O francês Jacques Poulain lidera um grupo de intelectuais estrangeiros que alerta para os perigos de uma "candidatura fascista".
Por Editores Recos
Um grupo de intelectuais e acadêmicos de diversas partes do mundo acaba de lançar um manifesto para alertar o mundo e os eleitores brasileiros dos riscos da eleição de Jair Bolsonaro no domingo 28.
Encabeçado por Jaques Poulain, titular da cátedra da Unesco de Filosofia da cultura e das instituições, e co-assinado por acadêmicos da Europa, Ásia e Américas, o texto ressalta: “Parece-nos crucial alertar a sociedade brasileira sobre o perigo de uma candidatura de caráter fascista em contraposição à candidatura de Fernando Haddad, que reúne os valores fundamentais da democracia”.
O documento critica a partidarização do Judiciário no Brasil e condena o “golpe de Estado branco” contra Dilma Rousseff e a perseguição a políticos, em especial Lula, que ousam se contrapor aos ditames da ordem neoliberal.
“O Poder Judiciário e constitucional se desqualifica a ele mesmo ao tomar tais decisões, sem temer a exibição da sua arrogância”, prossegue o manifesto.
Aqui, a íntegra:
CARTA ABERTA AOS CIDADÃOS BRASILEIROS
Delate sua justiça?
por Jacques Poulain
Titular da Cátedra Unesco de Filosofia da Cultura e das Instituições
Universidade Paris 8
Em um mundo que se tornou neoliberal, em toda parte a injustiça entre as diversas classes da sociedade e entre os países ricos e pobres é de tal maneira gritante que o órgão de proteção aos cidadãos e de regulação da vida social, o Estado-nação, perdeu, na maior parte do tempo, sua credibilidade, delegando seus poderes a uma oligarquia de acionistas anônimos e de altos executivos super-remunerados. Não se contam mais as mil e uma maneiras através das quais a experimentação do uso deste monopólio lhes permitiu destruir cinicamente as instituições reguladoras da vida econômica, política, familiar e universitária, limitando-as por meio de uma utilização tanto cínica quanto corrompida das instituições judiciárias. Estas não hesitam em condenar os políticos que colocam em questão a hegemonia dos capitalistas no espaço mundial a fim de reforçar os governantes que se protegem dos julgamentos de corrupção que merecem, acusando antecipadamente aqueles que desobedecem o regime neoliberal de injustiça e condenando-os de maneira escandalosa, estigmatizando-os como corruptos. A condenação de Lula à inelegibilidade para as eleições presidenciais brasileiras pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é o exemplo mais patente.
A invalidade desta decisão foi reconhecida como tal e tornou-se manchete dos jornais internacionais. Não há dúvida de que uma nova forma radical de nivelar toda justiça por baixo foi descoberta nos Estados-nação: a capacidade de seus supremos órgãos judiciários e constitucionais de violentar a si mesmos se apresenta assim sem complexo aos olhos da opinião pública internacional como o refúgio ideal do novo submundo mafioso internacional, como um refúgio inatacável, envolto que está na imunidade com a qual é adornado. A injustiça da condenação de Lula foi declarada e corretamente condenada como ilegal nas recomendações da Comissão de Direitos Humanos da ONU, lembrando que a elegibilidade para a eleição presidencial lhe devia ser concedida até que ele tivesse esgotado todos os seus recursos. A fragilidade da desobediência do tribunal eleitoral brasileiro é evidente para todos, no sentido de que viola deliberadamente os regulamentos de seu próprio sistema judicial quando se presume ser seu único fiador. Sua desobediência a todas as normas internacionalmente reconhecidas aparece sem remorso em seu cinismo e sua eficiência mais temíveis. Ela é, no entanto, injustificável aos olhos de todos na medida em que ela viola a lei que ela mesma esbanjou, no lugar certo, para proteger as liberdades individuais e coletivas. O TSE desobedece a si mesmo sem necessidade legal e deliberadamente mina sua própria autoridade à vista de todos.
Este tipo de desobediência cínica aos princípios cujo respeito é exibido por todas as democracias corrobora, pelo desprezo à palavra dos eleitores, a rejeição de um diálogo econômico-político entre os cidadãos, necessário à medida em que a prática neoliberal se desenvolve. É a cidadania dos parceiros sociais explorados pela economia neoliberal que paga os custos, pois ela se vê pura e simplesmente não reconhecida, até mesmo suprimida na mesma medida em que desaparece progressivamente sua capacidade de utilizar seus direitos civis e cívicos.
