É o agronegócio que está promovendo esse hidrocídio e a guerra pela água no campo.
Por Roberto Malvezzi (Gogó)*
Aproximadamente mil pessoas entraram nas fazendas Igarashi e Curitiba em Correntina, Bahia, quebraram os pivôs centrais de irrigação das empresas e derrubaram as instalações elétricas.
Bastou para que a mídia falasse em vândalos, invasores, e a senadora Ana Amélia chegou a falar em exército de Lula no Senado, referindo-se ao MST. Quanta estupidez na boca de uma só senadora!
O MST não estava lá e nem precisava, porque a reação foi das comunidades ribeirinhas, mães e pais de família. É bom a senadora saber que a Bahia é governada por um petista e o INEMA, organismo que concede as outorgas de água no Oeste Baiano, tem grande responsabilidade nessa monstruosa outorga do Arrojado para as empresas beneficiadas.
Há décadas participo da reflexão sobre a água no mundo. Na Campanha da Fraternidade de 2004 já levantávamos a questão do novo discurso da água, de sua privatização, mercantilização, da oligarquia internacional da água, mas também da necessidade de defender a água como direito fundamental da pessoa humana e de todos os seres vivos, além de defendermos que a água, muito além do que querem os hidrólogos, tem múltiplos valores além dos múltiplos usos. Chamamos todos os negócios da água de hidronegócio.
Um dos principais prognósticos levantadas mundialmente é a questão da “guerra pela água”, já que a redução de um bem imprescindível à vida a uma mercadoria qualquer só pode transformar-se em guerra, como aconteceu em Cochabamba, na Bolívia.
Esses dias lancei o artigo “Hidrocídio Brasileiro”, falando da matança de nossos mananciais, principalmente nossos rios, citando a decadência visível do Tocantins, Araguaia, Javaés, Araguari no Amapá, além do São Francisco e seus afluentes. É bom lembrar que o assassinato de uma grande bacia sempre começa por seus afluentes. Assim é a morte do São Francisco, que depende de rios como o Arrojado, esse saqueado pelas empresas, a tal ponto que as comunidades ribeirinhas ficaram sem água. A ocupação foi uma reação ao processo predador das empresas.
Quem está destruindo as florestas brasileiras - sobretudo a Amazônia que produz os rios voadores e o Cerrado que armazena as águas desses rios aéreos - é o agronegócio da senadora Ana Amélia, apoiado por mais uns 50 senadores e mais de 200 deputados. Todos reforçados pelos meios de comunicação, sobretudo a Globo. É o agronegócio que está promovendo esse hidrocídio e a guerra pela água no campo.
Vale repetir que a água é bem vital e seu maior valor é o biológico, isto é, só há vida onde tem água. Deputados e senadores podem fazer muitas leis, mas não conseguem mudar as leis básicas da vida.
Ou mudamos nossa política hidrocida, ou a água vai pôr fogo no campo brasileiro.
Quem tiver interesse em assinar a nota em apoio às populações atingidas, contactar
comunicacao@cptba.org.br
7133284672 ou 7133295750
*Roberto Malvezzi (Gogó) é agente da Comissão Pastoral da Terra, Juazeiro, BA.
NOTA DAS ENTIDADES DA REGIÃO: Cansado do descaso das autoridades, o povo de Correntina reage em defesa das águas
A mídia está oticiando que na manhã de quinta-feira, 02/11/2017, feriado de Finados, houve manifestação de populares nas Fazendas Igarashi e Curitiba, no distrito de Rosário, município de Correntina. Segundo imagens e áudios que circulam pela Internet, estas fazendas teriam sido invadidas e parte de suas máquinas, instalações e pivôs quebrados e incendiados, e que os autores destas ações são populares de Correntina. Segundo os relatos participaram da ação entre 500 a 1.000 pessoas.
O Oeste da Bahia tem se destacado como produtor de grãos para exportação, referência para o agronegócio nacional, cada vez mais de interesse internacional. Está inserido no MATOPIBA – projeto governamental de incentivo a esta produção nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – atual fronteira agrícola brasileira, onde estão localizados os últimos remanescentes de Cerrado no Brasil. É nesta região onde se encontram os rios Carinhanha, Corrente e Grande, suas nascentes, subafluentes e afluentes, principais contribuintes com as águas do rio São Francisco na Bahia, responsáveis por até 90% de suas águas no período seco. São estas águas que abastecem milhares de comunidades rurais e centenas de municípios baianos e dos outros estados do Submédio e Baixo São Francisco.
