Paulo: o Apóstolo Migrante

O apóstolo desdobra-se em esforços para multiplicar “casas” nas cidades, alimentando-as posteriormente com suas visitas e cartas. Semelhantes “casas” constituem os núcleos das primeiras comunidades cristãs.

Por Alfredo J. Gonçalves

O apóstolo Paulo representa uma dupla transição no cristianismo primitivo: de um lado, rompe com o nacionalismo judaico e se abre à cultura grega e ao universalismo da Boa Nova de Jesus Cristo; de outro lado, contribui decisivamente na passagem do Evangelho do mundo rural para o mundo urbano. Enquanto as metáforas de Jesus são predominantemente agropastoris (salvo os lagos, a pesca e os pescadores), as viagens de Paulo seguem a rota comercial que ligava em rede as principais cidades da época, tais como Antioquia, Tessalônica, Filipos, Corinto, Atenas, Éfeso, Roma...

Num período histórico marcadamente estático e tradicional, Paulo se move entre as cidades com uma versatilidade impressionante. Em suas longas viagens, cruza e recruza várias delas como um missionário surpreendentemente fiel, incansável e intrépido. Ao mesmo tempo frágil e forte, não se cansa de percorrer caminhos cheios de perigos e imprevistos, tanto por terra como por mar. Se Jesus é visto como um “profeta itinerante”, Paulo o é com ênfase ainda maior. Seu campo de ação é mais vasto, mais dinâmico e mais plural.

saopauloQual a preocupação de Paulo em suas andanças? O conceito grego de oikos (=casa) ilustra bem sua atividade evangelizadora. O apóstolo desdobra-se em esforços para multiplicar “casas” nas cidades, alimentando-as posteriormente com suas visitas e cartas. Semelhantes “casas” constituem os núcleos das primeiras comunidades cristãs. Trata-se, na verdade, de um conceito pagão que foi cristianizado. A casa/família antiga, bem mais ampliada que a moderna família nuclear, à medida que se convertia ao cristianismo, tornava-se, por sua vez, uma referência para as pessoas de fé que buscavam a Deus.

Mais do que um teólogo, o que também o é em profundidade, Paulo se revela um homem preocupado em costurar relações novas no universo das cidades antigas. Em suas cartas é impressionante o número de pessoas que são citadas pelo nome, a quem ele envia saudações; ou então o número de famílias a quem ele agradece pela hospedagem, pela acolhida. Vale a pena ler as cartas de Paulo surpreendendo-o não tanto como grande teólogo, mas como um amigo fraterno, com os olhos rasos d’água, relembrando as pessoas a quem ama, falando de saudades, de encontros e reencontros. Suas viagens e suas mensagens fazem parte de uma nova prática solidária num universo cosmopolita, aberto ao comércio, urbano e de variados interesses (MEEKS, 1992).

Paulo sabe que a cidade, em geral, abriga multidões solitárias. Pessoas que se aglomeram aos milhares, se cruzam, disputam espaços exíguos, mas raramente se conhecem. Nesse sentido, multidão rima com solidão. É uma espécie de deserto onde prevalece o anonimato, atrás do qual muita gente se esconde ou é simplesmente ignorada e abandonada. É certo que, de acordo com um provérbio medieval, “o ar da cidade torna livre”, mas também é verdade que essa liberdade é extremamente ambígua: tanto pode levar a novos tipos de escravidão quanto engendrar personalidades mais maduras. No mundo moderno ou pós-moderno em que nos debatemos atualmente, a migração acelerada, e às vezes caótica, do universo rural para o universo urbano, por exemplo, pode associar ao conceito de liberdade a noção de “fazer o que se quer”. Também não é raro que essa atitude, para quem perdeu as referências de um universo tradicional e perfeitamente hierarquizado, conduza aos becos sem saída da droga, do álcool, da prostituição, do tráfico e da violência. A liberdade nos coloca diante de uma encruzilhada: pode levar a um abismo sem fundo, como pode amadurecer um processo de auto superação.

