As denúncias foram realizadas durante a 50ª sessão ordinária do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Por Adi Spezia
Enquanto o Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Organizações das Nações Unidas (ONU) se reúne em Genebra, na Suíça, para tratar de temas sobre Direitos Humanos envolvendo seus Estados-membros, no Brasil, os povos indígenas sofrem novo massacre e enterram os corpos dos indigenistas Bruno Pereira e do jornalista Dom Dom Phillips, do The Guardian, emboscados e assassinados no Vale do Javari, no Amazonas.
“O sangue indígena derramado pelo Brasil não baixa a temperatura, mas agrava a febre da Mãe Terra”, denuncia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) junto ao CDH, em sua 50ª sessão ordinária.
Chamando a atenção para os assassinatos de: Bruno Pereira e Dom Phillips, no Vale do Javari; Edivaldo Manuel de Souza, do Povo Atikum; o massacre no Rio Abacaxis na Amazônia; e o assassinato dos indígenas Chiquitanos, que se somam ao massacre do povo Guarani e Kaiowá. Além do brutal assassinato de Alex Lopes, e da invasão ilegal no último fim de semana, no dia 24 de junho, pela Polícia Militar no território Guapo’y, Mato Grosso do Sul, que resultou na morte de Vitor Fernandes e nove feridos por munição letal, dos quais um adolescente permanece em cuidados intensivos.
A denúncia foi realizada por Paulo Lugon Arantes, assessor internacional do Cimi, durante o painel de debates sobre “Efeitos adversos das mudanças climáticas sobre os direitos humanos das pessoas em situação de vulnerabilidade”, realizado no dia 28 de junho, com a presença do presidente do Conselho, Federico Villegas, e da alta Comissária da ONU, Michelle Bachelet. Para a entidade, as relações entre as ações de proteção contra as mudanças climáticas e as populações vulneráveis são complexas. “Os povos indígenas são, ao mesmo tempo, vulneráveis às mudanças climáticas e agentes de mudança, no contexto dos ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável]”, destacou Paulo, junto aos Conselheiros.
O sangue indígena derramado pelo Brasil não baixa a temperatura, mas agrava a febre da Mãe Terra - Cimi
Dias antes, 23 de junho, ainda durante a sessão do Conselho, o secretário adjunto do Cimi, Luis Ventura Fernandez, denunciou que “o aumento da violência e das invasões em territórios indígenas têm a cumplicidade deste governo, que abandonou a política de proteção territorial e alimentou um ambiente em que a vida é brutalmente aniquilada”.
Para o Cimi, os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips revelam o país que o Brasil se tornou. “A Polícia confirmou em apenas 48 horas, às pressas, que não havia mandantes nesses dois assassinatos, desconsiderando denúncias da organização indígena local”, relatou Luis ao Conselho. O que torna a impunidade a maior segurança para quem mata e, principalmente, para quem manda matar no Brasil, alertou.
O assassinato do jovem Alex Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, brutalmente assassinado enquanto procurava lenha; do indígena Edivaldo Manuel de Souza, do povo Atikum, que morreu após ser torturado e espancado pela polícia dentro de sua própria aldeia; os quatros indígenas Atikum mortos por operações policiais arbitrárias nos últimos cinco anos; os assassinatos de quatro indígenas Chiquitano, em Mato Grosso, por policiais militares; e o massacre de comunidades indígenas e ribeirinhas no rio Abacaxis, Amazonas, em 2020, também foram denunciados à ONU. Todos permanecem impunes.
O aumento da violência e das invasões em territórios indígenas têm a cumplicidade deste governo - Luis Ventura Fernandez
“No Brasil, as execuções se tornaram uma arma do Estado”, afirma o Cimi. A política anti-indígena adotada pelo atual governo e a criminalização dos defensores de direitos humanos e suas organizações são fatores que agravam a violência contra os povos indígenas no Brasil, intensificadas pela não demarcação e proteção dos territórios tradicionais.
Representando a Aty Guasu – a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Lunice Guarani Kaiowá denunciou a criminalização dos povos indígenas e de suas organizações: “nossas próprias maneiras de reunir e autodemarcar nossos territórios”, durante o diálogo interativo, na sexta-feira, 17 de junho, o quarto dia da 50ª sessão do CDH da ONU.
No Brasil, as execuções se tornaram uma arma do Estado - Cimi
“É nosso direito retomar nossas terras. Nós somos da terra e, por ela, lutaremos até o fim”, afirma Lunice Guarani Kaiowá. Como já havia sido constatado pela Relatoria Especial sobre os “Direitos à Liberdade de Reunião Pacífica e de Associação”, Clément Nyaletsossi Voule, em sua visita, a questão fundiária e a demarcação dos territórios tradicionais têm sido a principal causa dos protestos.
Só nessa semana, nos dias 22 e 25 de junho, no Extremo Sul da Bahia, o povo Pataxó retomou dois territórios tradicionais. Uma foi retomada na Terra Indígena Comexatibá, já a outra foi na Terra Indígena Barra Velha, ambas na Bahia. Na TI Barra Velha, os indígenas foram expulsos, a tiros, por supostos fazendeiros e seus aliados. Não diferente, em Mato Grosso do Sul, os Guarani e Kaiowá, realizaram a retomada do tekoha Guapo’y, em Amambai, e do território ancestral Kurupi/São Lucas, em Naviraí.
