Forasteiro vira irmão e anfitrião

No Evangelho de Lucas em que temos o relato do que ficou conhecido como “os discípulos de Emaús” atualizamos a reflexão sobre os estrangeiros que batem à nossa porta.

Por Alfredo J. Gonçalves *

Entre as distintas leituras que podem ser feitas a partir do conhecido episódio dos discípulos de Emaús, narrado pelo evangelista Lucas (Lc 24,13-35), impossível fugir à relação entre esses discípulos em fuga e o forasteiro. O que, por seu lado, nos leva a refletir sobre a relação entre a nossa vida de cristãos, discípulos de Jesus, e os estrangeiros que batem à nossa porta. Do nada, o forasteiro põe-se a caminhar junto com os dois “fujões”. Mostra grande curiosidade: quer logo saber o teor da conversa: “o que aconteceu, por que vocês estão tristes”? E dispõe-se a escutar o relato da tragédia que terminara abruptamente no alto da cruz. O medo, o fracasso e a busca de segurança parecem tomar conta da narrativa.

De início, é a vida real que tem a primazia. Fala o cotidiano de uma cidade onde um inocente foi condenado à morte mais ignominiosa. Na verdade, a pior das mortes, onde costumavam perecer os malfeitores de maior periculosidade. O forasteiro faz questão de abrir espaço para os eventos que chocaram e amedrontaram os discípulos. Somente depois da realidade concreta, é que se passa à Palavra de Deus. Na perspectiva do estranho, talvez ela possa iluminar acontecimentos tão raros e inesperados. Enquanto na primeira parte da conversa os discípulos representam os narradores protagonistas, agora esse papel cabe ao forasteiro. Procura traçar um paralelo entre as Sagradas Escrituras e os fatos que acabara de ouvir.

Após esse diálogo entre a vida real, de um lado, e as páginas sagradas, de outro, o forasteiro é tratado como irmão. Sendo que se faz tarde e o dia termina, ele é convidado não somente para a casa, mas também para a mesa. Raramente convidamos um estranho a dividir o teto e o pão, a menos que o intercâmbio de ideias tenha aberto portas novas, horizontes de convívio e amizade. Somente a confiança e a empatia são capazes de abater os muros que nos dividem e estabelecer pontes por onde circulam valores diferentes, sim, mas de alguma forma convergentes. Quando tais valores se cruzam, recruzam e entrelaçam, começa a ser construída e pavimentada uma via fecunda para a “fusão de horizontes”, na expressão do filósofo alemão Gadamer.

Anfitrião

O forasteiro, porém, não é convidado apenas como irmão. Torna-se também anfitrião: de fato, é ele que, na mesa, irá abençoar e dividir o pão. É ele que toma a iniciativa de oferecer o alimento que nutre e nos mantém vivos. Será reconhecido nesse ato tão peculiar ao Mestre. Aliás, tinha sido ele que já havia tomado a iniciativa do convite: “fez de conta que ia adiante”, diz o relato. A expressão “fazer de conta” equivale a colocar o próprio tempo à disposição dos amigos, dos conhecidos, dos parentes, dos familiares.

Conclui-se que o encontro, a abertura e o diálogo com o diferente e o estrangeiro – não importa qual seja sua origem, etnia, língua, bandeira ou religião – possui a extraordinária capacidade de produzir essa dupla aproximação: ele se converte não só em irmão, mas sobretudo em anfitrião. Revela-se, assim, o imenso potencial humano/divino de um encontro profundo, verdadeiro e transparente. Além de partilhar a casa, a mesa e a própria existência, o intercâmbio tende a nos enriquecer mutuamente com os valores da nossa e da sua tradição cultural, das nossas e das suas expressões típicas. No coração de toda pessoa humana e no coração de toda cultura, lembra o ensino social da Igreja, existem sementes do Verbo, da Palavra. À medida em que tais sementes se fundem e se fecundam, todos e cada um cresce e amplia sua visão de mundo. Daí que, como dizia Scalabrini, “a migração dá ao homem o mundo como pátria”.

Toda pessoa tem algo a oferecer e algo a receber. O forasteiro, na medida em que vem de outro mundo, o tem em redobrada dimensão. O diálogo é a única ponte por onde podem transitar tais dádivas, dons ou pérolas. “O outro tem mais a dizer sobre mim do que sobre ele mesmo”, dizia ainda Gadamer. “Não ardia nosso coração enquanto Ele nos falava”? Ou seja, o encontro com o forasteiro se faz encontro com o Ressuscitado. E este transfiguradois discípulos medrosos, no caminho inicial da fuga, em dois missionários ardorosos, no caminho final da evangelização.

* Alfredo J. Gonçalves, cs, é vice-presidente do Serviço de Proteção ao Migrante, SPM.

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