As cartas de Paulo mostram, já em embrião, as preocupações com o mundo conturbado das cidades. E mostram, ao mesmo tempo, as potencialidades ocultas em pequenas células sociais que, unindo-se em oração e ação, se tornam pontos de referência para quem se sente órfão, solitário e perdido. Em sintonia com Simone de Beauvoir (1967), no ambiente urbano é comum as estrelas se apagarem no céu, os marcos desaparecerem da estrada e o chão se abrir debaixo dos pés. Daí a insistência de Pedro e de Paulo em oferecer as comunidades cristãs emergentes como “casa”, referência sólida, sinônimo de pátria, especialmente para quem se encontra fora da própria terra e, por isso mesmo, sofre hostilidade, preconceito e perseguição.

Vale o mesmo para a Primeira Carta de Pedro. Também neste caso o apóstolo, escrevendo aos “estrangeiros da dispersão do Ponto, da Galácia e da Capadócia”, insiste em que a união entre eles deverá ser a “Casa de Deus”. Hostilizados e perseguidos por serem ao mesmo tempo estrangeiros e cristãos, Pedro os exorta a se manterem firmes na comunidade, fazendo desta a sua casa/famíla [oikos] (ELIOT, 1985; NOGUEIRA, 2002). Estudando as origens sociais do cristianismo primitivo, Ekkehard W. Stegemam e Wolfgang Stegemam chamam a atenção para a importância da instituição casa/família no nascimento e consolidação das comunidades cristãs. Seus comentários referem-se ao contexto social dos Atos dos Apóstolos e das cartas paulinas, mas, guardadas as diferenças, podem estender-se para o universo das cartas de Pedro.
Dizem literalmente os autores citados:

saopaulo3...às metáforas da casa e da família correspondem também as exortações éticas do amor ao próximo e do amor fraterno. Estas inspiram-se, a seu modo, em antigas normas de reciprocidade, em que o amor fraterno representa um comportamento solidário no seio da família nuclear ou da parentela, e o amor ao próximo a reciprocidade equilibrada entre vizinhos e amigos... Também a hospitalidade é uma forma de solidariedade no contexto da reciprocidade equilibrada. (…) os que acreditavam em Cristo, comprometidos com a missão, encontravam nas casas dos companheiros de fé hospitalidade e, em caso necessário, também apoio econômico. As relações sociais entre os mesmos inspiravam-se na antiga solidariedade de vizinhança e de família. Assim, podemos afirmar com tranquilidade que as comunidades cristãs, para a concepção que tinham de si mesmas e de suas relações sociais, inspiravam-se no modelo da casa antiga ou no núcleo familiar (STEGEMANN; STEGEMANN, 2001, p. 377-379).
Convém, ainda, retornar às palavras do Papa Paulo VI, no começo da década de 1970:

Construir a cidade, lugar de existência dos homens e das suas comunidades ampliadas, criar novos modos de vizinhança e de relações, descortinar uma aplicação original da justiça social, assumir, enfim, o encargo deste futuro coletivo que se prenuncia difícil é uma tarefa em que os cristãos devem participar. A esses homens amontoados numa promiscuidade urbana que se torna intolerável é necessário levar uma mensagem de esperança, mediante uma fraternidade vivida e uma justiça concreta (PAULO VI, 1971, s/p.)

Ou lembrar a oração de Santo Domingo, citada por Libânio: “Ajuda-nos a trabalhar por uma evangelização inculturada que penetre os ambientes de nossas cidades”. Numa cidade como São Paulo – e em tantas outras – a criação e/ou o fortalecimento dessas “casas”, núcleos de convivência eclesial, não deixa de ser uma resposta à pergunta pela Pastoral Urbana. Tais casas podem surgir por diferentes vínculos: por vizinhança (prédio, bairro, rua, favela, cortiço), por categoria (médicos, professores, operários, comerciantes), por faixa etária (jovens, terceira idade, meia idade) ou até por laços virtuais (Facebook, WhatsApp, Skype, e-mail etc.). O importante é multiplicar os espaços de encontro, ligando-os à caminhada eclesial da Igreja Local.

Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço de Proteção ao Migrante - SPM.
Extraído do livro “Migração: Crises e encruzilhadas”.

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