Os conflitos causados pela invasão da agropecuária, desde os anos 1970, no que eram os territórios tradicionais das comunidades que habitam o Cerrado, têm sido pauta de uma intensa discussão, e de dezenas de audiências públicas. A gravidade destes conflitos é de conhecimento regional, estadual, nacional e até internacional. Contudo, ao longo de décadas o agronegócio nunca assumiu a responsabilidade por sua nefasta atuação, alicerçada num tripé que tem como eixos centrais: a invasão de terras públicas por meio da grilagem e da pistolagem; o uso de dinheiro público para implantação de megaestruturas e de monoculturas de grãos e pecuária bovina; o uso irresponsável dos bens naturais, bens comuns, com impactos irreversíveis sobre o ambiente, em especial, sobre a água e a biodiversidade, além de imensuráveis impactos sociais.
A ação do povo de Correntina não é de agora. Assistindo à sequência de morte de suas águas essenciais, diante do silêncio das autoridades, ações do tipo e outras vêm sendo feitas há mais tempo. Em 2000, populares entupiram um canal que pretendia desviar as águas do mesmo rio Arrojado agora ameaçado pelas fazendas no distrito de Rosário. O canto fúnebre das “Alimentadeiras de Alma”, antiga tradição religiosa de rezar pelos mortos, passou a ser realizado para chamar a atenção para a morte das nascentes e rios às centenas na região. Romarias com milhares de pessoas vêm sendo feitas nos últimos anos em cidades da região em protesto contra a destruição dos Cerrados.
As ações do agronegócio possuem a chancela do Estado baiano e brasileiro, que age como incentivador e promotor, é insuficiente ou omisso nas fiscalizações e tem sido conivente com a sua expansão por meio da concessão de outorgas hídricas e licenças ambientais para o desmatamento, algumas sem critérios bem definidos. Estes critérios que vêm passando por intensas flexibilizações com as mudanças radicais na legislação ambiental. O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – INEMA concedeu à Fazenda Igarashi, por meio da Portaria nº 9.159, de 27 de janeiro de 2015, o direito de retirar do rio Arrojado uma vazão de 182.203 m³/dia, durante 14 horas/dia, para a irrigação de 2.539,21 ha.
Este volume de água retirada equivale a mais de 106 milhões de litros diários, suficientes para abastecer por dia mais de 6,6 mil cisternas domésticas de 16.000 litros na região do Semiárido. Agrava-se a situação ao se considerar a crise hídrica do rio São Francisco, quando neste momento a barragem de Sobradinho, considerada o “coração artificial” do Rio, encontra-se com o volume útil de 2,84 %. A água consumida pela população de Correntina aproximadamente 3 milhões de litros por dia, equivale a apenas 2,8% da vazão retirada pela referida fazenda do rio Arrojado.
Alegar que as áreas irrigadas no Oeste da Bahia representam apenas 8% da região, ou seja, 160 mil hectares num universo de 2,2 milhões de hectares, não minimiza seus impactos. Megaempreendimentos e suas obras de infraestrutura em plena construção com vistas à expansão das áreas irrigadas determinam uma rota de cada vez maior devastação. Alguns exemplos: Fazenda Santa Colomba, em Côcos, Fazendas Dileta; Celeiro e Piratini, em Jaborandi; Fazendas Sudotex, Santa Maria e Igarashi, em Correntina. Algumas destas fazendas estão construindo centenas de quilômetros de canais, dezenas de reservatórios (piscinões), perfuração de centenas de poços tubulares e instalação de centenas de pivôs. Quanta água está sendo comprometida com tudo isto? Se a irrigação não fosse uma tendência regional, como explicar tantos investimentos neste modelo de agricultura? Comitês e Planos de Bacia e outras medidas no campo institucional, antes promovem esta rota insana, do que preservam os bens comuns da vida, hoje e de amanhã.
