Francisco nos exorta: obtivemos misericórdia, tornemo-nos misericordiosos.
Por Gianfranco Graziola *
O papa Francisco definiu em poucas palavras o sentido da expressão Misericórdia Divina como o centro e motor de uma ação pastoral e eclesial da Igreja em saída. É importante entender de onde vem aquela palavra que, para Jorge Mário Bergoglio, hoje Francisco, bispo de Roma é quase uma obsessão ao ponto que ela volta constantemente nos seus discursos e por ela forjou até um verbo: “misericordeando”. E digamos foi até além, convocando um ano jubilar extraordinário dedicado a um tema que em sua vida é central já visualizado por seu predecessor São João Paulo II ao fazer do II Domingo da Páscoa, o Domingo da Misericórdia Divina.
Igreja em saída, não mais autorreferencial, não mais dona de uma verdade estéril, simplesmente acadêmica, mas rica de uma experiência que vem da Igreja das periferias, enlameada, hospital de campanha, onde ela se faz samaritana, companheira de viagem, mesmo numa realidade turbulenta, trocando impressões sobre os acontecimentos do tempo presente, cuidando das doenças e das chagas das pessoas de nosso tempo e colocando na prática do dia a dia a revolução da ação redentora do próprio Jesus, cuja preocupação não era a lei, mas a pessoa.
Lema episcopal
Para compreender melhor qual é a raiz que sustenta e anima Francisco, devemos ir até seu lema episcopal “Miserando atque eligendo”. Ele partindo da vocação e chamado do publicano Mateus e de uma homilia de São Beda, o Venerável, monge beneditino, doutor da Igreja sobre os Evangelhos, relê neste fato o chamado que Deus lhe faz: “Jesus ia passando, quando viu um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança dos impostos, e disse-lhe: “Segue-Me”. Não o viu tanto com os olhos do corpo, quanto com o seu olhar interior, cheio de misericórdia. Jesus viu um publicano, compadeceu-Se dele, escolheu-o e disse-lhe: “Segue-Me”, isto é, imita-Me. Convidou-o a segui-Lo, mais que com os passos, no modo de viver. Porque “quem diz que permanece em Cristo deve também proceder como Ele procedeu”. (1Jo 2,6) (Homilia sobre os evangelhos 1,21; CCL 122, 149 “Segue-Me”)
Mas Francisco não parou por aqui, ele continua deixando-se olhar pelos olhos compassivos do mestre experimentando constantemente sua misericórdia, que por sua vez doa mesmo a quem, como o cardeal Becciu se desviou do caminho, celebrando com ele a Ceia do Senhor da última Quinta-feira Santa. De fato, o bispo de Roma é profundamente convencido que as transformações dos discípulos do Senhor acontecem a partir de fatos concretos que expressem e façam experimentar o abraço paterno, materno, carinhoso e misericordioso de Deus.
Ele expressou isso mais uma vez na homilia do II Domingo da Páscoa – Domingo da Misericórdia Divina. Após sua ressurreição, ele disse que, Jesus realiza a “ressurreição dos discípulos”; e estes, solevados por Jesus, mudam de vida. E isso não acontece antes, apesar de muitas palavras, exemplos do Senhor, mas agora, depois da Páscoa, e se verifica sob o signo da misericórdia. Jesus levanta-os com a misericórdia. Sim, levanta-os com a misericórdia e eles, obtendo misericórdia, tornam-se misericordiosos.
Paz, Espírito e Chagas
E Francisco afirma que os discípulos e nós recebemos a Misericórdia através de três dons que Jesus nos faz: a Paz, o Espírito e as suas Chagas.
Em primeiro lugar, dá-lhes a paz. Não traz uma paz que, de fora, elimina os problemas, mas uma paz que infunde confiança dentro. Não uma paz exterior, mas a paz do coração. Aqueles discípulos desanimados recuperam a paz consigo mesmos. A paz de Jesus fá-los passar do remorso à missão. De fato, a paz de Jesus suscita a missão. Não é tranquilidade, nem comodidade; é sair de si mesmo. A paz de Jesus liberta dos fechamentos que paralisam, quebra as correntes que mantêm o coração prisioneiro.
Deus não os condena, nem humilha, mas acredita neles. É verdade! Acredita em nós mais do que nós acreditamos em nós mesmos. “Ama-nos mais do que nos amamos a nós mesmos”. (São J. H. Newman, Meditações e Devoções, III, 12,2)
Em segundo lugar, Jesus usa de misericórdia com os discípulos oferecendo-lhes o Espírito Santo. Os discípulos eram culpados; fugiram, abandonando o Mestre. E o pecado acabrunha, o mal tem o seu preço. Só Deus o elimina; só Ele, com a sua misericórdia, nos faz sair das nossas misérias mais profundas. Como aqueles discípulos, precisamos nos deixar perdoar, precisamos dizer do fundo do coração: “Perdão, Senhor”. Precisamos abrir o coração, para nos deixarmos perdoar. O perdão no Espírito Santo é o dom pascal para ressuscitar interiormente.
O terceiro dom com que Jesus usa de misericórdia para com os discípulos: apresenta-lhes as chagas. Naquelas chagas, como Tomé, tocamos com a mão a verdade de Deus que nos ama profundamente, fez suas as nossas feridas, carregou no seu corpo as nossas fragilidades. As chagas são canais abertos entre Ele e nós, que derramam misericórdia sobre as nossas misérias. As chagas são os caminhos que Deus nos patenteou para entrarmos na sua ternura e tocar com a mão quem é Ele. E deixamos de duvidar da sua misericórdia. E isso acontece em cada missa onde Jesus nos oferece o seu Corpo chagado e ressuscitado: tocamo-Lo e Ele toca a nossa vida. E tudo nasce daqui, da graça de obter misericórdia. Daqui começa o caminho cristão.
Só se acolhermos o amor de Deus é que poderemos dar algo de novo ao mundo. Assim fizeram os discípulos: tendo obtido misericórdia, tornaram-se misericordiosos. “Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum” (At 4, 32). Não é comunismo, mas cristianismo no seu estado puro.
Viram no outro a mesma misericórdia que transformou a sua vida. Descobriram que tinham em comum a missão, que tinham em comum o perdão e o Corpo de Jesus: a partilha dos bens terrenos aparecia-lhes como uma consequência natural.
E Francisco nos exorta e convida com força: Não vivamos uma fé a meias, que recebe, mas não dá, que acolhe o dom, mas não se faz dom. Obtivemos misericórdia, tornemo-nos misericordiosos.