho nos diz que: o “Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10), portanto se o homem não pecasse o Filho do Homem não teria vindo. E onde se lê na primeira Carta a Timóteo (1,15), vimos que “Cristo veio a esse mundo para salvar os pecadores” (1, 15). No entendimento agostiniano, não houve outra causa para a vinda do Cristo Senhor senão para salvar os pecadores.
Mas Agostinho também nos diz que:“muitas outras coisas devem ser pensadas da encarnação de Cristo”infinito (Aquino, Suma Teológica, q. 94, n. 3); portanto, além da libertação do pecado original, da qual o próprio falou. Logo, podemos pensar que, mesmo que o ser humano não tivesse cometido o pecado original, a Palavra de Deus teria se encarnado, considerando que é propriedade inerente à onipotência e onisciência do Poder Divino levar à perfeição as suas obras e se manifestar por algum efeito preternatural.
O entendimento da premissa de que a Palavra de Deus poderia ter encarnado, mesmo sem o pecado original, é desenvolvida pela Suma Teológica III (Tratado do Verbo encarnado; q. 1 – Da conveniência da encarnação, a. 3), trabalho do teólogo e filosofo São Tomás de Aquino, onde reconhece que nenhuma simples criatura pode ser chamada ao efeito infinito, sendo finita por essência, salvo na obra da encarnação, onde se manifesta o efeito do Onipotente, na medida em que realidades infinitamente distantes se unem (Divino e humano).
São Tomás de Aquino reflete que a obra do universo criado somente atingirá sua máxima perfeição quando a última das criaturas, o ser humano, se unir indelével ao Supremo Princípio, a saber, à Santíssima Trindade. Logo, diante dessa constatação tomista, mesmo que o ser humano não tivesse pecado, a Palavra de Deus teria se encarnado.
No pecado das origens,a natureza humana perde a graça santificante e a filiação divina; contudo, a encarnação retomou ao ser humano essa condição de união santificada; portanto, mesmo que o ser humano pecasse, a sua natureza sempre esteve capacitada para receber e conter essa graça. Deus não anulou da natureza humana um bem do qual era capaz e, desta premissa tomista, mesmo que os primeiros pais não tivessem pecado com a gravidade da soberba, a Palavra de Deus teria se encarnado para plenificação da criação.
Além disso, a predestinação de Deus é eterna; reconhecendo que, por predestinação, se entende teologicamente o desígnio concebido pelo Senhor, de levar a criatura humana ao fim sobrenatural, que é a vida eterna, estabelecendo desde o princípio dos tempos os dons sobrenaturais da graça santificante e da filiação divina, alinhados aos dons preternaturais da isenção da morte, da integridade e da impassibilidade. Este desígnio tem por exclusivo objetivo trinitário a bem-aventurança celestial; não havendo predestinação para o mal ou para o inferno (Mt 28,19; 1Tm 2,4).
Em Romanos (1,4), se diz de Cristo que foi “estabelecido Filho de Deus com poder”, portanto, mesmo antes do acontecimento temporal do pecado original, sempre se fez necessário que o Filho de Deus se encarnasse, para que fosse cumprida a predestinação de Deus à plenificação da sua criação, pois “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom” (Gn 1,31).
São Tomás de Aquino continua refletindo que todos os motivos da encarnação, enumerados na Sagrada Escritura, se apresentam como remédio ao pecado originante, que aconteceu em contrário aos desígnios divinos. Contudo, caso os primeiros pais não tivessem pecado, teriam sido inexoravelmente penetrados pela luz da Divina Sabedoria, dotados por Deus com a retidão da justiça para conhecer todas as coisas necessárias ao cumprimento do seu Mistério.
Nada impediu que a natureza humana fosse novamente elevada aos dons sobrenaturais e preternaturais, depois do pecado originante; portanto, é teologicamente objetivo pensar que a onisciência da Palavra de Deus se faria encarnar nos primeiros pais sem o pecado, pois estariam ciosos e fieis aos desígnios divinos, estabelecidos na sua criação desde o princípio dos tempos (Gn 1,26-30; Gn 2,15-17).
A Constituição Dogmática Dei Verbum (A Revelação em si mesma, Cap. 1 n. 2), promulgada pelo Concílio Vaticano II (1965), ensina que: “Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4)”.
São Tomás de Aquino compreende que o Deus invisível (Col 1,15; 1Tim. 1,17), na infinitude do seu amor,deseja se dar a conhecer pela humanidade querida como amiga (Ex. 33, 11; Jo 15,1415) e deseja conviver com ela (Br 3,38), para convidar e admitir à comunhão com Ele, vivendo o Mistério de sua vontade. Segundo o entender tomista, esta ação da revelação se realiza por meio de ações e palavras intimamente relacionadas ao desejo do Senhor na história que iniciou na criação, onde a sua Palavra é plenitude de toda a revelação que deve acontecer.
Em síntese compreendemos, afinal, que a Palavra de Deus encarna em razão da humanidade criada, e não pelo pecado que este humano possa, ou não, cometer na jornada de sua história.
A Graça da Palavra em Verdade e Caridade
A compreensão de que a Palavra de Deus encarna em razão da humanidade que seu desejo criou, e não somente pelo pecado que este humano poderia, ou não, cometer em sua trajetória histórica, nos remete a pensar no translado que o ‘discípulo amado’ nos traz do Evangelho: “Jesus respondeu: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. Se vocês me conhecem, conhecerão também o meu Pai. Desde agora vocês o conhecem e já o viram” (Jo 14,6-7).
