Entrevista com Eric Coquerel, deputado francês e dirigente do Parti de Gauche.
Por Gabriel Brito*
O liberal Emanuel Macron tem poucos meses de presidência na França, mas já deixou claras suas inclinações por novas rodadas de ajustes fiscais e reformas que penalizam o mundo do trabalho. Greves e manifestações de massa ocorreram em resposta ao movimento do ex-banqueiro que bateu a extrema-direita racista e xenófoba liderada por Marine Le Pen no segundo turno. Em terceiro lugar nas preferências, ficou a coalizão identificada à esquerda denominada França Insubmissa. Falamos com o deputado francês Eric Coquerel, dirigente do Parti de Gauche, que fez parte da coalizão, e descreveu o atual cenário político do país.
“A France Insoumise tornou-se um movimento perene após as eleições. Tem mais de 500.000 membros. Não é um partido. Pelo seu caráter de massa, em primeiro lugar: ao emancipar as estruturas mais rígidas e formas de militância tradicional de um partido, ele pretende reunir centenas de milhares, e até milhões de membros. Dá os mesmos direitos aos membros que se comportam como militantes "clássicos" e aqueles que, por exemplo, se contentam em participar de algumas ações por ano ou até mesmo se contentam em intervir nas redes sociais”, contextualizou, ao descrever mais essa tentativa de reinvenção da participação política em tempos de desencanto popular.
Sobre o mandatário, Coquerel descreve reformas não muito distintas das que se tentam emplacar num Brasil cujo governo atinge o subsolo da desaprovação popular. Além disso, critica sua atuação no plano internacional, a reproduzir outros governos de postura imperialista e belicista.
“Emmanuel Macron está quebrando o Estado social. Ele começou quebrando as leis sociais, atacando o código do trabalho (leis Penicaud), impôs o orçamento mais austero e desigual da Quinta República e nesta primavera ataca tanto o serviço público ferroviário para abri-lo à concorrência quanto o acesso às universidades, estabelecendo um processo de seleção para os beneficiários do “baccalauréat” (o equivalente ao ENEM). No ano que vem, ele quer continuar atacando a previdência social. É um tsunami neoliberal: Thatcher e Blair encarnados na mesma pessoa”, criticou.
Assunto sempre em evidência no país, a imigração também foi abordada na conversa com Coquerel, que ressalta as responsabilidades históricas do país na absorção e socialização de fluxos migrantes causados por guerras e miséria, ante um movimento crescente de obstrução a pessoas vítimas de tais condições.
“A nova lei de asilo e imigração, que endurece as condições de recepção, não resolve nada, exceto direcionar dezenas de milhares de pessoas para a marginalidade. A França não poderá expulsar mais de 40.000 pessoas por ano por questões materiais, financeiras e até legais. Por isso é melhor admitir que, durante alguns anos, a França terá de acolher algumas dezenas de milhares de migrantes e ‘planejar’ essa instalação, inclusive a serviço do planejamento do território”, analisou.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como surgiu o movimento França Insubmissa e como foi seu processo de ascensão política e eleitoral?
Eric Coquerel: Para o meu partido, o (Parti de Gauche) Partido de Esquerda, o objetivo sempre foi o mesmo desde a sua criação: como criar uma força política capaz de contestar a superioridade do Partido Socialista (PS) à esquerda? Uma força com o intuito de conquistar a maioria nas eleições para uma revolução cidadã, uma transformação radical através das urnas. É por isso que lançamos a Frente de Esquerda (FDG) no final de 2008 com o Partido Comunista Francês (PCF) seguindo o modelo alemão do Die Linke, que era então a principal força de esquerda crítica na Europa.
O FDG representou a vontade de reunir em uma frente, o que chamamos de “outra esquerda”, na esperança de evoluir para uma única força política. Mas falhamos. Permaneceu como um simples cartel que se dividiu sobre questões estratégicas críticas, incluindo alianças com o PS, e perdeu sua credibilidade. Então, em julho de 2015, no nosso penúltimo congresso, aprovamos a ideia de trabalhar para um movimento cidadão baseado na adesão direta às suas estruturas básicas e focado na ação. Assim nasceu France Insoumise (FI).
