O verdadeiro inimigo é o capital. Vamos dar combate aos seus gerentes, sem esquecer sua face e sua verdadeira intenção.
Por Elaine Tavares*
A região amazônica foi a última a ser invadida no período colonial. Era um espaço hostil para os espanhóis e portugueses e só apareceu como um lugar viável para os não-originários quando veio o ciclo da borracha, no final do século XIX. Ou seja, quando se descobriu que da seringueira brotava uma espécie de ouro, a borracha. Os povos que lá viviam começaram então a ser destruídos, assassinados, expulsos. Para os capitalistas, assim como fora para os portugueses e espanhóis, a Amazônia só aparecia como um espaço de roubo de riqueza e ponto.
Com o ciclo da borracha, a migração de gente para a região ficou intensa e nesse processo a batalha era de índios contra os seringueiros, no geral gente pobre que também buscava encontrar ali alguma forma de sobreviver. Os donos dos seringais incentivavam então as famosas correrias, que eram as expedições feitas para espantar ou exterminar os povos que viviam na floresta. O nome correria é bastante ilustrativo sobre como eram as expedições. Os homens chegavam, armados até os dentes e botavam os índios para correr. Quem ficava era passado na faca ou no tiro. Edilson Martins, no livro “Nossos índios, nossos mortos” conta que muitas vezes acontecia de os homens jogarem as crianças para o alto, aparando com a ponta do facão. Era um massacre.
Naquele início do século XX os povos originários da região da Amazônia estavam praticamente nas mesmas condições que no momento do descobrimento e o avanço dos não-índios, representando o Estado capitalista dependente e predador, era feito com muita violência, visando a exploração dos seringais. Eles sequestravam as mulheres e crianças, obrigando os homens a trabalhar na extração da borracha. Não havia preocupação com a posse da terra, apenas com os seringais. As hordas se moviam pela floresta destruindo as comunidades, eliminando o modo de vida indígena, prostituindo mulheres e dispersando os homens pelos vários campos de colheita. O processo de dizimação e violência já estava acabando com os indígenas quando finalmente o ciclo da borracha colapsou. E, conforme diz Darcy Ribeiro, foi esse colapso que, de certa forma, possibilitou a salvação dos indígenas da região.
Mas, o tempo passou e o capital descobriu outras riquezas, além da borracha. A floresta era uma riqueza em si, com toda a sua biodiversidade, os rios caudalosos poderiam gerar energia, as plantas medicinais, as riquezas subterrâneas, as terras sem fim. E, sistematicamente os povos originários tiveram de enfrentar a ofensiva do mundo capitalista. Chegaram os fazendeiros, os engenheiros, as obras monumentais, as represas. E o chamado pulmão do mundo começou a minguar. Portanto, o processo de destruição é longo e vem de muito longe.
É fato que no atual governo, com o agronegócio sendo o principal aliado, a situação piorou. Há o incentivo explícito por parte dos governantes para a invasão dos territórios indígenas, seja para uso da agricultura ou da mineração. E também é fato que as liberações para desmatamento aumentaram significativamente.
Outro fato inconteste é o interesse das demais nações do mundo – principalmente as ricas – pela imensidão de riquezas que comporta a floresta amazônica, para além de sua importância climática. É de longa data a utilização de organizações de caráter social ou religioso para a ocupação dos espaços, garantindo o roubo de plantas e até de sangue indígena, na chamada biopirataria. Ou seja, é o saque perpétuo, o qual vem sendo combatido de maneira quase heroica pelas comunidades indígenas e tradicionais organizadas e por algumas organizações realmente sérias. Um trabalho feito cotidianamente, sem que o mundo não-índio faça alarde. A não ser quando ocorre um massacre ou uma tragédia mais visível.
Então, quando, impotentes, observamos a Amazônia arder nesse período do ano que é potencialmente perigoso e passível de queimadas, não podemos engolir determinados discursos, nem dos governantes brasileiros, nem dos líderes mundiais que estão também de olho nas riquezas. Do governo brasileiro muito menos, porque infelizmente está tomando por gente que, além de ter uma posição política proto-fascista diante da vida, é completamente desqualificada técnica e intelectualmente para lidar com as questões nacionais. É de uma estupidez abissal apontar que os incêndios foram provocados pelas ONGs, porque mesmo as que querem se apropriar das bioriquezas da região não as destruiriam. Logo, a quem interessa a terra queimada? É só pensar.
Então é preciso ter em conta esses elementos que apontei. A região é um espaço de disputa. De um lado, as comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas, tradicionais, que querem viver em equilíbrio com a floresta. E do outro, o mundo capitalista, que quer extrair o máximo das riquezas, mesmo que isso significa o extermínio completo de toda a vida. É uma queda de braço que vem sendo travada há séculos.
Sendo assim, há que se clamar pela Amazônia sim, principalmente nesse momento particular. Mas, há que se entender que é preciso pensar a Amazônia dentro dessa disputa entre o bem-viver e o capital. Sem isso, nosso grito se perde no vazio enquanto lá, no palco dos acontecimentos, seguirão morrendo as gentes, as árvores e os bichos, no silêncio de nossas consciências apaziguadas depois de apagado o fogo.
O verdadeiro inimigo é o capital. Vamos dar combate aos seus gerentes, sem esquecer sua face e sua verdadeira intenção.