Primeira pessoa a ser vacinada em Roraima é uma indígena

Iolanda Pereira da Silva (45) é da etnia Macuxi e mora na comunidade indígena Uiramutã, Região das Serras, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Foi a primeira indígena do estado de Roraima a ser vacinada contra o Novo Coronavírus nesta terça-feira, 19 de janeiro de 2020.

Em entrevista exclusiva para Missões, Iolanda fala sobre a sua trajetória como catequista e no trabalho na área da saúde, acompanhe:

PODCAST:

 

Iolanda, conte para nós um pouco de sua história.

Nasci na comunidade indígena Uiramutã em 1975, sou filha de Orlando Pereira da Silva e Luiza Pereira, ambos macuxis. Sou católica desde sempre, meus pais são católicos, conheço os Missionários da Consolata. Eles trabalham conosco nas comunidades em nossa região.

Desde meus 11 anos eu trabalhei na igreja, a comunidade me escolheu para fazer o trabalho de catequese. Fui catequista de 1987 a 2009. Atuamos muito com os missionários da Consolata fazendo trabalhos de conscientização, evangelização, refletindo sobre o plano de Deus para nós. Fizemos campanha sobre o alcoolismo, contra a violência e para que os indígenas pudessem ter uma vida melhor, pois, na época havia um alto consumo de bebida alcoólica e violência nas comunidades. Era uma área de garimpo e o trabalho foi intenso e conseguimos conscientizar a população indígena.

Na época já existia o CIR (Conselho Indigenista de Roraima) e os trabalhos eram feitos junto com as lideranças. O catequista é um grande líder para a comunidade que deve ser luz, aquele que vai guiar o seu povo, para nós é muita responsabilidade ser um catequista, temos que estar à frente e participar de todas as atividades da comunidade e os missionários da Consolata têm nos ajudado muito sendo sempre presentes.

Como você começou seu trabalho na área da saúde?

Iolanda em palestra sobre saúde indígena. Foto: Arquivo Pessoal

Quando eu tinha 11 anos meu pai me escolheu para poder aprender todas as coisas que ele fazia como pajé e parteiro. Ele atendia a nossa comunidade e outras também. O pessoal da área da saúde deixava com ele medicamentos para poder atender as situações mais graves. Ensinaram a ele como aplicar soro e dar injeção. Entre os filhos que ele tinha, Leonardo, Quésia, Gerocina e eu, sendo que eu sou a quarta filha, me escolheu para poder ajudá-lo neste trabalho de medicina tradicional indígena.

Eu aprendi muita coisa com ele, eu era sua assistente, onde ele ia eu estava junto, atendia todo tipo de paciente. A casa do meu pai era como se fosse um hospital, porque ele internava muitos pacientes e na época não tínhamos agente e equipe de saúde, raramente aparecia uma equipe médica para fazer as vacinações e fazer algum tipo de atendimento. Era muito difícil a presença deles nas comunidades.

Observando o trabalho que meu pai fazia, aos 18 anos aprendi a fazer partos sozinha, sem a ajuda dele. Casei-me com 16 anos e fui morar em outra comunidade e comecei o trabalho como parteira. Ajudei muita gente. Nunca deixei de atender as mulheres grávidas, ainda faço pré-natal, acompanho a gravidez até o fim para não ter nenhum problema. Durante esse trabalho, desde meus 18 anos até o ano passado, fiz 276 partos.

Como você ajudou seu povo com seu trabalho na área da saúde? Continua ajudando?

Trabalhei pela saúde indígena de 1993 até janeiro de 2020 no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Leste, ainda continuo ajudando, mas não mais como agente de saúde. Na época havia muita malária nas comunidades e eu fazia o tratamento do pessoal com medicina tradicional indígena.

Durante o período de 2003 a 2006 assumi cargos como presidente do ConselhoLocal de Saúde, de janeiro de 2009 a fevereiro de 2010 fui Secretária de Saúde no município de Uiramutã.

Depois que eu saí da Secretaria de Saúde voltei para o DSEI Leste para trabalhar na sede para fazer parte como supervisora de saneamento, mas também assessorei a coordenação e a DIASI (Divisão de Atenção à Saúde Indígena) de 2010 a 2017.