Em sua primeira carta comunitária, João prossegue o entendimento iluminado pelo Espírito, nos trazendo o ensino: “Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,7-8).
Os textos joaninos nos dizem que a novidade da revelação evangélica se fundamenta na Palavra, que se fez pessoa humana viva e sensitiva; o Deus que se dá a conhecer no diálogo com a sua criação, conforme entende a sabedoria da Constituição dogmática Dei Verbum: “Em virtude desta revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele” (DV 2).
No coração de Jesus Cristo, Palavra encarnada, a comunhão no amor é um dom absoluto, indicando que a imagem do Criador é a direção da plenitude ao ser humano e seu caminho: ser verdadeiramente humanidade para encontrar a sua própria santidade. Desta forma, criados à imagem e semelhança de Deus Amor, podemos nos compreender gente no acolhimento da Palavra e da obra do Espírito Santo em nossa consciência.
O significado do termo ‘amor’ (ou ‘amar’), em sentido evangélico, é trazer o entendimento dos termos utilizados para a sua expressão: na comunidade joanina o vocábulo que se utiliza é “ágape” (do grego, ‘amor incondicional’); na comunidade paulina é usado “caritas” (do latim, ‘caridade’).
Quando se considera o conjunto das Sagradas Escrituras, não há uma distinção concreta entre o expressivo do ‘amor’ ou da‘caridade’, mas somente um contexto exegético nas traduções que os empregam. Portanto, em sentido bíblico, as expressões de ‘amor’ e ‘caridade’ são sinônimas, e atitudes essenciais da comunhão cristã, que nos leva ao sentimento fraterno de comunhão a Deus e ao próximo.
Exemplos bem reconhecidos da utilização dessas expressões estão em 1Jo 4,8 (“Quem não ama não conheceu a Deus, já que Deus é amor”), e na 1Cor 13 (hino à caridade). Nos dois textos o senso é o mesmo; entretanto, os autores empregam diferentes vocábulos, quando se considera o contexto das comunidades que recebem a revelação da Palavra.
O Evangelho narrado pelas comunidades joaninas, afirma Cristo Jesus ensinando: “Mas está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade. Porque são estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4, 23-24).
Vamos aqui uma estreita ligação do Amor Ágape com a Verdade, pois a amorosa caridade ensinada pela Palavra encarnada, pode ser reconhecida como autêntica expressão da humanidade criada, se fazendo elemento de importância fundamental nas relações humanas e naturais, pois somente na verdade é que o amor vivifica a criação. A verdade é a luminosidade que dá significação e relevância à caridade, onde a inteligência da Palavra de Deus nos realiza na verdade natural e sobrenatural do seu Amor.
A Carta Encíclica “Caritas in Veritate”, do Emérito Sumo Pontífice Bento XVI, sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade (CV 1), declara que: “(...) defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade. Esta, de fato, «rejubila com a verdade» (1Cor13,6). Todos os homens sentem o impulso interior para amar de maneira autêntica: amor e verdade nunca desaparecem de todo neles, porque são a vocação colocada por Deus no coração e na mente de cada homem.”
Continua a Encíclica: “Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carências humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projeto de vida verdadeira que Deus preparou para nós. Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade do seu projeto. De fato, Ele mesmo é a Verdade (cf. Jo 14,6)” (CV, 1).
A Palavra criadora, doadora e libertadora, encarnada e remissora em Jesus Cristo, sempre viva e plenificadora na Santíssima Trindade (Gn 1,26; Jo 1,1), é a reconhecida caridade e verdade revelada, que desde a eternidade é a impulsionadora do amor criativo, reativo e produtivo à toda a criação: “A palavra do Senhor criou os céus” (Sl 33/32, 6). Deste modo indica-se que o mundo procede, não do caos ou do acaso, mas de uma afirmação.
A Encíclica “Laudato si”, do nosso querido Papa Francisco, sobre o cuidado da casa comum (cap.2,3.77), nos mostra que houve uma livre opção na expressão da Palavra criadora, pois o universo não aconteceu como consequência de uma omnipotência arbitrária, ou por uma demonstração de força ou desejo de autoafirmação. A criação pertence à ordem do amor de Deus,que é a razão fundamental de toda a criação: “Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sb11,24).
A “Laudato si” (cap.2,7.100)orienta que: “O Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo; mostra-no-Lo também como ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação com o seu domínio universal. «Foi n’Ele que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto as que estão na terra como as que estão no céu» (Cl1,19-20). Isto lança-nos para o fim dos tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as coisas «a fim de que Deus seja tudo em todos» (1Cor15,28). Assim, as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa”.
A verdade e a caridade são inerência da Palavra, que habita o Mistério divino no antes, no durante e no depois do vazio preenchido pela amante criação. O que há no vazio material que precede a criação é o Espírito da Verdade e da Caridade, ainda incompreensível nas limitações de nossas capacidades humanas, mas integrante e integrado na Palavra que se diz e se rediz no princípio, no meio e no fim último da história.
“Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado… Resignação para aceitar o que não pode ser mudado… E sabedoria para distinguir uma coisa da outra”. São Francisco de Assis (1182-1226)