CFE 2021 Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade.
Por Paulo Mzé *
A reflexão que se propõe aqui está inserida no contexto da realização da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021, cujo tema é Fraternidade e diálogo: compromisso de amor. E o lema bíblico que a inspira é “Cristo é nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”. (Ef 2,14ª)
A motivação para a escolha desse tema parte do contexto de intolerância, polarização e ódio. Infelizmente, não é novidade que parte dessas culturas de ódio e de violência é legitimada ou justificada com argumentos da fé em Jesus Cristo. À medida que se nega o direito da outra pessoa de optar livremente por se integrar ou não a uma religião, perseguem-se pessoas LGBTQI+ sob o argumento de que vivem em pecado e, por isso, precisam ser curadas, em nome de Jesus. Orientam-se mulheres a suportar a situação de violência física ou simbólica com base em textos bíblicos como de Cl 3,18-4,1 e Ef 5,22-6,9. Negam-se, em algumas situações, a liderança, a palavra e o protagonismo das mulheres nas igrejas, utilizando-se de textos como 1Tm 2, 8-15; 1Tm 1,1-2,15; 1Tm 3,1-4,16 e 1Tm 5,1-6,21.
A pergunta a ser feita é se é possível haver uma cultura de ódio, de discriminações, de desigualdades baseada em Jesus Cristo. As narrativas dos Evangelhos contam a história de um Jesus que sofreu consequências das doenças entre os poderes religiosos, econômicos e políticos do seu tempo. Nesse sentido, nada é mais incoerente com Jesus Cristo do que instrumentalizar seu nome para propagar o ódio, para legitimar e justificar estruturas sociais e projetos excludentes e violentos.
Precisamos ir à raiz para compreendermos como, historicamente, foram elevadas teologias que possibilitaram tanto a instrumentalização do nome de Jesus para argumentar em favor de projetos autoritários e de exclusão quanto para criar a imagem de que o movimento de Jesus não confrontava as estruturas violentas de seu tempo.
As raízes do ódio e da intolerância
O contexto brasileiro é caracterizado pela pluralidade religiosa e cultural e de profundas desigualdades. Como país, o Brasil nunca lidou bem com a pluralidade, compreendida, desde sempre, como algo a ser suprimido. As estratégias para a eliminação da pluralidade foram a violência e a imposição do cristianismo como religião “civilizadora” dos selvagens, povos indígenas e das “não pessoas”, africanos e africanas escravizados. Apenas com o batismo, indígenas e africanos eram reconhecidos como seres humanos; continuavam, porém, sendo escravizados e explorados.
O Brasil não construiu sua história a partir de experiências de diálogo e inclusão. Nossa história é mais caracterizada por autoritarismo, violência, submissão que resultaram no extermínio e no silenciamento de diferentes culturas.
No entanto, ao mesmo tempo, que temos esse passado violento e intolerante, houve um momento de negação da violência e da intolerância.
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz aponta que foi passado um tipo de verniz sobre a história brasileira que justifica a dominação.
Para a autora, essa tendência à negação da característica violenta de nossa história é uma forma de intolerância, porque não permite que a crítica e o atrito sejam percebidos. A ausência da crítica e do atrito forja uma falsa sensação de paz – “a paz de túmulo”: se não existem contradições e problemas, não há razão para debate e confrontos. As ambivalências e as dissonâncias são silenciadas sob o argumento de que o Brasil é o país da democracia racial, da cordialidade e da coexistência entre diferentes culturas e religiões. Sob essa “paz dos cemitérios” inviabilizam-se os conflitos que estão diariamente presentes, embora latentes.
Não é possível conversar sobre as intolerâncias no Brasil sem olhar para a história brasileira, com abertura para retirar as muitas camadas de tradições inventadas e a história distorcida com o objetivo de negar os conflitos, os autoritarismos, o racismo e a violência sistêmica e estrutural que caracterizam nossa trajetória como país.
Se hoje vivemos em contextos polarizados, se a cultura do ódio sobressai, é importante assumir que isso é a ebulição de questões que o Brasil não resolveu. Entre essas questões estão o racismo, a misoginia, a imposição de uma única religião e a negação de outras, o patriarcalismo. Todas essas questões, geradoras de desigualdades e violências, historicamente foram abafadas com a criação de mitos como o da democracia racial, da festividade e do espírito acolhedor do brasileiro.
Desafios da CFE 2021
Richard A. Horsley chama a atenção para que, ao se categorizar Jesus como figura religiosa, foram deixadas de lado as implicações políticas e econômicas de seu discurso e de sua prática. Quando se projeta na sociedade antiga um pressuposto ocidental moderno, Jesus é visto como uma figura individual que se integra com o meio social em que estava inserido. A tendência é ver Jesus atuando com pessoas, e não com grupos sociais e instituições políticas. Historicamente, Jesus foi despolitizado. Não podemos prescindir do papel político, econômico e religioso de Jesus Cristo.
