É pela vida das mulheres: Marielle Franco, Ahed Tamimi e todas nós

Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego... (Construção - Chico Buarque)

Por Francirosy Campos Barbosa

Quem dorme no Brasil? Quem pode dormir diante da morte de mais uma mulher? Quem pode dormir diante da morte de uma mulher negra, favelada, mãe? Marielle Franco, vereadora do PSOL do Rio de Janeiro foi executada diante dos nossos olhos. Não temos palavra para descrever tal sentimento que dilacera quem faz política neste país, quem luta por justiça social. Que país é este?! A resposta todos nós sabemos. Quem pode continuar dormindo diante da prisão de Ahed Tamimi, palestina, 16 anos, sem direito à defesa? Quem pode dormir vendo professoras do Estado apanhando da polícia em São Paulo? São histórias diferentes? Não! São histórias de mulheres que morrem e estão morrendo e nós continuamos silenciando suas vozes, suas lutas, suas histórias. Essas mulheres ousaram atrapalhar o trânsito com seus discursos, com seus tapas na cara, com as suas verdades. É por justiça social, é por plano de carreira na Educação, é por direito a terra, é por respeito que lutam, lutavam essas mulheres.

mariellefrnaco3No Brasil, como na Palestina não podemos mais silenciar a violência, a violência que não tem fronteira, porteira, não tem compaixão... Na semana passada respondi aqueles que me cumprimentaram sobre o dia da Mulher: Não tenho o que comemorar no dia que mulheres morreram queimadas! Talvez algumas pessoas achem que 8 de Março é dia de enviar flores. Não é! É dia de luta! Meu sentimento é sempre de agonia quando chega esta data, pois agonizamos diariamente, agonizou no meio do passeio náufrago... e as pessoas acham que a data é festiva. Morrem 13 mulheres diariamente no Brasil por violência doméstica. O que temos para comemorar? A implantação da Lei Maria da Penha? Precisamos de uma Lei para sermos respeitadas, para garantirmos nossa integridade física? Precisamos! Precisamos de leis para nos garantir a vida.

Morreu na contramão atrapalhando o público – morremos todas

Há tempos que atrapalhamos o andar da sociedade com a nossa capacidade de administrar jornada dupla, há tempos que atrapalhamos a vida do patriarcado que estão presentes em templos religiosos, na política, nas ruas, nas casas, eles estão em todos os lugares e nós também estamos e resolvemos não silenciar. Esses são os passos da nossa construção, não tem volta, não tem argamassa que nos faça voltar o caminho. É pela vida das mulheres que ousamos, é por nossas filhas, netas, nossas gerações e gerações de mulheres, negras, pardas, brancas, indígenas é por mulheres como Marielle, Ahed que:

Subiu (subiram) a construção como se fosse sólido

Ergueu (ergueram) no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Hoje nossa lágrima parou na garganta, a morte de Marielle abre nossas feridas, expõe nossos corpos marcados pela dor. Ela que fez uma denúncia importante no final de semana teve sua vida ceifada de forma violenta na noite passada: estão matando jovens negros na favela!!! Marielle foi silenciada! Silenciada está Ahed presa pelo Estado de Israel segue encarcerada e não ouço uma palavra de países democráticos, não ouço panelas nas varandas de Ipanema, Leblon, Barra por Marielle, não sinto a indignação das pessoas que passam, é mais um corpo estendido no chão. Se a luta Palestina não existe para este mundo globalizado, como pedir que a sociedade olhe para Ahed Tamimi? Essas mulheres não existem, infelizmente a dor é seletiva até, entre nós, mulheres feministas. Não há visibilidade para a vida de uma mulher palestina. Ela grita só diante do soldado que a silencia. São mulheres que morrem diariamente atravessando o mediterrâneo, são mulheres que trocam sexo por comida na Síria. Vamos precisar de muito feminismo decolonial para entendermos as nossas exclusões, por que a vida de uma negra, de uma palestina vale menos que uma jovem francesa? Por que não paralisamos diante da notícia de que mulheres estão sendo violentadas na Síria, da mesma forma que ocorreu no Iraque na invasão dos EUA em 2003? E em 2003 também só ouvi o silêncio.

Esta semana o mundo acadêmico ficou mais pobre, perdemos a antropóloga Saba Mahmood, ela que de forma tão apropriada sabia falar do desejo de liberdade das mulheres:

O desejo de liberdade e libertação está historicamente situado

desejo cuja força motivacional não pode ser assumida a priori,

mas precisa ser reconsiderado à luz de outros desejos,

aspirações e capacidades que ingerem de forma cultural e

tema localizado historicamente (Mahmood, 2001: 223).

marielefranco4Desejo de liberdade e libertação é o que desejam as mulheres, sejam essas religiosas, ou não, brancas ou não. As agendas e agências femininas são diferentes no tempo e no espaço. É preciso dar ouvido as demandas. A mulher deve ser livre para fazer a sua escolha, mesmo que suas escolhas sejam diferentes do status quo, mesmo que suas escolhas não coadunem com a minha demanda de mulher branca, heterossexual, docente universitária. Em um país democrático a liberdade de expressão e critica devem existir. Não aceitamos esta execução, não aceitamos o silenciamento de nossas vozes, nossos corpos, nossos direitos.

A luta das mulheres não é contra homens, é contra a violência do patriarcado e do poder que engendra violência. Homens e mulheres são partes da mesma sociedade é preciso equilibrar esta balança. Não há sociedade justa, quando mulheres são relegadas em suas capacidades intelectuais, físicas. É na diferença que nos completamos e só assim podemos agir em conjunto.

É preciso também alertar ao feminismo que está posto, com as palavras de Mahmood: “se o feminismo quer ser um movimento vibrante e com uma tradição mais larga, deveria “expandir seus horizontes para a consideração de projetos, aspirações e desejos que não reproduzem seus pressupostos, mas que os desafiam”. O feminismo decolonial amplia nossas escutas, é preciso ouvir as mulheres que estão fora da esfera do “poder” – as indígenas, as negras, as mulheres de países “periféricos”, toda e qualquer mulher em situação subalterna.

Sigamos por todas, sigamos unidas, unidos, porque a nossa luta não é exclusiva de mulheres, a luta é de mulheres e homens que desejam viver em um país que a nossa morte não atrapalhe o trânsito... Por ontem podemos dizer que morremos na contramão atrapalhando a quarta, mas não vamos silenciar a morte de Marielle e não vamos silenciar as atrocidades contra Ahed, vamos atrapalhar a sua quinta, sexta, sábado..., mas vamos continuar.

Francirosy Campos Brabosa é antropóloga, docente do Departamento de Psicologia da USP/FFCLRP, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, autora do livro: Performances Islâmicas em São Paulo: arabescos, luas e tâmaras. São Paulo: Editora Terceira Via, 2017.

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