Feliz nascimento a todas e todos, feliz renascimento todos os dias.
Por Selvino Heck*
Nasceu um menino na margem, na periferia da história, fora do centro de decisões, longe do poder. Na perifa, em todos os sentidos. As ruas, estreitas e esburacadas, não tinham asfalto. A água da chuva corria solta pelos becos e vielas. O céu estava povoado de estrelas que olhavam o chão do casebre pelos buracos no teto. O colchão que lhe servia de abrigo foi dado por uma vizinha condoída com sua pobreza e com o vento frio que entrava pelas frestas. Um velho cachorro, surgido não se sabe de onde, servia de companhia.
O menino era invisível ante os olhos do mundo. Ninguém sabia de sua existência ou talvez nem quisesse saber. Nem mídia, nem elites, nem ninguém. Chegaram umas pessoas para ver o recém nascido. Uns mais de perto, catadores e catadoras de material reciclável, gente que dormia nas ruas, pedreiros, domésticas, serventes de obra que moravam na volta. Outros, mais de longe, que souberam do acontecido não se sabe como, talvez pelas estrelas: pais de santo, diaconisas, padres, ialorixás, pastores, babalorixás. O menino não chorou, bem nutrido pelo leite quente de mamãe e pelo olhar embevecido de papai.
Os tempos não andavam fáceis. Ninguém quis oferecer-lhes guarida, nem hospitais, nem pousadas, muito menos hotéis. Acharam aquele barraco vazio e o ocuparam por necessidade.
Mas a solidariedade supera tudo. A perifa não deixou de acolher quem agora era seu: bolos, leitinho, água, um chima gostoso, de tudo que sobrava do pouco que cada um tinha. A periferia passou a ser onde andava o tempo todo: vilas, os bairros dos pobres, becos, vielas, travessas, atalhos. Quem o acompanhava era a doméstica que levantava todos os dias de madrugada para ir fazer faxina na mansão.
Era o pedreiro que juntava os tijolos, um por um, no condomínio de luxo, o entregador de leite da madrugada, a enfermeira que cuidava dos desvalidos e entregues à própria sorte. Aquelas que iam para as ruas à noite em busca da sobrevivência e da comida. Era o engraxate da praça central da cidade. Eram os pobres coitados, na visão de quem mandava e desmandava, os que só serviam na hora da precisão.
Era preciso trabalhar. Papai lidava com madeiras. O menino aprendeu a fazer portas, janelas, mesas, cadeiras de balanço, bancos de sentar e armários.
O menino crescia e um dia foi numa igreja importante do centro. Resolveu falar e todos se admiravam da sua sabedoria. Outro dia, mais crescido, voltou à mesma igreja e falou da hipocrisia dos seus donos, dos que vendiam a fé como se fosse remédio para ganhar dinheiro, dos que pregavam os mandamentos de Deus e faziam o contrário. Os chefes da igreja não gostaram nem um pouco do seu atrevimento.
Foi fazer jejum de muitos dias bem longe, para se preparar para o que viria. Sabia que as verdades que iria dizer iriam perturbar muita gente, especialmente os poderosos do tempo, os que mandavam nos templos, os que mandavam nos palácios, os que comercializavam sua fé, os que iludiam o povo simples, os que se diziam donos e interpretadores únicos das leis e diziam possuir toda a verdade.
Cada dia que passava gostavam menos dele. Diziam que era profeta que enganava o povo, porque falava de todos e todas como irmãs e irmãos, até os que eram rejeitados e deixados à margem. Falava de um futuro que era para começar já, agora, falava de sonhos, de um Reino onde todos tinham lugar, vez e voz, especialmente os perseguidos, os que lutavam por justiça, os que davam de comer a quem tinha fome, de beber a quem tinha sede.
Falava de utopias, de um outro mundo possível. Multidões começaram a segui-lo, a ouvir suas palavras, a distribuir o pouco que tinham quando faltava pão nas festas das comunidades ou nas Romarias, a acreditar no que dizia.
A solidariedade da perifa nunca o abandonou. A solidariedade que aprendeu na perifa, a sopa que acolhia os fracos, os pobres e os mendigos estava sempre ali disponível, era repartida e se reproduzia como se fosse um milagre diário. E gente que não acreditava em mais nada curou o corpo e a alma, conseguiu enxergar no vizinho alguém que podia caminhar junto e unidos buscar vida melhor no trabalho e no emprego. A perifa que o acolheu na hora do nascimento acolheu-o na mensagem de paz, na vida de comunidade, na semeadura de fé e de bondade.
O menino, agora homem, juntou mais uns da perifa, que meio desconfiavam dele de vez em quando, mas viam seu olhar bondoso e não puderam recusar seu convite. Criaram com ele um Núcleo que o seguia, que andava de vila em vila, de beco em beco, de casa em casa, de reunião em reunião, de Romaria em Romaria. Falavam que era preciso querer bem uns aos outros, amar a todas e todos, até dos que não gostavam deles, e ver se eles se convertiam. Cada dia acreditavam mais em suas palavras. Tornaram-se um Núcleo forte, de companheiras e companheiros, passaram a distribuir seus bens e tudo que tinham, a tornar vivida sua mensagem. Mas eram poucos os ricos que abriam o coração. As multidões que os seguiam eram mesmo da perifa.
Pregavam em todos os lugares. Não precisavam de regras pré-estabelecidas ou de suntuosos templos. Era bom tomar um bom vinho na casa de quem os convidava, ou uma ceva nos casamentos, uma caipa nas festas de aniversário, um chima cotidiano. A perifa sempre tinha um cantinho sobrando, um lugar a mais no coração. Ou a vaquinha ajudava, para arrecadar o necessário para as comidas e bebidas dos dias de festa e alegria. E tudo se multiplicava.
O Reino que pregava, a pátria nova, fraterna e justa, o outro mundo possível era deste mundo, mas ia além desse mundo, chegava até a eternidade, era para sempre.
Mas chegou uma hora em que ‘fechou’ o tempo. Não o suportavam mais. Diziam que era revolucionário demais, subversivo mesmo, que unia a perifa por mais vida, mais direitos, e isso não podia continuar. Os da perifa não frequentavam mais as igrejas deles, não queriam mais pagar os impostos que nunca voltavam em seu benefício, não aceitavam mais suas ordens, não mais obedeciam. O menino agora homem feito reuniu o Núcleo e avisou: perseguem a mim, querem me matar e vão perseguir vocês também. Foi julgado, condenado. Alguns do Núcleo tiveram medo. Aos poucos, foram voltando, assumindo o sonho do Reino de justiça e fraternidade. Viram que ali estava a verdade, o futuro, a esperança.
A perifa venceu, fez história.
Feliz nascimento a todas e todos, feliz renascimento todos os dias.