Saudade é um pouco como a fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda.
Por Alfredo J. Gonçalves*
“Saudade é um pouco como a fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser no outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida” – diz a jornalista e escritora ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector.
Seguramente a autora, nessas poucas linhas, não se refere ao tema da oração, da espiritualidade ou de um percurso místico. Mas isso não nos impede de aplicar suas palavras nessa perspectiva. Também a oração pressupõe “a fome”, ou uma alma ressequida em busca de refúgio e refrigério. Corre-se à fonte com o objetivo de saciar-se, de comer/beber a presença de Deus. Diz o salmo: “Como a corça anseia pelas águas correntes, minha alma anseia por ti, meu Senhor” (Sl 42, 1). Essa busca, porém, não elimina definitivamente a saudade. Nada o pode fazer! Tampouco acumula reservas extras para o retorno periódico da fome/sede. Este binômio far-se-á presente durante toda a trajetória da existência humana sobre a face da terra. É condição de todo viajante.
Neste caso não há como armazenar, em tempo de abundância, tentando prevenir-se contra os dias de estiagem e escassez. Sabemos que existe o capital financeiro, o capital humano ou o capital social. Mas não existe “capital espiritual”. Por mais que se multipliquem os minutos de presença junto a Deus, a própria intimidade com o Senhor multiplica igualmente a ânsia de buscá-Lo sempre mais e eternamente.
Além disso, a saudade bate à porta em circunstâncias determinadas e tem suas próprias exigências, da mesma forma que cada momento de oração responde a temores e inquietudes bem contextualizados e precisos. O que resta desses pontos fortes de encontro com Deus é uma memória viva, a qual, ao mesmo tempo que mantém acesa a chama da busca incessante, ilumina as turbulências do presente, em vista de um discernimento futuro. A melhor imagem é a da noite escura pontilhada de pontos brilhantes que orientam os passos do peregrino.
Dessa espécie de provisoriedade e intermitência do percurso espiritual, deriva o desejo de “absorver a outra pessoa toda” ou “de ser no outro para uma unificação inteira” – como enfatiza a autora. Deus, entretanto, embora alimento nutritivo da nossa existência, particularmente nos túneis sem luz da carência e da angústia, jamais se deixa possuir. Permanece absoluto e absolutamente inatingível. O Amado oculta sua face luminosa para não cegar, não queimar e nem saturar o amor humano, uma vez que neste último os laços afetivos não raro degeneram em imperativo de possessão. A posse, quando doentia e mórbida, tende a desvendar o véu do segredo e do mistério, quebrando com isso o encanto e a novidade de cada encontro. A magia da luz se desfaz em cinzas.
A verdadeira oração torna-se, dessa forma, a própria alquimia do encontro amoroso, sem cair no desgaste de uma relação tensa e pesadamente saturada. Somente assim a relação se mantém sempre fresca, límpida e transparente, como cascata que brota da nascente. A falta momentânea do Amado transfigura-se em um misto de presença-ausência, o que faz surgir com força a saudade/fome. Nesse jogo de presença e ausência, o reencontro ganha nova vitalidade, tornando-se constantemente novo.
Transparece então toda a essência do amor, tanto em relação ao outro quanto em relação a Deus: ser a cada dia uma novidade para o outro ou totalmente Outro.
Não é sem razão que Evangelho significa Boa Nova. O Deus escondido e sempre desconhecido se revela no Filho, mas permanece oculto à nudez do olhar humano. A presença temporária de Deus entre nós cede o lugar a uma nova ausência. E esta, justamente, nutre o desejo de uma busca contínua, vigorosa e cheia de ardor. Além de oferecer um copo de água às “multidões cansadas e abatidas” (Mt 9, 35-38),
Jesus mostra-se a si mesmo como “caminho, verdade e vida” (Jo 14, 6), ao mesmo tempo que, na última ceia, se oferece como alimento eucarístico. Melhor que contar com um copo de água é conhecer a estrada que conduz à fonte da vida eterna.