São Martinho de Lima e a justiça social

A Igreja Católica não só reflete teoricamente sobre problemas de justiça social. Ela procura atuar através de organizações que levam algum conforto às pessoas vítimas de injustiça.

de Márcio A. Couto

A Igreja Católica em toda sua história de mais de dois mil anos sempre se preocupou com a justiça social no seio da sociedade. Desde que se constituíram as primeiras comunidades cristãs, a questão da justiça foi tema de reflexão. Nos Atos dos Apóstolos podemos ler que entre os cristãos tudo era comum e não havia necessidade entre eles. Para realizar esse grande ideal, os cristãos precisavam pôr os seus bens em comum e mostrar, na prática, a solidariedade para com os mais pobres.
No correr da história, os cristãos constataram que a situação de desigualdade entre ricos e pobres nas diversas sociedades do mundo precisava ser enfrentada e resolvida. Por isso, a prática dos cristãos sempre foi a de dar esmolas ou construir instituições que aliviassem a situação de pobreza de grande parte da população. Assim, foram criados hospitais para atender os pobres, escolas para ensinar aqueles que não podiam pagar um professor para formar os jovens, e outras atividades semelhantes.
Na América Latina temos o testemunho de um jovem chamado Martinho. Filho de um nobre espanhol e de uma escrava liberta nasceu no Peru, em 1579. No início de sua juventude aprendeu o ofício de auxiliar de barbeiro, que naqueles tempos incluía certos predicados de enfermagem. Em 1603, entrou para a Ordem dos dominicanos, no convento de Lima. Não tendo estudos, fez a profissão religiosa como irmão cooperador. Religioso humilde, piedoso e caridoso, amava cuidar dos enfermos e fazer o serviço caseiro do convento. Morreu aos 3 de novembro de 1639. O papa João XXIII o canonizou em 1962. Martinho de Lima tornou-se muito popular em toda a América espanhola. O serviço que prestou aos pobres pode ser considerado como uma ação de justiça social, pois o convento onde vivia fornecia milhares de refeições aos pobres daquele país. Os dominicanos da cidade de Lima, no Peru, queriam contribuir para diminuir o sofrimento de populações inteiras que viviam na pobreza.

Leão XIII

No entanto, a ideia de justiça social é bastante recente. Ela se torna mais conhecida a partir da posição dos papas da época moderna, sobretudo com Leão XIII, o papa que escreveu uma encíclica sobre a situação dos operários no final do século XIX (Rerum novarum). Em seguida outros papas foram atualizando a doutrina social da Igreja procurando encarar os grandes desafios do século XX e propondo uma reflexão a partir da Palavra de Deus. Em 1991 o papa João Paulo II escreveu uma encíclica para celebrar os cem anos da Rerum novarum (Centesimus Annus) mostrando ao mundo que a Igreja tem sim, algo a dizer sobre a situação da sociedade e, sobretudo, tomar posição em favor dos pobres. Os dois últimos papas Bento XVI e Francisco têm se pronunciado claramente sobre as situações de pobreza no mundo e a necessidade de uma conversão da sociedade invocando a necessidade de se criar leis que possam diminuir a desigualdade social.
A Igreja Católica não só reflete teoricamente sobre esses problemas de justiça social. Ela procura atuar através de organizações que levam algum conforto às pessoas vítimas de injustiça no mundo. Assim, as igrejas católicas locais criaram organizações como as Cáritas diocesanas que procuram incentivar, através de projetos concretos, a diminuição das injustiças que ocorrem nas diversas partes do planeta. No Brasil, a Igreja também procura atuar através de outros organismos como a Comissão de Justiça e Paz com sede em Brasília, junto à Conferência dos Bispos do Brasil, e outras Comissões como o Centro Nacional de Fé e Política Dom Hélder Câmara, a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário.
Outras ações concretas da Igreja Católica são as Campanhas da Fraternidade por ocasião da Quaresma. Cada ano toda a Igreja reflete a partir do método ver-julgar-agir sobre uma questão social de relevância para o nosso país. O objetivo das Campanhas é conscientizar o povo cristão sobre o tema em questão e depois de julgar a situação a partir da Palavra de Deus, indicar alguns gestos concretos para a ação transformadora da realidade. Outro movimento também importante para amenizar a situação dos pobres é feito pelos vicentinos. Esse movimento leigo, nascido no século XIX, se inspira no bispo São Vicente de Paulo, grande figura da Igreja francesa do século XVII, que se comprometeu em favor dos pobres.
Nas paróquias, grupos para ajudar os viciados no álcool, na droga etc. Muitas são as casas dirigidas por religiosos, padres ou leigos que recebem pessoas nessas condições confiando que são elas mesmas capazes de mudar de vida e se inserirem de um modo positivo na sociedade. Tudo isso são ações concretas em favor de maior justiça social na sociedade.
Mas, apesar de todos esses gestos concretos, o desafio maior que temos diz respeito às grandes mudanças que podem ser feitas no plano político, através da mudança de leis que venham diminuir a desigualdade social. É preciso que tenhamos políticos sensíveis a essa necessidade e que se empenhem de verdade em votar leis que favoreçam o povo trabalhador e possam ajudar a diminuir o grande abismo que separa o punhado de ricos das legiões de pobres que temos nas diversas partes do mundo, mas, sobretudo, em nosso próprio país.

Márcio A. Couto OP, dominicano, pároco da Igreja São Domingos, São Paulo, SP.

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