É nosso direito retomar nossas terras. Nós somos da terra e, por ela, lutaremos até o fim - Lunice Guarani Kaiowá
“As retomadas, forma de protesto indígena de ocupar nossos territórios tradicionais, demarcados ou não, são reprimidas com grave violência pela polícia e particulares”, destacou a jovem Guarani Kaiowá. “Como mulher, minhas irmãs e eu, lideramos a retomada de nosso território tradicional. Ao enfrentar uma nova tentativa do ‘Governo ruralista’ de liberar parte de nossas terras para exploração não-indígena, fomos violentamente despejados pela polícia do Estado, numa ação totalmente ilegal”.
O relato de Lunice à ONU ocorreu dias após o assassinato de Alex Lopes, jovem Guarani Kaiowá, executado em uma fazenda que sobrepõe o território tradicional em Taquapery, em 22 de maio, e pouco antes do assassinato de Vitor Guarani Kaiowá, brutalmente assassinado pela Polícia Militar na sexta-feira (24), no território Guapo’y. Enquanto ocorriam esses episódios, a sessão do Conselho seguia em andamento.
As retomadas, forma de protesto indígena de ocupar nossos territórios tradicionais, demarcados ou não, são reprimidas com grave violência pela polícia e particulares - Lunice Guarani Kaiowá
“Estamos sofrendo graves violações. Os riscos à nossa segurança física aumentaram significativamente pelo que estamos bastante preocupados”, denuncia Marilene Guarani. A jovem é da Terra Indígena (TI) Tarumã, no litoral de Santa Catarina. Em março, uma das aldeias foi totalmente destruída por indivíduos acompanhados de policiais militares. Em abril, uma ponte que os indígenas usavam para acessar parte do território tradicional foi destruída por desconhecidos.
As denúncias, realizadas no dia 22 de junho de 2022, ocorreram durante o diálogo interativo sobre “Empresas Transnacionais e Direitos Humanos”, isso porque, em maio deste ano, a “Empresa Karsten, indústria têxtil de capital aberto, ingressou com uma Ação Judicial contra nossas lideranças. A Empresa Karsten afirmou à Justiça Federal, mentirosamente, que nunca teria havido presença de indígenas na região”, explicou a jovem Guarani.
Estamos sofrendo graves violações. Os riscos à nossa segurança física aumentaram significativamente pelo que estamos bastante preocupados - Marilene Guarani
Ao contrário do que afirma a empresa, um Laudo Judicial concluiu que as Terras Indígenas Piraí, Tarumã, Pindoty e Morro Alto, no litoral norte do estado de Santa Catarina, são de ocupação tradicional do povo Guarani. Mesmo assim, “estamos proibidos de ingressar em parte do nosso próprio território sagrado sob pena de sermos multados financeiramente”, relatou Marilene.
A atenção do Conselho se voltou ao alerta da jovem Guarani quando denunciou que “os riscos à nossa segurança física aumentaram significativamente, pelo que estamos bastante preocupados”. Organizações indigenistas que acompanham o caso concordam com a preocupação dos Guarani da TI Tarumã.
Estamos proibidos de ingressar em parte do nosso próprio território sagrado sob pena de sermos multados financeiramente - Marilene Guarani
As ameaças contra os indígenas e suas organizações ganharam força nas quatros declarações orais realizadas ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Aos indígenas, “a paralisação da demarcação de nosso território por parte do governo Bolsonaro agrava a insegurança”.
Nessa sessão, o apelo urgente foi “não esperem pelo Brasil!”, para que o mecanismo cobre “do governo brasileiro que apure esses crimes, combata a impunidade, controle as forças policiais e retome políticas de proteção às vidas e territórios dos povos indígenas”, destacou Luis Ventura, secretário do Cimi.
O que o governo brasileiro que apure esses crimes, combata a impunidade, controle as forças policiais e retome políticas de proteção às vidas e territórios dos povos indígenas - Luis Ventura
Sobre a 50ª sessão do CDH da ONU
As intervenções junto à 50ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU foram realizadas em três diálogos interativos e um painel de debates, todos com a participação de lideranças indígenas e representantes de organizações indigenistas e da sociedade civil, entre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Na abertura do evento, a Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, inseriu o Brasil num grupo de 30 países que têm “situações críticas que exigem ação urgente”. E pediu às autoridades do Brasil que “assegurem o respeito pelos direitos fundamentais e instituições independentes”.
A Alta Comissária lembrou que há casos recentes de violência e racismo estrutural em questões policiais, como ataques contra parlamentares e candidatos, principalmente afrodescendentes, mulheres e pessoas LGBTQIA+ antes das eleições gerais”. Também, destacou estar alarmada com ameaças contra os direitos humanos ambientais dos povos indígenas, incluindo a exposição em decorrência da mineração de ouro.
Na oportunidade, ao citar outros países de língua portuguesa, Bachelet apelou para que os cidadãos possam “exercer livre e seguramente os seus direitos e liberdades fundamentais, sem discriminação, conforme garantido pelas suas Constituições”.”
A 50ª sessão ordinária do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU iniciou na segunda-feira – 13 de junho de 2022 – e se estende até o dia 8 de julho deste ano, em Genebra, na Suíça.
Não é incompetência nem descaso: é método. Com o assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira, um limite foi ultrapassado na Amazônia – a nós, que estamos vivos, só nos cabe a luta.