Precisamos fazer amanhecer

Assassinatos de Bruno Pereira e Dom Philips fazem parte de um contexto de violência contra os povos indígenas.

Por Luís Ventura*

Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips estremeceram o mundo. Durante semanas, e até hoje, imagens dos dois ocuparam espaço em redes sociais, jornais, banners, camisetas e até em ônibus de diversos lugares e países.

Lideranças indígenas, organizações sociais, servidores públicos, meios de comunicação, autoridades políticas, líderes religiosos e representantes de instâncias internacionais manifestaram sua mais profunda indignação e revolta diante das mortes violentas de Bruno e Dom e exigiram a imediata apuração desses crimes. As forças policiais demoraram mais do que o necessário para coordenar a operação de busca e sempre foram superadas em determinação e organização pelos indígenas da região. Essa demora no início das buscas se contrapõe à celeridade com que as mesmas forças policiais anunciaram, 48 horas depois de encontrar os corpos, que não havia mandantes do assassinato. Orientadas, talvez, pelas declarações de autoridades do mais alto escalão do governo federal, pensariam que podiam administrar os tempos e as informações para evitar repercussões em nível internacional. No entanto, como disse Beatriz Matos, esposa de Bruno, se alguém pensava que estas seriam mais duas mortes silenciadas e esquecidas cometeu um erro, porque elas escancararam para o mundo todo, o país em que o Brasil se converteu nestes últimos quatro anos, aprofundando ao máximo a raiz estrutural e histórica que herdou do processo colonial.

Noite escura
A chegada de Jair Bolsonaro em janeiro de 2019 à presidência da República, com sua corte de fundamentalistas e moralistas, militares, milicianos e ruralistas, conduziu o Brasil à mais escura noite desde sua redemocratização. Instalaram-se desde o poder público um projeto de morte, uma política destrutiva e uma retórica violenta. Não foi omissão nem incompetência, mas a execução sistemática de um plano que tinha como objetivo a erosão do Estado, a ruptura da convivência, a corrosão das políticas públicas, a perseguição dos direitos fundamentais, a exploração ilegal dos bens naturais, a militarização da vida pública e a legalização do ilícito. A grilagem e o garimpo eram incentivados enquanto a luta pelos direitos territoriais dos povos indígenas era criminalizada. Em apenas quatro anos, o Brasil multiplicou por quatro a circulação de armas nas mãos de civis, enquanto assistimos a um embrutecimento impune das forças policiais, acobertadas pela ampliação da chamada “exclusão de ilicitude”, a mais nova expressão para a licença para matar. Os rios amazônicos são intoxicados por mercúrio ao tempo que o solo do campo brasileiro é envenenado permanentemente por novos agrotóxicos liberados pelo Estado. E nessa mesma seara, o ruralismo agroexportador mata e desmata, enquanto acumula recordes de safra e de lucros em um país em que 33 milhões de pessoas são castigadas pela fome. Este é o projeto, e seus algozes, que sequestrou as instituições brasileiras desde 2017 e instalou no seio da República uma cultura de necropolítica. O resultado disso só pode ser a morte, em suas mais diversas faces, e este é o cenário em que Bruno Pereira e Dom Philips foram assassinados.

Vale do Javari
A Terra Indígena Vale do Javari, homologada em 2001, é um dos lugares de maior diversidade cultural e biológica, habitat de diversos povos indígenas e o lugar onde existe maior número de registros de povos livres, em situação de isolamento. Ao mesmo tempo, é um dos territórios mais assediados pela pesca e a caça ilegal, pelo tráfico e o garimpo. O desmonte absoluto da política de proteção territorial e da fiscalização ambiental ampliou nos últimos anos a vulnerabilidade do território e a violência contra seus legítimos donos. O governo Bolsonaro dessangrou a FUNAI e a colocou a serviço de terceiros, desmantelou ou precarizou as Frentes de Proteção Etnoambiental e deixou os territórios indígenas à mercê de usurpadores. É por causa disto que Bruno foi exonerado de sua responsabilidade na FUNAI; e foi por causa disto que sua vida foi dilacerada junto a de Dom Philips. Como afirmava seu amigo Beto Marubo, em carta escrita recentemente ao já falecido Bruno, “conseguimos com sua passagem que o mundo todo veja nossas mazelas”.