Quando afirmamos que “Cristo é a nossa paz”, precisamos ver Jesus mais do que um instrutor individual despolitizado que pronunciou aforismos isolados que podem ser aplicados a um estilo de vida contracultural e individual, política e economicamente descontextualizado. Diferente disso, a paz da qual Jesus falava tem implicações políticas. Isso porque não é possível separar a dimensão religiosa da vida político-econômica nas sociedades tradicionais.
Desde a perspectiva da fé em Jesus Cristo, nem a paz, nem o diálogo, podem ser descontextualizados e despolitizados. A CFE 2021, ao abordar o diálogo como compromisso de amor, e ao afirmar que Cristo é a paz que transforma as decisões em unidade, terá que falar, problematizar e incluir nas estruturas geradoras da violência e da cultura do ódio. Essa incidência não pode ser única e exclusivamente na sociedade, mas também nas igrejas, considerando que a cumplicidade entre igreja e poder mantenedor das estruturas opressoras continua sendo realidade.
O autor da carta aos Efésios, que inspira o lema bíblico da CFE 2021, incide em uma comunidade polarizada. Comunidade essa que judeus identificados com o projeto de Jesus Cristo entendiam que os gentios também identificados com este não poderiam participar da comunidade, porque não eram circuncidados. Havia, portanto, uma compreensão de que existia um grupo mais legítimo do que o outro. O autor da Carta aos Efésios afirma, categoricamente, que em Cristo não há divisões. Todas já foram superadas. Portanto, não há vivência do Evangelho fora da comunidade de iguais. A única possibilidade de ser coerente com a Boa Nova é transformando tudo o que gera desigualdade. Isso significa que a fé é política, na medida em que problematiza as alianças de poder e as transforma.
Nesse sentido, precisamos nos perguntar, necessariamente: que diálogo desejamos promover?
A maturidade para o diálogo que desejamos realizar tem implicações na identificação os muros que precisam ser derrubados hoje para que a unidade e a paz se tornem realidades políticas, econômicas e religiosas de igualdade. Essa maturidade tem relação sobre como entendemos e vivemos o cristianismo como religião.
Os desafios apresentados pela CFE 2021 são grandes, gerando consideramos nosso contexto polarizado e fundamentalista, em que o poder econômico e seus interesses são colocados no lugar do Deus da vida e da diversidade.
Essa Campanha nos desafia a olhar em profundidade e com abertura para a nossa experiência de fé e para nos reconhecemos uns nos outros e umas nas outras, de forma empática, solidária e, acima de tudo, politizada, no sentido de rever as relações de poder construídas.
Talvez assim consigamos transformar a intolerância em respeito e amor ao próximo e à criação.
Para aprofundar o assunto, conheça mais os Efésios
Muito embora partilhar como Colossenses o interesse na descrição do Cristo universal, a Epístola aos Efésios destaca-se entre os escritos neotestamentários por sua descrição da Igreja como uma, santa, católica e apostólica. Esse ensinamento sobre a natureza da Igreja é a principal contribuição de Efésios.
O autor realça, em particular, a unicidade de judeu-cristãos e pagão-cristãos no corpo de Cristo, a Igreja. Estão unidos pela paz reconciliadora de Cristo obtida pelo derramamento de seu sangue na cruz.
Por último, a Igreja é também apostólica. O autor relembra com reverência o tempo dos “santos apóstolos”. No tempo em que o autor escreveu, no fim do século I d.C., era importante salientar a continuidade com a tradição apostólica e as origens da fé em fase de algumas formas esotéricas e apocalípticas de cristianismo que, em partes importantes, se afastavam do ensinamento tradicional. Ao escrever em nome de Paulo, é óbvio que o autor queria firmar seu ensinamento na tradição apostólica.
Grande parte de Efésios baseia-se diretamente em material tirado de Colossenses, embora o autor muitas vezes lhe dê uma interpretação nova ou ampliada. As duas cartas têm muitos pontos de semelhança na estrutura.
A unidade dos Ef 2,11-22 em que se insere o lema da CFE 2021 trata de judeus e pagão unidos em Cristo. Em linguagem elevada e talvez recorrendo a material hínico, o autor trata do tema da paz (2,14.15.17a.b) a fim de mostrar a unidade de relacionamento de judeus e pagãos em Cristo.
Cristo, que é nossa paz também efetuou a paz unindo judeus e pagãos. Fez isso destruindo o muro do ódio que os separava, isto é, por meio de sua morte, aboliu a lei com seus mandamentos e preceitos como fator de separação. O propósito de fazer isso era “criar em si um só homem novo”, a partir dos dois grupos, judeus e pagãos. Desse modo, por meio da cruz, ele reconciliou ambos com Deus em um só corpo, tendo matado o ódio que havia entre eles. “Um só corpo” é termo fecundo, referindo-se ao corpo físico de Cristo que morreu e a seu corpo, a Igreja, que consiste em judeus e pagãos.
Portanto, por sua vinda e sua ação, Cristo proclamou a paz se ambos – aos judeus que estavam perto e aos pagãos que estavam longe (2,13). Por isso, ambos têm acesso ao Pai em um só Espírito (4,4); o Espírito opera no corpo de Cristo, está ativo na Igreja.