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Produção de remédio tradicionais na casai leste de Roraima. Foto: Arquivo Pessoal

No último ano deste período já carregava esta bandeira da medicina tradicional indígena e conseguimos pelo CONDISI (Conselhos Distritais de SaúdeIndígena) criar um grupo para este trabalho.

Ainda neste ano fizemos uma eleição para a coordenação da medicina tradicional do DSEI Leste, concorri com cinco parentes indígenas e acabei sendo eleita para a coordenação. Fiquei na coordenação no período de 2018 a 2019. E logo após sair do DSEI eu recebi um convite do presidente do IETNOS (Instituto de EtnoCultura e Sustentabilidade da Amazônia), o professor Carlos Alberto, para ser a nova presidente e aceitei, mas, devido à pandemia não pude ir para o Amazonas para conversar a respeito, então estamos tentando implantar o Instituto em Roraima.

Iniciamos algumas oficinas sobre panela de barro, medicina tradicional, artesanato com fibra e sementes, danças, arco e flecha, natação etc. Muitas comunidades já perderam algumas referências da cultura indígena e estamos tentando resgatar estes valores culturais e reforçar o conhecimento da medicina tradicional indígena. Estamos levando para a população este trabalho.

Como se sente, tendo sido escolhida como a primeira pessoa a tomar a vacina contra a Covid-19 no estado de Roraima?

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técnica em enfermagem Gilda Aparecida de Oliveira Silva, governador Antonio Denarium, Iolanda Pereira da Silva parteira e pajé e o idoso José Ribeiro Pereira da Silva. Foto: Divulgação

Ao fazer uma visita no DSEI Leste e conversar com o presidente em busca de algumas ideias, me surpreendi com a notícia que eu seria a primeira pessoa a tomar a vacina contra a Covid-19 no estado de Roraima. "Logo eu? Mas não tem outra pessoa?" E a resposta foi, sim, você, por ser uma liderança e por outros vários motivos.

Então lembrei dos meus pacientes lutando pela vida e do meu diálogo com eles: "Esta fase vai passar, você vai conseguir e vai ficar bem, não se desespere, respire, em algum momento os cientistas que estão estudando vão conseguir uma vacina que vai amenizar este nosso sofrimento". Buscava reacender a esperança neles quando eu falava sobre vacina e ao lembrar disso tudo, eu disse: "Eu aceito e fico muito emocionada ao lembrar de tudo isso. Eu sempre estou aqui e vou ajudar no que eu puder". Não achei que fosse repercutir tanto, e meus pais, meus filhos, todos preocupados em como eu iria ficar, como iria ser e eu sempre dizendo para eles para não ficarem preocupados e que tudo isso iria passar.Toda a minha família foi infectada pela Covid-19, mas não com sintomas graves.

Que orientação você dá para as pessoas e para o povo indígena sobre a vacina?

Para os povos indígenas e para todos, a minha orientação é, não deixe esta doença se agravar. Aos primeiros sintomas (dor de cabeça, tosse, coriza), procurem tratamento. Nós estamos em uma pandemia e não pensem que é uma gripe, isto é Coronavírus, então comecem a tratar antes que piore. Esta vacina é muito importante para a nossa saúde, para podermos ter imunidade. Não é verdade quando o presidente e todas as outras pessoas falam que quem pegou já tem imunidade. Tenho acompanhado muitos pacientes que já foram infectados e eles não têm imunidade alguma, precisamos nos cuidar. Eu tenho pesquisado muito, acompanho esta pandemia desde quando atingiu a Europa. Espero que a população indígena não deixe de tomar a vacina, ela vai fazer com que criemos anticorpos contra esta doença, temos que nos preparar para enfrentá-la e manter todos os cuidados recomendados.

Além de Iolanda, foram vacinados em Roraima, no dia 19 de janeiro, José Ribeiro Pereira da Silva de 82 anos morador de abrigo para idosos e a técnica em enfermagem Gilda Aparecida de Oliveira Silva, ambos escolhidos de acordo com critérios do Ministério da Saúde.

Fonte: Missões a Missão no Plural.

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