Tempos sombrios

Escrevo chorando. Que tempos são esses que estamos vivendo?

Por Selvino Heck*

Escrevo chorando. Que tempos são esses que estamos vivendo? Estou com 66 anos, passei muitas jornadas, inclusive a ditadura e suas consequências, e cada dia mais tenho a impressão que nunca vivi nada igual. Basta enumerar alguns poucos fatos recentes, entre tantos, ou ainda acontecendo, no Brasil (nem se precisa falar da tragédia de Las Vegas, EUA, ou das eleições alemãs, onde a extrema-direita nazista pela primeira vez chega ao Parlamento).

Fora-Temer-Diretas1. A exposição de obras de arte Queer Museu, no Santander Cultural em Porto Alegre, estava acontecendo há semanas, apreciada por muitos e sem incomodar ninguém, até o MBL (Movimento Brasil Livre) ‘descobri-la’ e exigir seu fechamento. Apesar dos amplos apoios recebidos e protestos a favor de sua continuidade, houve seu fechamento.

2. A palestra de Drauzio Varella sobre gênero no Colégio São Luís em São Paulo teve campanha pelas redes sociais por seu cancelamento. O Diretor jesuíta Pe. Carlos Alberto Contieri, corajosa, profética e democraticamente, manteve a palestra.

3. Por acusações de supostas fraudes fora do seu mandado de Reitor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), o Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo foi acusado, preso e até impedido de entrar na Universidade. Não resistiu a tanta humilhação. Acabou ‘suicidado’. Comunidade acadêmica, jurídica, estudantil protestaram contra a Polícia Federal, Poder Judiciário que condenaram sem provas e levaram à morte um inocente sem culpa formada.

4. Há uma verdadeira ‘putrefação da política’, segundo o conhecido dirigente partidário Roberto Amaral, com a compra de votos para impedir a tramitação de denúncias contra o presidente golpista, que, a cada dia, tem recebido dezenas de parlamentares no Palácio do Planalto, para evitar a continuidade da denúncia, comprando seus votos e consciência.

5. Paulo Freire, o brasileiro mais lido e conhecido no mundo, declarado Patrono da Educação Brasileira em 2014 pelo Parlamento brasileiro por seu método de alfabetização e por sua Pedagogia do Oprimido, da Autonomia e da Esperança, corre o risco de perder o título, através de uma iniciativa neste sentido da Escola sem Partido.

São alguns exemplos recentes do crescimento da intolerância, da canalhice e do pensamento único no Brasil (e no mundo) nesta quadra histórica, entre outros tantos que poderiam ser citados. O país da paz, da boa convivência entre os cidadãos, da alegria, o país acolhedor de todas as raças, povos e cores parece ter-se transformado no país do ódio, da cobiça sem limites, da ameaça à vida e à democracia

Mas ainda há esperança. Há que resistir. Estamos na Semana de São Francisco, 4 de outubro, que, no Cântico das Criaturas, louvou o Irmão Sol, a Irmã Lua e as Irmãs Estrelas, a água e o fogo, a terra e flores, frutos e ervas, o vento, o ar e as nuvens, até a Irmã Morte, e amou todos os seres vivos como irmãs e irmãos. E propôs – ‘onde houver, que eu leve’-, na sua conhecida Oração, em vez do ódio o amor, o perdão à ofensa, em vez da discórdia a união, a fé à dúvida, ao erro a verdade, ao desespero a esperança, em vez da tristeza a alegria, em contraponto às trevas a luz. “Fazei-me instrumento de vossa paz. Mais consolar que ser consolado; compreender que ser compreendido; amar que ser amado. É dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado; é morrendo que se vive para a vida eterna.”

O Papa, que não por acaso escolheu o nome Francisco, almoçou há poucos dias na catedral de Bolonha com pobres, imigrantes, doentes, refugiados e moradores de rua, chamando a todas e todos ‘lutadoras e lutadores da esperança’. Disse: “Somente com a misericórdia podemos entender o sofrimento do outro, os seus problemas. Estou aqui com vocês porque quero carregar vossos olhos nos meus, vossos corações no meu.” E propôs gestos e ações para dar visibilidade ao Dia Mundial dos Pobres, a ser comemorado em 19 de novembro. Em suas palavras: “Não amamos com palavras, mas com obras. (É preciso) ter momentos de encontro e de amizade, de solidariedade e de ajuda concreta, convidar os pobres para a mesa da comunhão fraterna e eucarística; aproximar-se dos pobres e tê-los como hóspedes privilegiados na nossa mesa, etc. Eu sonho com o retorno desses gestos! Não para nossa vanglória, mas para partilhar entre irmãos a alegria do abraço ao ‘leproso’. É ele que transforma as nossas amarguras em ‘doçura’ para a alma e o corpo.”

Estarei sendo ingênuo? Ou estarei sendo homem de pouca fé nestes tempos sombrios? Há que construir esperança e futuro, apesar e contra todas as intolerâncias, superando todo tipo de ódio, democratizando os Podres poderes, a começar pelo Poder Judiciário, o pior e menos democrático de todos, fazendo política com ética, juntando mística e política, exercendo a democracia com participação popular, ligando as práticas locais de base com a utopia no horizonte.

É difícil? É. É de curto prazo? Não é. É preciso colocar muita gente neste mutirão? Com certeza, especialmente jovens, negras e negros, agricultoras/es familiares e camponesas/es, população em situação de rua, catadoras/es, desempregadas/os, mulheres e todos os homens de boa vontade. Assim, algum dia, os tempos sombrios ficarão para trás e a primavera, que acabou de chegar, como já aconteceu tantas vezes na História, voltará a reinar no Planeta Terra.

*Selvino Heck é deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990).

Deixe uma resposta

quatro × 4 =