É importante perceber que o que parece ser uma cruzada contra Maduro, é, na verdade, uma jogada bem mais complexa, e envolve uma briga de “cachorros grandes” que disputam o poder.
Por Elaine Tavares*
O golpe programado pelos Estados Unidos, para fevereiro, com a ajuda de parte da elite venezuelana e alguns presidentes latino-americanos, fracassou. Mas, foi por agora. A presença do vice-presidente dos EUA, Mike Pence, na Colômbia, no dia seguinte, e a reunião com o grupo de Lima mostra que o ataque não vai parar. Afinal, é fundamental para o império estadunidense que a Venezuela venha abaixo, porque ela representa um perigo, uma pedra no sapato, na dança das cadeiras que está sendo bailada pela burguesia mundial.
É importante perceber que o que parece ser uma cruzada contra Maduro, é, na verdade, uma jogada bem mais complexa, e envolve uma briga de “cachorros grandes” que disputam o poder. A América Latina é terreno de disputa, então, destruir a Venezuela é vital. Mas, quebrar a Venezuela não atinge só Maduro e o bolivarianismo. Pelo contrário, será algo assim como jogar pó-de-mico em todo o território latino-americano. Veja como.
O que a maioria dos meios de comunicação comercial não conta é que existe uma guerra maior, que é justamente a que vem sendo travada por dois grandes blocos capitalistas: um, unilateralista, liderado pelos Estados Unidos, com a Europa entrando como aliada, e outro com Rússia, China e Japão. É uma batalha intra burguesia, uma peleia dentro do capital. Se até os anos 1990 havia certo equilíbrio de poder, com a presença sempre ameaçadora do bloco socialista, o fim da União Soviética e a queda do muro representaram uma guinada para o fortalecimento de uma única força: a dos Estados Unidos e suas corporações. A partir daí, o império nadou de braçada, sem qualquer impedimento para seu crescimento. O pensamento único, a hegemonia indiscutível. Até mesmo a Europa teve de se render ao grupo de poder que se conformava sem limites.
A conjuntura internacional desde então passou a ser dominada não pelos governos, mas sim pelas grandes corporações e pelos bancos. São esses os que mandam no mundo e é para atender aos seus interesses que governos são eleitos ou são depostos. Há uma agenda para ser cumprida. Quem cumpre, sobrevive, quem não cumpre, cai.
Esse processo de pensamento único funcionou muito bem por quase 40 anos, com a emergência da ideologia do neoliberalismo, que nada mais do que o capitalismo com outro nome. E foi tão bom que até mesmo as chamadas forças de esquerda foram se deixando tomar pela ideia de que o capitalismo poderia ser gerido com certa humanidade, ajeitando uma aresta aqui, outra ali, concedendo políticas públicas para a pobreza, amenizando o sofrimento, mas também sendo um gestor do capital. Veio o tempo do politicamente correto, no qual tudo foi perdendo a radicalidade. As cores dos discursos esmaeceram a ponto de se dizer que era chegado o fim da dicotomia direita/esquerda. Havia uma terceira via e ela seria a salvação.
Mas, a promessa do neoliberalismo/capitalismo de uma vida boa não se cumpriu. Os conflitos começaram a surgir e justamente a expansão exponencial das corporações extraindo a vida das gentes começou a criar tensão em todo o planeta. Se as mineradoras avançavam nos territórios, as lutas comunitárias apareciam. Se os bancos tomavam as casas, as ruas se enchiam de protestos. As ações das corporações não ficaram sem resposta e as populações esperavam uma atitude mais radical por parte dos grupos de esquerda. Mas, com boa parte da esquerda mergulhada no liberalismo democrático, o discurso que começou a aquecer o coração das gentes foi o da direita ultraconservadora. Ela aparecia dizendo as palavras fortes, apresentando saídas radicais, e começou a crescer em todos os espaços.
O professor chileno Pedro Santander diz que a perda da radicalidade por parte da esquerda fez com que a ala da direita do neoliberalismo fosse se fortalecendo e, com isso, provocando também rachas internos. Segundo ele, hoje o planeta vive uma feroz disputa dentro do bloco dominante, entre os neoliberais clássicos e o de ultradireita. E é o bloco de ultradireita o que tem sido capaz de resolver as tensões de classe canalizando a fúria social criada pelas políticas neoliberais não para o sistema e sim para o outro, o diferente. É mais fácil odiar o negro, o gay, o latino, o imigrante, do que um sistema de poder o qual a maioria sequer consegue perceber.
Nesse campo de guerra a esquerda liberal amansou e tampouco foi capaz de desvelar a trama neoliberal, sem questionar o papel do mercado e das grandes corporações e sem enfrentar as dinâmicas do capitalismo. Por isso vem sendo derrotada em quase todos os espaços.
É justamente a esquerda mais radical a que consegue resistir e colocar cunhas nesse processo. A Venezuela é um exemplo: em meio a todo esse avanço das corporações e do pensamento ultraconservador ousou reivindicar soberania e independência. Ousou abrir espaço para o multilateralismo. Afinal, foi Chávez quem começou a construir a proposta de um grande bloco de poder na América Latina, unificando os países para fazer frente aos poder dos três grandes blocos econômicos que se firmavam, a saber, Europa, EUA e o Russo/Chinês. Foi a Venezuela que ousou estabelecer relações diretas com os países sem passar pelo controle dos grupos já consagrados.