A ganância do agronegócio e as conveniências dos que representam o Estado são os responsáveis pelo desespero do povo. Não há ciência no mundo que possa estimar um valor monetário para o rio Arrojado, e isso o povo de Correntina parece compreender bem. Os próceres do agronegócio agem com hipocrisia e continuam se negando a assumir o passivo socioambiental existente no Oeste Baiano. Não resistem a uma mínima comparação com o modo de produzir dos pequenos e médios agricultores, que fornecem os alimentos diversos que a população consome com impactos infinitamente menores e muito mais cuidados de preservação. Não há como evitar a pergunta: os equívocos dos processos para outorgas hídricas e licenciamentos ambientais e a falta de fiscalização eficiente dos órgãos responsáveis são garantias para a legalidade e legitimidade do agronegócio?
Diálogo com os representantes do agronegócio tem sido um simulacro de democracia e honestidade. Na audiência pública havida em Jaborandi, no dia 27/10/2017, para discutir a questão das águas, outorgas e legislação ambiental, com interessados dos municípios de Jaborandi, Coribe e Correntina, populares foram impedidos de questionar a tese, na ocasião defendida por conhecido cientista aliado do agronegócio, de que não há relação entre a ação humana e as mudanças climáticas.
Flagrantes contradições do modelo de desenvolvimento regional são inúmeras e precisam ser evidenciadas. Por exemplo, a de que é muito maior a área preservada de Cerrado em relação à explorada. Omite-se que as áreas de Reserva Legal das fazendas do Oeste da Bahia estão sendo regularizadas por meio da “grilagem verde” sobre os territórios das comunidades tradicionais, e que a função ecológica cumprida pelas Áreas de Preservação Permanente – APPs, aos longo dos cursos d’água, nas áreas de descarga, são diferentes das funções ecológicas que cumprem os chapadões responsáveis pelo abastecimento do aquífero Urucuia, áreas de recarga, que já foram dizimadas pelo agronegócio.
A luta em defesa da vida mais uma vez é marcada pelo protagonismo popular de quem faz com as mãos a história e sabe que a água não é mercadoria, como quer convencionar o agronegócio, inclusive utilizando-se da Lei 9.433/1997, a “Lei das Águas”. As águas do rio Arrojado abastecem comunidades centenárias e não podem servir apenas aos interesses dos irrigantes como o grupo Igarashi, que chega à região com a má fama de ter que migrar da Chapada Diamantina, uma das regiões da Bahia que sofrem com a crise hídrica, em especial, na bacia do rio Paraguaçu, justamente por conta dos impactos de sua exploração. Os conflitos ambientais parecem não findar com o caso das fazendas deste grupo, pois esta é apenas uma fazenda num universo de inúmeras do Oeste da Bahia. Tudo indica, portanto, que o cansaço do povo frente ao arrojo do agronegócio e ao descaso das autoridades e a urgência da defesa da vida seja o argumento que impõe esta reação.
Deste modo e diante da notória crise hídrica, somada à irresponsabilidade arrogante do agronegócio e à incompetência do Estado, tal cenário coloca o povo em descrença e desespero, ao ver o rio Arrojado, base para sua convivência e modo de vida, com tamanhos sinais de morte, assim como inúmeros riachos, nascentes, veredas e rios da região. E, então, partem para alguma reação concreta, que chame a atenção dos responsáveis públicos e privados. Não há palavras para descrever o sentimento coletivo que tomou conta do povo de Correntina, que num ímpeto de defesa agiu para defender-se, pois sabe que se não mudar o modelo de “desenvolvimento”, baseado no agronegócio, estarão comprometidas as garantias de vida das populações atuais e futuras.
Novembro de 2017.
Agência 10envolvimento
Articulação Estadual dos Fundos e Fechos de Pasto da Bahia
Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia – AATR/BA
Coletivo de Antônia Flor – Assessoria Técnica e Popular em Direitos Humanos
Comissão Pastoral da Terra – CPT/BA
Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP/MG
Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco – FUNDIFRAN
GeograFAR/UFBA
Levante Popular da Juventude
Licenciatura em Educação do Campo: Ciências Agrárias/UFRB
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST
Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Movimento Estadual dos Acampados, Assentados e Quilombolas da Bahia – CETA
Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP – Diocese de Bom Jesus da Lapa
Pastoral do Meio Ambiente – PMA – Diocese de Bom Jesus da Lapa.
Programa de Pós- Graduação em Educação do Campo/UFRB, Mestrado Profissional em Educação do Campo
Rede Nacional de Advogados e Advogadas Popular
Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras
Movimento Mulheres pela P@Z!