A noção de socialismo, longe de ser uma doutrina pejorativamente cristalizada no passado, consiste em um pensamento que tenta se adaptar aos desafios mutáveis da história, aberto a soluções conjuntas.
Por Alfredo J. Gonçalves*
Com frequência inusitada, o presidente Jair M. Bolsonaro costuma gabar-se pelo fato de ter impedido o Brasil de cair na “crise e no caos” do socialismo. De acordo com ele, o país estava à beira de mergulhar nesse abismo perigoso, frente ao qual o seu governo surge como o salvador da pátria, retomando as rédeas do comando e instaurando uma “nova política”. Esta última, ao contrário do que ele chama de “velha política”, repõe o Brasil no rumo da democracia e do progresso. Mas qual o socialismo a que se refere o chefe de Estado?
Para a miopia anacrônica do clã Bolsonaro e respectivos seguidores, o conceito de socialismo vem associado à experiência longínqua da União Soviética ou da China, como também àquelas vizinhas de Cuba e, mais recentemente, da Venezuela. Espelhando-se em tais exemplos, os comunistas e marxistas podem ser vistos em cada esquina, em cada movimento social, em cada organização popular, mas igualmente em cada jornalista de mente crítica e esclarecida, em cada agente ou político de oposição, em cada cientista ou pesquisador, enfim, em qualquer pessoa ou grupo que resolva utilizar a razão para analisar os fatos e a história. Daí sua aversão obsessiva pelas organizações não governamentais (ONGs) e pelas instâncias intermediárias do exercício do governo e da sociedade civil. Facilmente chega-se à demonização do socialismo!
Esse olhar vesgo vem dos tempos da guerra fria. Predominavam então, no Cone Sul, a ditaduras militares, associadas à famigerada ideologia da segurança nacional. As práticas de perseguição, repressão, prisão, tortura, desaparecimento e morte deviam ser justificadas pela presença, real ou imaginário, de um inimigo do Estado, da nação e do povo. Inimigo que poderia ser tanto um agente externo infiltrado quanto um militante interno catequisado pelas ideias do “fantasma comunista”. Os tempos mudaram, passamos pela abertura “lenta e gradual” e, bem ou mal, chegamos ao movimento pelas “diretas já” e à democracia das urnas. Ao que parece, porém, o clã Bolsonaro permanece ancorado no saudosismo do poder autoritário.
A essa altura do raciocínio, convém alargar a visão para o outro lado do Atlântico. O Partido Socialista português acaba de ganhar o maior número de votos nas últimas eleições de 6 de outubro. Isso se deve, entre outros fatores, ao trabalho do governo comandado pelo Primeiro Ministro, o jurista António Luís Santos da Costa, secretário geral do Partido Socialista, ao lado do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, do Partido Social Democrata. Certo, Portugal é um país de dimensões e população relativamente reduzidas. Também não podemos afirmar que seja o paraíso da democracia. Mas de alguma forma tem representado uma alternativa viável, sejas à política de austeridade dos países centrais da Europa, seja ao nacionalismo populista que vem se impondo em diversas partes do planeta.
De uma coisa é difícil de duvidar. Frente ao autoritarismo da proposta nacionalista e populista que tem avançado nos últimos anos, o socialismo português está muito mais alinhado com os princípios primordiais de uma verdadeira democracia. Não é sem razão que o socialismo ganha o maior número de cadeiras, embora sem a maioria absoluta. Podemos, ainda, trazer outro exemplo: após ter abandonado a linha de extrema direita de Matteo Salvini, líder da Lega, o Parlamento italiano acaba de votar pela redução em cerca de 30% do número de deputados e senadores. Não em detrimento da ação política e da democracia enquanto tais, mas em vista de uma prática mais enxuta e menos dispendiosa.
A noção de socialismo, longe de ser uma doutrina pejorativamente cristalizada no passado, consiste em um pensamento que tenta se adaptar aos desafios mutáveis da história, aberto a soluções conjuntas. E mais flexível que o motor férreo que guia os interesses do capitalismo, este sim frontalmente incompatível com a democracia efetiva. De fato, a busca do lucro e do acúmulo a qualquer preço privilegia o capital em detrimento do trabalho, dos direitos em geral e da dignidade humana, do bem-estar comum e da preservação de “nossa casa comum”.