O militante dos Direitos Humanos Danilo Carneiro lembra que isso é imperdoável para o capitalismo, em qualquer dos blocos. “A velha raposa estadunidense Henry Kissinger - ex-secretário de estado, criminoso de guerra e maior carniceiro do século XX - já dizia nos seus tempos áureos de poder que o maior inimigo do capital é o multilateralismo. É necessário que haja um único poder, um único bloco controlando tudo, senão as coisas se desmancham”. Pois a Venezuela ousou dar um passo para mudar a lógica unilateral e agora está pagando o preço.
Danilo também analisa que essa guerra intra capital se dá no interior dos Estados Unidos e a vitória de Donald Trump é um exemplo disso. Ele não é um louco solitário. Representa uma fração do capital que quer reestruturar os EUA por fora das corporações. Por isso o slogan “America first”. A batalha é feroz no campo do capital, pois as corporações não pensam em largar o poder, ainda mais agora que estão brigando entre si e explicitando mais uma crise do capital. Não é uma disputa entre socialismo e capitalismo como podem fazer parecer, pois tanto a Rússia como a China estão dentro do sistema capitalista até a boca. É uma batalha entre negócios.
Nessa briga de cachorro grande a Venezuela aparece como um desestabilizador. E é pega pela ditadura das corporações no redemoinho das peleias. Um estado pode tudo, menos se arvorar em soberano ou independente. Tampouco pode buscar caminhos multilaterais para seus negócios. Ou fica na agenda, ou os governantes caem. Foi por isso que aconteceu a chamada “primavera árabe”. Era necessário barrar o bloco nacionalista que crescia. “O grande capital representado nas corporações não quer saber nem da esquerda nem da direita tradicional, porque a esquerda avança para um rumo que prejudica os negócios e a direita também, porque puxa para o nacional. Daí a necessidade do discurso neutro, apagado, esmaecido e da submissão à ideia de que o capitalismo pode ser humanizado”, aponta Danilo.
É nesse contexto mundial que aparece a guerra contra a Venezuela. Ela é hoje necessária ao capital. Danilo Carneiro usa a metáfora do pó-de-mico: “atacar a Venezuela é como jogar pó-de-mico no meio de um salão lotado. Bagunça tudo. É uma tragédia”. E é bem assim.
Mesmo que não haja um ataque formal, de guerra aberta ou de ocupação militar por parte dos EUA, a desestabilização já foi feita e deve se aprofundar. Provavelmente os Estados Unidos tentarão armar grupos dentro da Venezuela, iniciar uma guerra civil, e assim, seguir minando o governo até que caia ou que a própria população aceite uma transição para o retorno ao passado, de dependência e submissão.
Só que com a Venezuela vai toda a América Latina. O pó-de-mico fará seu estrago. As burguesias latino-americanas são dependentes e associadas. Há um grande corredor de comércio entre os países do continente. Isso se quebrará, com as animosidades entre uns e outros bem como esfacelará qualquer possibilidade de integração. O plano perfeito. Toda a proposta de unificação iniciada com Chávez se desfaz e os países latino-americanos seguem na rabeira dos grupos hegemônicos de poder. “Os países submetidos serão como o um rabo do leão. Não terão poder algum”, insiste Danilo ao lembrar o provérbio popular que diz: “melhor ser cabeça de formiga do que rabo de leão”.
Vejam que o estado de Roraima já está sofrendo sem a energia da Venezuela, pois custa bem menos ao governo brasileiro comprar energia do país vizinho do que levar até lá. O custo da transmissão é altíssimo para uma carga baixa. Por isso é mais vantajoso comprar da Venezuela, que está mais perto. Pois , e agora, como vai fazer sem essa energia? Quem será prejudicado? A população, é claro.
Outro problema que atingirá todos os países vizinhos é o da migração. Com o acirramento dos conflitos dentro da Venezuela, mais gente vai querer sair. “Foi o que aconteceu na Síria com a guerra do Iraque. O povo fugiu para a Síria e a Síria teve de se ver com acampamentos de refugiados, teve de garantir alimentação, remédios e tudo mais. Isso quebra um país”, lembra Danilo. Outro país que deve sofrer diretamente é a Colômbia, inclusive com todo o processo de paz interna sendo ameaçado.
O fato é que a Venezuela aparece como um grande problema para o império estadunidense que não quer ver seu poder questionado. Afinal, se a multilateralidade se impõe, os Estados Unidos, sem o domínio unipolar, passam a ser só um país qualquer. E é por isso que vão fazer o que for preciso para destruir o projeto bolivariano.
Assim que toda essa conversa de ditadura, democracia e petróleo é só uma cortina ideológica para esconder uma batalha bem mais complexa que está sendo travada no mundo. A guerra das corporações pelo controle da vida dos bilhões de seres humanos.
Pois, na política, bem se sabe que quando a força mais poderosa tem rachaduras internas, é o momento certo para investir contra ela. É chegada a hora, então, do ataque ao capital. Mas, para isso precisa existir uma esquerda radical e organizada, que questione o mercado, o sistema, as corporações, que esclareça as populações, que apresente um projeto novo, ousado, claro. Sem isso estaremos fadados a ver a destruição, não apenas da Venezuela, mas também do futuro dos latino-americanos como gente livre.