Enquanto surda, me vejo professora, artista tradutora, consultora, diretora de corpo e atriz.
Por Rafaela Piekarski Hoebel Lopes dos Santos*
A questão que norteia esse texto recorre à minha experiência com o teatro. No cenário da minha prática, gostaria de iniciar falando sobre a peça teatral infantil Cirandas Brasileiras, dirigida por Itaércio Rocha, por ser um marco incrível simbolizando minha inserção como atriz tradutora na esfera artística. Uma peça para presença maciça de surdos e ouvintes.
Historicamente, os surdos não frequentavam o teatro, pela falta de intérpretes de Libras. Ainda quando a presença deste profissional se fez obrigatória, muitas experiências interpretativas seguiram padrões tradicionais e com pouco envolvimento, indumentárias padrão e sinalizações sem recursos de expressão e corporalidade.
O Cirandas Brasileiras causou grande impacto na cidade de Curitiba, acredito que o trabalho em parceria, em conjunto, entre tradutor surdo e ouvinte é um diferencial, isso porque enriquece o processo. Na tradução que produzi com o tradutor Jonatas Medeiros pudemos construir uma poética em dueto, dinâmica e em diálogo com todos os artefatos da peça. Poemas, Músicas, Rimas, Trocadilhos Visuais, uma miríade de possibilidades performáticas em língua de sinais representando a cultura e a história com canções de cirandas. Foram 25 músicas que nos exigiram uma pesquisa cultural, tratamento linguístico em nossa tradução, criação de códigos tradutórios entre eu (surda) e o tradutor (ouvinte), uma vez que não escutando nada, a corporalidade do tradutor ouvinte era meu apoio com marcações, códigos e compassos. Para além do seu importante suporte, a troca de luzes, troca de figurinos e acessórios dos atores, movimentação da cena e até mesmo a mudança no telão de fundo do palco eram indicadores das cenas subsequentes. Meu olho se ampliou para todos os detalhes que poderiam me fornecer a dimensão temporal e sequencial da peça.
Metodologicamente nosso trabalho em parceria envolveu um processo de pesquisa textual sobre as origens e contextos históricos das cantigas, busca de imagens e referências visuais, ensaio, gravação de traduções e mais ensaios. Toda pesquisa foi fundamental para nossa apresentação, ampliou todo nosso potencial tradutório. E deu origem a um trabalho que se concretizou numa produção poética em dueto. Performance sinalizada em Libras de poesias em dueto.
Além dessa experiência, trabalhei também com o Jonatas na tradução artística, performatizando uma contadora de história na peça o Menino Quadradinho e o Mundo das Palavras, com direção de Fátima Ortis. A peça infantil mesclou teatro com linguagem cinematográfica, posicionando a contadora em um telão. Fui convidada para fazer uma personagem em especial, numa janela de Libras com indumentárias idênticas as da contadora ouvinte da peça, Rosi Greca. Em uma janela grande, uma contadora-tradutora surda para o público.
Tanto a peça “Cirandas Brasileiras” quanto a peça “O Menino Quadradinho” são realizadas em benefício do Hospital Pequeno Príncipe e com produção em Libras da Fluindo Libras.
Por fim, tive a oportunidade de trabalhar como Diretora de Corpo na peça Teatral “Surdo Logo Existo”, com direção de Gabriela Grigolom e Jonatas Medeiros. A peça é composta apenas por atores surdos, contando com 11 atores em cena. Um trabalho em equipe e com muitas trocas. Na peça, além de atriz, atuei na direção de corpo do elenco, trabalhando com os espaços, posições e ritmos em cena. ”Surdo Logo Existo”, a primeira peça teatral constituída apenas por elenco de surdos, foi apresentada em Curitiba no teatro Guaíra e a presença de surdos no espetáculo foi massiva! Tivemos de fazer apresentações extras para dar conta de tantos surdos interessados em ver outros surdos atuando e representando uma história surda.
Fora o teatro, meu trabalho como tradutora no audiovisual percorreu funções como consultora de interpretação de debate político, revisora de tradução, tradutora espelho de campanha política, tradução de publicidade na comunidade surda. Ah, não poderia deixar de mencionar minha experiência como atriz tradutora em um clip musical com a cantora Raissa Fayel. Na parceria tradutória de sempre, incluímos de forma muito significativa a presença da Libras como elemento da narrativa da Música Zoiúda.
Enquanto surda, me vejo professora, artista tradutora, consultora, diretora de corpo e atriz. Uma das frases que marcou minha vida está no folder da peça “Surdo Logo Existo” que é “Nós surdos, existimos e resistimos, sempre!”
As experiências aqui citadas marcaram minha vida e trajetória. O trabalho em conjunto com um tradutor ouvinte permite isso. A junção. E finalizando gostaria de tecer um breve comentário sobre “privilégio ouvinte”, porque o que citei aqui como trajetória, infelizmente, é muito incipiente, o espaço da interpretação é dominado por intérpretes ouvintes que não oportunizam o trabalho conjunto com intérpretes surdos, não buscando o apoio mútuo. Queremos intérpretes aliados que nos apoie e inclua os profissionais surdos também em suas atividades.
Ainda acrescento o privilégio de uma sociedade ouvinte que tem acesso a todos os meios de comunicação e espaços culturais em suas línguas. Você, ouvinte, já pensou o quanto você tem o privilégio de acesso onde os surdos são completamente apagados? No seu cenário linguístico e cultural, repare: cadê os surdos?, onde estamos?, onde está nossa língua em programas de entretenimento? nos jornais? nas novelas ou filmes? teatro, música? Nosso acesso é naturalmente negado. Embora com uma pequena presença, um tanto estranhada, ou causadora de emoção, a língua de sinais tem aparecido um pouco mais nos últimos anos, e, com muita luta e articulação dos movimentos surdos estamos conseguindo estabelecer alguns direitos, ainda poucos, principalmente se comparados a todo o privilégio de acesso dos ouvintes.