A France Insoumise é, em primeiro lugar, uma ferramenta para campanha presidencial. Baseia-se inicialmente numa plataforma online que faz de você um "membro" quando assina seu apoio com um candidato, no nosso caso Jean-Luc Mélenchon, e o programa político que chamamos de "o futuro em comum". A plataforma também permite consultas online, debates, a criação de grupos de ação local etc.
France Insoumise tornou-se um movimento perene após as eleições. Tem mais de 500.000 membros. Não é um partido. Pelo seu caráter de massa, em primeiro lugar: ao emancipar as estruturas mais rígidas e formas de militância tradicional de um partido, ele pretende reunir centenas de milhares, e até milhões de membros. Dá os mesmos direitos aos membros que se comportam como militantes "clássicos" e aqueles que, por exemplo, se contentam em participar de algumas ações por ano ou até mesmo se contentam em intervir nas redes sociais.
Permite um maior envolvimento dos cidadãos e representa, de forma condensada certamente, o nosso anseio de federar as pessoas. A FI é uma novidade que pretende construir-se avançando. Organizou-se em convenções e agora tem uma assembleia representativa que se reúne várias vezes por ano.
Correio da Cidadania: Como avaliam os resultados das eleições francesas, que terminaram com vitória de Emannuel Macron?
Eric Coquerel: Esta eleição confirmou que estamos passando por um período de turbulência. O cenário final não correspondia a nada que se imaginou seis meses antes. Cada um à sua maneira, os quatro principais candidatos do primeiro turno incorporaram uma postura de ruptura com o sistema em vigor. Isso pode ter ocorrido às vezes apenas em seu próprio campo politico, como podemos ver com François Fillon, o candidato eleito pela prévia da direita, que criou a surpresa ao eliminar o favorito Alain Juppé.
Por sua vez, enquanto ele era um dos principais ministros do governo de François Hollande, Emmanuel Macron habilmente conseguiu distanciar-se do balanço que impediu o presidente cessante de se recandidatar. Ele ainda copiou em grande parte os códigos de La France Insoumise: "contra os velhos aparelhos", "contra o velho mundo", usando o mesmo tipo de plataforma online para organizar seus apoiadores. À sua maneira, no campo liberal, eles ajudaram a jogar fora as antigas estruturas do liberalismo: o Partido dos Republicanos e o PS.
A outra característica é obviamente o excelente resultado de Jean-Luc Mélenchon: 600.000 votos a mais e nosso candidato estaria no segundo turno. Teria dado muita mais dor de cabeça para Emmanuel Macron de que Marine Le Pen, porque o segundo turno teria sido o verdadeiro duelo entre dois projetos políticos antagônicos. Afinal, sabemos que foi a candidata escolhida pelo sistema para representar o antissistema (Marine Le Pen) que chegou ao segundo turno para enfrentar o candidato do sistema. Assim, Macron tinha certeza da vitória.
Desde então, Emmanuel Macron esqueceu, ou fingiu esquecer, que só foi eleito para vencer a extrema-direita e não para aplicar seu programa. Hoje, ele se considera legitimado por 65% dos franceses, o que é uma verdadeira farsa.
Correio da Cidadania: Quais as reformas pretendidas pelo presidente que desencadearam greves e manifestações?
Eric Coquerel: Emmanuel Macron está quebrando o Estado social. Ele começou quebrando as leis sociais, atacando o código do trabalho (leis Penicaud), impôs o orçamento mais austero e desigual da Quinta República e nesta primavera ataca tanto o serviço público ferroviário para abri-lo à concorrência quanto o acesso às universidades, estabelecendo um processo de seleção para os beneficiários do “baccalauréat” (o equivalente ao ENEM). No ano que vem, ele quer continuar atacando a previdência social. É um tsunami neoliberal: Thatcher e Blair encarnados na mesma pessoa.
Correio da Cidadania: Como está a questão migratória na França, país que historicamente recebeu enormes fluxos de populações de países da periferia do capitalismo e teve nesta pauta um foco de grandes debates, inclusive nas eleições?
Eric Coquerel: Não, a França não recebeu um "enorme" fluxo de migrantes. No momento, pode-se estimar que 80.000 imigrantes entram na França a cada ano, metade dos quais recebe asilo. É pouco comparado com o que muitos vizinhos fizeram. Porém, querendo ou não, a França é um país de migrações, o que lhe trouxe muitas riquezas. O número de trabalhadores ilegais mostra que nossa economia precisa de migração econômica em determinados setores. Só que sem papéis eles podem ser facilmente explorados e tornam-se mão de obra a baixo custo nesses setores.
