Cardeal reúne oito intervenções do Papa sobre a pandemia do Novo Coronavírus e publica livro.
Tony Neves*
Aprendi com o Papa Francisco a respeitar esta pandemia. Por ele, percebi depressa que estávamos diante de algo muito grave e que o mundo virava uma página da sua história, pois nada seria como antes. Acompanhei com dor e admiração a sua caminhada vacilante pelas ruas vazias de Roma para ir até à Igreja de S. Marcelo rezar diante do Cristo Crucificado a quem o povo da Cidade Eterna atribui o afastamento de uma peste há algumas centenas de anos. Segui com enorme silêncio as suas celebrações de Semana Santa e Páscoa numa Praça de S. Pedro completamente vazia, apenas com um Papa a rezar humildemente para que Deus livrasse o mundo dos efeitos desta terrível pandemia. E voltei a dar muita atenção às palavras do Papa quando, já depois do desconfinamento, ele gritou ao mundo do alto da sua janela, pedindo cautela e cumprimento das ordens das autoridades porque não faz sentido celebrar vitórias antecipadas de uma guerra que ainda não está ganha. E não está, e não estará tão cedo. A lucidez – diria, inspiração – do Papa Francisco tem sido uma luz em tempo de trevas, equilibrando entre os que desesperam e aqueles que desvalorizam o impacto tão terrível como este que a Covid-19 trouxe ao mundo.
O Cardeal Czerny, no pico da pandemia, reuniu oito intervenções do Papa, proferidas ou escritas entre 27 de março e 22 de abril. Menos de um mês. A publicação destes textos foi feita online e, mais tarde, começaram a surgir versões impressas em diversas línguas. Chegou agora a versão portuguesa deste pequeno grande livro: ‘Vida após a pandemia’. Pequeno, porque tem formato de bolso e apenas 69 páginas. Grande, pelas ideias, pelos ideais, pelas provocações, pelos alertas, pelos caminhos de futuro que rasga…
Tempestade inesperada
Faço alguns recortes, em jeito de destaque. O primeiro texto apresenta a intervenção do Papa naquele momento extraordinário de oração em tempo de pandemia, feito à entrada da Basílica de S. Pedro: ‘fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento’. Lembrou ainda o Papa: ‘a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades’. Conclui: ‘não somos autossuficientes, sozinhos afundamos’. E, num apelo à Fé, Francisco lança âncoras de esperança: ‘Com Cristo a bordo, não há naufrágio!’.
Na manhã de Páscoa, na Basílica de S. Pedro, o Papa rezou por todas as vítimas da Covid-19 e alertou: ‘Este não é tempo para a indiferença, porque o mundo inteiro está a sofrer e deve sentir-se unido na pandemia.(…). Este não é tempo para egoísmos.(…). Este não é tempo para divisões.(…). Este não é tempo para continuar a fabricar e comercializar armas.(…). Este não é tempo para o esquecimento.(…)’. E, a terminar esta reflexão pascal, o Papa resumiu: ‘palavras como indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são as que queremos ouvir neste tempo’.
Muito forte é a mensagem que o Papa envia aos Movimentos Populares da América Latina: ‘vocês são verdadeiros poetas sociais que, desde as periferias esquecidas, criam soluções dignas para os problemas mais prementes dos excluídos’.
A Carta publicada na revista espanhola ‘Vida Nueva’ reafirma a convicção de que a grande lição desta pandemia é que ninguém se salva sozinho. Retomando ideias da Laudato Si, o Papa pede um desenvolvimento sustentável e integral, pois tudo na terra está interligado. Pede mais solidariedade e mudança de estilos de vida que criam uma terra mais justa e solidária.
No domingo da Misericórdia, o Papa definiu o egoísmo como um vírus ainda pior que a Covid-19: ‘o risco é que nos atinja um vírus ainda pior: o da indiferença egoísta’. E lançou avisos à navegação: ‘sem uma visão de conjunto, não haverá futuro para ninguém.(…). Usemos de misericórdia para com os mais frágeis: só assim reconstruiremos um mundo novo’.
O último texto é a catequese da Audiência Geral feita no 50º Dia Mundial da Terra: ‘temos que crescer no cuidado da casa comum’. Denunciou: ‘devido ao egoísmo, falhamos na nossa responsabilidade de guardiães e administradores da Terra: poluímos o planeta, o saqueamos, colocando em perigo a nossa própria vida; falhamos na preservação da terra, da nossa casa-jardim, e na tutela dos nossos irmãos. Pecamos contra a terra, contra o nosso próximo e, em última análise, contra o Criador, o bom Pai que vela sobre todos e quer que vivamos em comunhão e prosperidade’. Concluiu o Papa com um desafio de futuro: ‘esforcemo-nos por amar e apreciar o magnífico dom da terra, nossa casa comum, e por cuidar de todos os membros da família humana’.
Pela lucidez, pela inspiração, pelo bom senso e por ser protagonista de uma luta sem tréguas contra a Covid-19 e seus efeitos demolidores, o Papa é a figura número um mundo que quer rasgar novos caminhos de futuro, assentes na justiça, na paz, no amor, na solidariedade, no respeito por tudo e por todos.