Meses antes destes assassinatos, o mundo também estremeceu com imagens de violência e de mortes por desnutrição e malária na Terra Indígena Yanomami, nos estados de Roraima e Amazonas.

Homologado em 1992, este território é lugar de vida dos povos Yanomami e Ye’kuana. Após 30 anos de sua homologação, vive desde 2017 um novo momento de expansão do garimpo com a presença de mais de 20.000 garimpeiros e com o aumento exponencial nos dados de desmatamento, degradação ambiental, contaminação por mercúrio e casos de desnutrição e malária. Em julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado brasileiro adote de forma imediata todas as medidas para garantir aos povos Yanomami e Ye’kuana o direito à vida, à integridade física e à saúde, à alimentação e à água, protegendo as lideranças ameaçadas e prevenindo a exploração e violência sexual contra mulheres e meninas destes povos. Doze dias depois desta Resolução da Corte Interamericana, a Hutukara Associação Yanomami – HAY denunciava mais uma vez em carta dirigida às autoridades do Distrito Especial de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana a ausência de medicamentos básicos nos postos de saúde para o combate da verminose ou da malária, a falta de equipamentos básicos para detecção de doenças endêmicas, a deficiência de profissionais nas equipes médicas e a falta de insumos alimentares e proteicos para o enfrentamento da desnutrição infantil. O descaso do Estado brasileiro no caso da Terra Indígena Yanomami, seja no campo da proteção territorial ou do atendimento à saúde, revela características próprias de um processo de genocídio a céu aberto, a olhos de todo o mundo.

Contexto de violência
Bruno Pereira e Dom Philips foram assassinados no início de junho de 2022. Uma semana antes, o jovem Alex López Guarani, de 18 anos, foi morto com disparos de bala enquanto ia procurar lenha. Semanas depois, ainda em junho, o senhor Edivaldo Atikum faleceu após ser golpeado e torturado por policiais dentro de sua própria aldeia, na Terra Indígena Atikum, no estado de Pernambuco. E na última semana de junho, uma série de ataques violentos contra retomadas do povo Guarani Kaiowá no estado de Mato Grosso do Sul acabou com o assassinato de Vitor Fernandes, de 42 anos, por disparos de policiais. Essa mesma semana, fazendeiros se reuniam e marchavam em carreata no sul do estado de Bahia em direção a uma retomada do povo Pataxó, para “fazer o que está sendo feito no Mato Grosso do Sul”.

Este é o resultado dos quatro anos de noite escura que representou o governo de Jair Bolsonaro. Um país em que os territórios são mais invadidos e explorados ilegalmente, agora com o incentivo explícito do governo federal e de alguns governos estaduais. Um país em que a violência anda solta e a impunidade é a principal aliada de quem mata e de quem manda matar.

Mas este é também o país em que os povos indígenas permaneceram mobilizados desde o primeiro momento e até hoje para enfrentar os abusos do governo federal. Este é o país onde permanecemos e permaneceremos em pé, sem parar e sem calar, insistindo e resistindo. Com a cabeça erguida, com o coração apertado, mas com a esperança intacta e com mais vontade que nunca de continuar lutando. Precisamos fazer acontecer a garantia dos direitos dos povos indígenas e isso passa, principalmente, por que o Supremo Tribunal Federal supere de vez a tese inconstitucional do marco temporal e confirme os direitos originários dos povos indígenas a seus territórios. Precisamos fazer amanhecer um novo dia para que a violência pare e o Brasil se reencontre com o país plural que somos.

* Luís Ventura é leigo e membro do Conselho Indigenista Missionário, CIMI.

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