Além disso, a nova lei de asilo e imigração, que endurece as condições de recepção, não resolve nada, exceto direcionar dezenas de milhares de pessoas para a marginalidade. A França não poderá expulsar mais de 40.000 pessoas por ano por questões materiais, financeiras e até legais. Por isso é melhor admitir que, durante alguns anos, a França terá de acolher algumas dezenas de milhares de migrantes e "planejar" essa instalação, inclusive a serviço do planejamento do território.
Para este fim, propusemos a criação de um estatuto do refugiado em situação de sofrimento humanitário por razões climáticas ou econômicas. No entanto, se as causas que causam essas partidas forçadas não forem resolvidas a médio prazo a situação se tornará difícil de gerenciar. A França e os países industrializados têm suas responsabilidades nessas causas: guerra imperialista, enfraquecimento de poderes estatais no Oriente Próximo e Médio, aquecimento global, acordos de livre comércio impostos às já frágeis economias da África. Costumo dizer que, até que tenhamos resolvido as causas, devemos suportar nossa parte das consequências com as migrações.
Correio da Cidadania: Pra citar alguns exemplos, recentemente vimos eleições na Itália e na Áustria penderem para o lado dos conservadores, enquanto Portugal consegue apresentar saídas da crise com políticas um pouco diferentes do memorando austeritário. Como vocês resumem os atuais ventos políticos da Europa Ocidental? Como se refletem no ânimo das pessoas?
Eric Coquerel: A política austera e ordoliberal (a noção de que o Estado deve corrigir as falhas do mercado, mas não impedi-lo de atuar livremente) imposta pela classe dominante alemã com a boa vontade dos governos franceses é uma catástrofe para todos os povos europeus, começando com os do sul. A terrível concorrência imposta com pano de fundo de dumping generalizado (sem harmonização fiscal em um espaço totalmente aberto ao livre comércio) é cada vez mais rejeitada.
O povo está se rebelando e a onda do “fora todos” se fortalece, porque sua soberania está sendo desrespeitada. Há, portanto, uma corrida: quem representará essa aspiração popular? Uma força de extrema-direita como na Itália, uma força progressista como a FI na França ou Podemos na Espanha? É uma sorte que na França a FI tenha nascido, porque permite que a Frente Nacional de Marine Le Pen não represente a oposição popular a Macron.
Em nível europeu, fundamos um movimento unitário chamado "Agora o Povo", com o Podemos e o Bloco Português. Outras forças devem juntar-se a nós nas eleições europeias do próximo ano.
Correio da Cidadania: O que podem dizer aos leitores brasileiros sobre a atuação geopolítica francesa, em especial na guerra da Síria?
Eric Coquerel: No início de mandato, Emmanuel Macron parecia assumir uma ruptura positiva em relação aos seus dois predecessores. Em meados de 2017, ele explicou assim que os bombardeios unilaterais não eram adequados. Ele propôs uma conferência para a paz reunindo todos os protagonistas do conflito em curso sem fazer da saída de Bachard al-Assad uma condição.
Menos de um ano depois, a decepção é grande. Macron embarcou atrás dos Estados Unidos com intervenção militar na Síria fora das resoluções da ONU. É moderado demais com a condenação das intrusões da Turquia na Síria para lutar, em Afrin, contra nossos melhores aliados, os curdos do Rojava e, finalmente, reage pouco aos massacres de civis palestinos em Israel e à decisão totalmente irresponsável de Trump de tornar Jerusalém a capital do Estado de Israel.
Para nós, a França deve deixar a OTAN e se tornar um país independente a serviço da paz.
Correio da Cidadania: O que enxergam a respeito do Brasil neste momento?
Eric Coquerel: O Brasil está passando por um golpe jurídico-midiático-parlamentar para impedir a eleição de Lula. Isso faz parte da ofensiva neoliberal na América Latina para tentar apagar da historia todos os legados da “Revolução Cidadã”.
Isto está obviamente em conexão com a política muito agressiva de Trump como visto no bloqueio cubano reafirmado após uma fase de abertura dos anos Obama. Na França continuamos mobilizados em apoio à luta dos movimentos brasileiros, apoiando a luta do comitê internacional de solidariedade à Lula e à democracia brasileira.