Encontro com Deus

Para mim, há um profundo significado em dizer eu vejo você! E para você?

Por Emerson Sbardelotti

Espiritualidade é tudo aquilo que dentro de mim, de nós, faz uma transformação. Tudo aquilo que me leva a mudar enquanto ser humano. A espiritualidade desce da cabeça para o coração e através do respeito, diálogo e encontro, coloca-me em direção ao diferente fazendo, portanto, uma mudança interior e exterior.

O isolamento social tem sido benéfico pois exige de mim, de cada um, de cada uma de nós, conhecer alguém que pouco conhecemos: nós mesmos! Tenho que nestes dias de quarentena encarar a mim mesmo sem máscaras, sem subterfúgios, sem rotas de escape, apenas eu comigo mesmo, para entender o que Karl Rahner já dizia: Espiritualidade é viver pelo Espírito.

intencaoSe eu vivo no Espírito, não posso voltar a ser quem eu era antes da pandemia. Preciso ir além, exercitando a cada dia a misericórdia, a compaixão, a justiça, a paz. Precisamos voltar à anormalidade, pois a normalidade não deu certo!

A espiritualidade é para mim alteridade, pois, me coloco sempre na estrada que me leva ao outro, me leva ao diferente. Não é fácil esta caminhada, se não conseguimos respeitar o outro, não conseguimos dialogar com o outro, não conseguimos encontrar o outro.

A espiritualidade é para mim o encontro do ser humano com o Deus da Vida, pois, só há espiritualidade dentro de um cenário em que está inteiramente inserida na realidade histórica. É fácil falar do fim, porém, o difícil é indicar o começo e o caminho.

A fé não é antídoto para a Covid-19, pelo menos até o momento, a ciência ainda não atestou isso. Mas, a fé, caminha de mãos dadas com a vida e a vida é cheia de espiritualidade que tem como características a liberdade e a libertação.

Eu vejo você!

O lugar da pluralidade que liberta é a valorização da pessoa, do indivíduo, da consciência, da diversidade. E como dizia o teólogo Segundo Galilea:“A espiritualidade é o conjunto de práticas e atitudes que manifestam a experiência de Deus (do Espírito Santo), numa pessoa, numa cultura, ou numa comunidade. É toda existência humana que põe em marcha existência pessoal e comunitária. Trata-se de um estilo de vida que dá unidade profunda ao nosso orar, nosso pensar e nosso agir”.

Acredito nisso!
A alteridade é um substantivo feminino que procura explicar a condição natural do que seja o outro; deve ser entendida a partir de uma divisão entre um “eu” e um “outro”, ou entre um “nós” e um “eles”. A alteridade se aproxima da empatia, pois implica colocar-se no lugar ou na pele desse “outro”, alternando as perspectivas e as prospectivas que nascem em torno do respeito, do diálogo e do encontro.

A pandemia e o isolamento social trouxeram um novo viés para as relações humanas: todo ser humano precisou se livrar das máscaras e das maquiagens e, teve que extinguir os preconceitos e encarar-se em frente do espelho. O ser humano precisou nestes quase 100 dias de clausura se reinventar e melhorar.

O ser humano consigo mesmo na busca por um entendimento profundo de como fortalecer ou refazer laços de amizade e de admiração desfeitos por conta de fofocas, desentendimentos e mentiras. É o desafio que terá nos dias que virão. Uma minoria abraâmica, como dizia Dom Hélder Câmara, sairá modificada desta pandemia buscando fazer a diferença.

A espiritualidade enquanto alteridade reforça a ideia de que somos seres humanos propensos à liberdade e à libertação; o Espírito que habita em cada um, em cada uma de nós, nos convida e nos impulsiona a mergulharmos nas águas profundas do nosso ser, mas ao retornarmos à superfície, ir em direção do outro, do que é diferente, e que fortalece a nossa pluralidade na unidade.

A Teologia da Libertação ensinou a quebrar os grilhões que tornavam mulheres e homens da América Latina e Caribe em escravos políticos, sociais, econômicos e religiosos. Na liberdade de filhas e filhos de Deus, ousamos sonhar um outro mundo novo e possível.

Neste outro mundo novo e possível será preciso experimentar uma espiritualidade do olhar. Antes, podíamos contemplar a face de mulheres e homens em sua plenitude e beleza. Com a pandemia, resta-nos contemplar os sinais transmitidos pelos olhos; estes ainda não foram escondidos pelas máscaras. A comunicação que brota e jorra dos olhares, de tantas pessoas, define o grau de cumplicidade e proximidade com a outra pessoa que deve se manter longe, para o bem de ambos.

Será necessário assistir ao filme AVATAR. Há uma frase do casal principal que ilustra muito bem este exercício de enxergar a gentileza, a misericórdia, a coragem, a compaixão, o amor e a ternura que existe na outra pessoa, mas que só pode ser revelada com a contemplação profunda do olhar:“EU VEJO VOCÊ!”.

A espiritualidade do olhar nos conecta com o respeito, com o diálogo e com o encontro presente no olhar daquele e daquela que não pode mais receber um abraço, um afago, o distanciamento é essencial para nossa sobrevivência. Se o olhar é a porta da alma, sem dúvida é a janela do coração; e o termômetro da emoção e da razão.

Eu vejo você, e você não é mais invisível para mim! Toda a sua dignidade humana me interessa: suas dores, suas alegrias, suas derrotas, suas conquistas. Eu vejo você por inteira, por inteiro. Eu vejo você, porque antes eu me vi, eu me enxerguei e me aceitei enquanto ser humano comprometido com o Espírito de Jesus de Nazaré e isso me faz frutificar o mundo.

A espiritualidade do olhar não tem uma fórmula, não tem um método. Ela nasce na observação atenta dos olhares. O olhar não faz barulho nenhum. Neste silêncio encontraremos as respostas. Me lembro do último encontro que tive com meu querido amigo e irmão Dom Pedro Casaldáliga, em Ribeirão Cascalheira – MT, durante a Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, em 2016. Ele estava sendo cuidado em sua cadeira de rodas e eu fiquei ali parado na porta, olhando-o de longe. Ele me viu, me reconheceu, me beijou e me abraçou com o seu olhar. Não dissemos uma única palavra, mas falamos tudo o que a saudade e nossa amizade pediam.
Para mim, há um profundo significado em dizer eu vejo você! E para você?

Emerson Sbardelotti é mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agente de pastoral leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Cobilândia, Vila Velha, Espírito Santo.

Deixe uma resposta

doze − onze =