Quando esta negação da fala se estende aos únicos políticos que, como Lula, são capazes de restaurar um diálogo de justiça entre as diferentes classes sociais, negando a ele o direito à elegibilidade presidencial, ela atinge seu ápice. Esta deterioração do uso do poder judiciário das mais altas instâncias de um Estado-nação reflete, então, uma crise profunda da justiça exercida em um Estado-nação, uma vez que o poder judiciário e constitucional se desqualifica a ele mesmo ao tomar tais decisões, sem temer a exibição de sua arrogância, pois ele generaliza, sem vergonha, a identificação dos cidadãos a criminosos e, por este meio, ele se contenta em propagar, como descreveu Michel Misse, uma exterminação radical e bárbara dos seres humanos. O caráter das mais recentes desobediências feministas parece dar-lhes toda a racionalidade e razoabilidade desejáveis, sobretudo se nós as compararmos com a renúncia dos sistemas jurídicos que servem de suporte ao neoliberalismo e que impõem um autismo coletivo e injustificável para todos os que podem regular seus destinos econômico-políticos por meio de acordos de cavalheiros (gentlemen’s agreements). Para efeito de comparação, as desobediências das feministas que se difundiram este ano com os slogans “delate seu porco” (“balance ton porc”) se levantaram com violência contra todos os regulamentos que privilegiaram o poder machista dos homens contra as mulheres e permanecem criativas e justificadas, uma vez que elas restauram um verdadeiro diálogo público entre os cidadãos e as cidadãs envolvidos em casos de estupros. Não há dúvida de que elas restauraram assim um princípio de respeito de igualdade democrática dos cidadãos ligado à própria condição humana.
Elas atestam que a desobediência das mulheres em relação às condições jurídicas ligadas à pura vontade masculina de refrear toda agressividade e reduzi-las ao silêncio é necessária para poder restabelecer em suas relações com os homens uma igualdade e uma reciprocidade democrática real no uso do que faz delas seres humanos integralmente: suas faculdades de partilhar seus julgamentos de verdade sobre suas próprias condições de vida Elas testemunham vividamente que somente é fundamentada toda desobediência que consegue instaurar ou restabelecer um diálogo democrático entre todos os cidadãos.
Os cossignatários da presente carta estão integralmente conscientes da ilegitimidade do “golpe de Estado branco” que destituiu sua presidente legitimamente eleita, Dilma Rousseff, conscientes da ilegalidade da condenação de Lula na inelegibilidade eleitoral. É fundamental para o Brasil que se permaneça com as administrações progressistas caso o país deseje continuar a consolidar as conquistas de justiça social que as presidências de Lula e Dilma Rousseff permitiram aos brasileiros, pouco a pouco, desfrutar.
Também sabemos que o Brasil ainda tem todas as potencialidades para voltar a um regime de mais justiça social e que se o país é capaz de se recuperar do tufão neoliberal que o atingiu desde o impeachment de Dilma Rousseff, ele será o primeiro a colaborar com os países vizinhos da América Latina que vivem atualmente em um estado de turbulência tão pesado quanto o do Brasil hoje.
Hoje, às vésperas do segundo turno das eleições, parece-nos crucial alertar a sociedade brasileira sobre o perigo de uma candidatura de caráter fascista em contraposição à candidatura de Fernando Haddad que reúne os valores fundamentais da Democracia.
Signatários:
Jacques POULAIN - titular da Cátedra Unesco de Filosofia da Cultura e das Instituições na Universidade Paris 8, Membro da Academia Europeia das Ciências e das Artes - França
Fathi TRIKI - Titulaire de la chaire Unesco du vivre ensemble, Université de Tunis, Tunis, Tunisie
In-Suk CHA - Professor emeritus Seoul National University, South Corea, Unesco/Chair in Philosophy
Ioanna KUCURADI - Professeur émérite à l’Université Maltepe, Istanbul, Turquie/Chaire Unesco de Philosophie
Josiane BOULAD-AYOUB - Professeur émérite de philosophie, Université du Québec à Montréal, Canada/ Chaire Unesco de Philosophie
Christoph WULF - Professeur à la Freie Universität Berlin, Berlin, Allemagne/Vice-président de la Commission nationale Allemande auprès de l’Unesco
Hans-Jörg SANDKÜHLER - Professeur émérite de philosophie/Département de philosophie de l’Université de Brême, Allemagne
Bruno CANY - Professor de Filosofia na Universidade Paris 8/ Diretor do Cahiers critiques de philosophie, França
Serguei PANOV - Professor da National University of Technologies – MISIS,Rússia
Paolo Maria FABBRI - Diretor do Centro Internazionale Scienzia Semiotiche (CiSS) na Universidade de Urbino, Itália
Sebastian AGUDELO - Professor – Reitoria de Créteil e Universidade Paris 8, França
Rachida TRIKI - Membro do Conseil Scientifique du Collège International de Philosphie, França
Benito MAESO - Professor Doutor do Instituto Federal do Paraná/Brasil
Hans KRETZ - Professor da Stanford University, Estados Unidos da América
Vivianne de Castilho Moreira - Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná, Brasil
Isabelle LABORDE-MILAA - Professora de Linguística da Universidade Paris Est Créteil, França
Philippe TANCELIN - Professeur émérite d’esthétique, Université Paris 8
Evandro Vieira OURIQUES - Professeur de sciences de la communication/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Juan Carlos Quintero CALVACHE - Professeur à l’Universidade Santiago de Cali, Colombie
William GONZALEZ - Directeur du département de philosophie à l’Universidade del Valle, Cali, Colombie
Walter MENON - Professeur de philosophie à l’université fédérale de Parana, Brésil
Patrice VERMEREN - Professeur émérite de philosophie à l’Université de Paris 8 et professeur à l’Université nationale de Buenos Aires