Há uma parcela da população que simplesmente não importa pra ninguém. Ouvindo as orientações para a população, logo se percebe que os médicos e governantes estão falando para um grupo bem específico de pessoas, excluindo a maioria.
Por Elaine Tavares*
Quem está acostumado a ver filmes de tragédias biológicas de roliúde sabe qual é a fórmula da desgraça: governos corruptos, um maluco que fez a merda, milhões de pessoas morrendo, um pequeno grupo de heróis tentando salvar o mundo. Ao final, os heróis revertem a coisa, salvam seus ente queridos, salvam os governantes, mas os milhões que pereceram parecem não ter qualquer importância e a vida segue normal com os que sobraram.
Agora, estamos vivendo como num desses filmes com o surto no novo vírus. E nada escapa do roteiro. É exatamente como na arte. Há uma parcela da população que simplesmente não importa pra ninguém. Ouvindo as orientações para a população logo se percebe que os médicos e governantes estão falando para um grupo bem específico de pessoas, excluindo a maioria.
Simón Rodríguez, o educador venezuelano já anunciava lá no começo do 1800 que aos latino-americanos era preciso inventar ou morrer. Pois é disso que se trata agora. O que essa parcela gigantesca de gente, que não tem qualquer possibilidade de proteção contra o vírus, precisa fazer para sobreviver? Há que inventar.
Eu gostaria de ver algum médico ou cientista dizendo a essas pessoas como reduzir os danos para não morrer na epidemia.
Há milhões de pessoas que seguirão tendo de ir ao trabalho nos ônibus e trens lotados? O que fazer?
Há milhares que precisarão trabalhar em espaços lotados de outros trabalhadores, sem a possibilidade de ficarem dois metros de distância. Que fazer?
Milhares de pessoas ficarão infectadas em casas pequenas, apartamentos ou barracos sem condições de manter a regras de isolamento. Que fazer?
Há centenas de moradores de rua, sem qualquer possibilidade de prevenção. Que fazer?
E se a pessoa cuida de um velho ou de uma criança e pega o vírus, não tendo com quem deixar a pessoa cuidada, que fazer?
Ou seja, é necessário que os médicos, governantes e cientistas encontrem respostas para essa gente que não se enquadra na lógica burguesa/classe média de lavar as mãozinhas, passar álcool gel e fazer isolamento social.
Por que não o fazem? Porque não importam. Esse é o ponto. Sendo assim, é mais do que necessário que nós mesmos comecemos a testar formas de proteção nessas condições adversas das quais não sairemos. E aí, talvez as redes nos ajudem, com um ajudando o outro nas suas invenções.
Nos espaços da produção capitalista alguns trabalhadores já estão dando o tom. Fábricas e empresas estão parando por decisão dos trabalhadores, que organizam paralisações e greves. Mas, e os serviços essenciais, que precisam ser feitos: o tratamento de água, a manutenção da energia, os trabalhadores da saúde e outros. Esses precisam se deslocar e estão à descoberto. Para eles temos de ter estratégias.
Não creio que elas venham do governo ou dos cientistas que se limitam a regras genéricas. Vejam que no Brasil o presidente da nação foi o primeiro a quebrar as regras da proteção, incentivando atos públicos e compartilhando secreções com centenas de pessoas na porta do palácio, numa irresponsabilidade que pode ser considerada crime de lesa-pátria.
Por isso que a proteção da massa abandonada tem de vir dela mesma. Que a gente possa compartilhar e se proteger. Porque não há ninguém por nós a não ser nós mesmos. Isso em tempos de epidemia como em qualquer tempo. Esses momentos dramáticos servem para nos fazer lembrar. A mudança do mundo está na nossa capacidade de inventar e caminhar juntos. Só a solidariedade entre os esquecidos pode nos salvar.