A MP 579 foi o golpe de misericórdia. Totalmente equivocada e aprovada sem qualquer debate, baseia-se numa ideia esdrúxula, a de que existe tarifa por usina.
Por Gabriel Brito
Um dos grandes pilares da economia brasileira, portanto eterno alvo do apetite do mercado, o setor elétrico brasileiro convive com a possibilidade de perda de sua principal estatal, conforme anunciado pelo governo e o Ministério das Minas e Energia. Ex-assessor da Eletrobras e crítico implacável da gestão dos governos petistas no setor, o engenheiro Roberto D’Araújo concedeu entrevista ao Correio da Cidadania e elencou diversas razões que explicam a destruição financeira da empresa.
“As suas usinas hidrelétricas descontratadas em 2003, apesar de preços menores, viabilizaram um verdadeiro “bolsa Megawatt (MW)” no mercado livre. Basta consultar os dados de 2003 até 2007 para ver o MW/hora da Eletrobras sendo liquidado por menos de R$ 20 MW/h. Foi assim no governo FHC e teve continuidade com Lula; a empresa foi usada como um “BNDES 2” ao ser obrigada a participar de sociedades em projetos privados minoritariamente. Na maioria, são projetos que seriam inviáveis sem a participação da Eletrobras, que assume riscos. Foi uma privatização ‘por dentro’”, explicou o diretor da ONG Ilumina, que debate políticas voltadas ao setor.
Nem bem se absorveu o impacto da notícia de “democratização da Eletrobras, termo praticamente satírico usado por governantes que perderam qualquer temor do repúdio social, mesmo sob ampla desaprovação popular, decidiu-se também pela venda das usinas vinculadas à CEMIG mineira e à CESP paulista.
“Eu perguntaria se, com base na experiência recente, temos um paradigma de eficiência no setor privado? Penso que não... A CEMIG e CESP são as empresas que construíram as usinas! Os Estados Unidos não cometem a estupidez de retirar a concessão de empresas que construíram e operam as usinas há anos! Lá, o concessionário só perde a usina se descumprir o contrato. Aqui, colocamos essa idiotice na Constituição!”, lamentou.
Num resgate de um momento histórico ainda recente, mas que promete deixar sequelas de grande alcance, Roberto D’Araujo recapitula a MP 579, a seu ver um desastre sob todos os pontos de vista, a configurar aquilo que classifica de “pedalada elétrica”.
“A MP 579 foi o golpe de misericórdia. Totalmente equivocada e aprovada sem qualquer debate, baseia-se numa ideia esdrúxula, a de que existe ‘tarifa por usina’. Em qualquer lugar do planeta, quem tem tarifa é a empresa que explora a usina. Além disso, se o governo achava que o problema era o preço das usinas antigas, quem alterou o regime de serviço público para o sistema mercantil foi ele próprio”, analisou.
A entrevista completa com Roberto D’Araujo pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: “Democratização da Eletrobras”. Como definir a postura do governo Temer e seu desejo de vender a empresa que construiu o setor elétrico brasileiro?
Roberto D’Araujo: Em primeiro lugar, não tenho essa visão que separa o atual governo do anterior. Temer era o vice e muitos políticos formaram a base do governo Dilma. Sabiam e aprovavam as políticas do governo. Não são “inocentes” ou ingênuos, muito ao contrário.
Chega a ser ridículo que se pense que a venda da Eletrobras vai fazer qualquer diferença no equilíbrio fiscal que, repito, os atuais representantes conheciam, pois faziam parte desse desmonte. Parece uma armadilha.
Correio da Cidadania: O rombo da empresa parece inegável. Quais as razões para chegar a este ponto?
Roberto D’Araujo: A Eletrobras sofre fragilizações desde a década de 90. Pelas razões que elenco a seguir:
1) empurraram as distribuidoras que não foram privatizadas para cima da empresa. Seus cargos foram usados para a discutível “governabilidade”. Prejuízos evidentes e nunca examinados. Foi assim no governo FHC e teve continuidade com Lula;
2) As suas usinas hidrelétricas descontratadas em 2003, apesar de preços menores, viabilizaram um verdadeiro “bolsa Megawatt (MW)” no mercado livre. Basta consultar os dados de 2003 até 2007 para ver o MWh da Eletrobras sendo liquidado por menos de R$ 20 MWh. Foi assim no governo FHC e teve continuidade com Lula;
3) a empresa foi usada como um “BNDES 2” ao ser obrigada a participar de sociedades em projetos privados minoritariamente. Na maioria, são projetos que seriam inviáveis sem a participação da Eletrobras, que assume riscos. Foi uma privatização “por dentro”;
4) a MP 579 foi o golpe de misericórdia. Repleta de erros técnicos, baseada numa concepção inexistente no planeta, impôs preços tão baixos como US$ 4 o MWh. Não conseguiu reduzir tarifas, deixou intactos vários erros, lucros privados e quebrou a Eletrobras.
Correio da Cidadania: O que pensa das alegações do Ministério das Minas e Energia e os supostos benefícios da venda?
Roberto D’Araujo: Eu perguntaria se, com base na experiência recente, temos um paradigma de eficiência no setor privado? Penso que não. Empresas viciadas em subsídios e isenções, incompetências que mataram um rio, quebra de contratos devolvendo concessões e péssimos serviços prestados em setores que já são privados há décadas. Não há benefícios. Aumento de tarifa na certa.
Correio da Cidadania: Depois da Eletrobras, entraram no noticiário as vendas ou fatiamentos das usinas da Cemig e CESP. O que pensa a respeito?
Roberto D’Araujo: A CEMIG e CESP são as empresas que construíram as usinas! Os Estados Unidos não cometem a estupidez de retirar a concessão de empresas que construíram e operam as usinas há anos! Lá, o concessionário só perde a usina se descumprir o contrato. Aqui, colocamos essa idiotice na Constituição!
Correio da Cidadania: Qual o grau de incidência da MP 579, portanto do governo Dilma, no quadro atual? Quais fatores foram desencadeados por essa medida?
Roberto D’Araujo: Como disse antes, a MP 579 foi o golpe de misericórdia. Totalmente equivocada e aprovada sem qualquer debate, baseia-se numa ideia esdrúxula, a de que existe “tarifa por usina”. Em qualquer lugar do planeta, quem tem tarifa é a empresa que explora a usina.
Além disso, se o governo achava que o problema era o preço das usinas antigas, quem alterou o regime de serviço público para o sistema mercantil foi ele próprio. Na realidade, não existe receita fixa nesse sistema. O MWh tem um preço definido pelo “mercado”. Ou seja, não era a Eletrobras que queria “explorar” o consumidor! Eram preços de leilões!
Ao invés de realizar um grande diagnóstico, resolveram adotar o caminho mais fácil, o de responsabilizar a Eletrobras pela alta recorde das tarifas. Ao fazer isso, foram “protegidos” vários erros e lucros privados. Um dos exemplos mais gritantes e ainda elogiado por alguns foi o deságio de 70% nos preços iniciais em muitos leilões. Aqui se comemora algo bizarro! Ou o preço estava mal avaliado ou algum sócio (no caso a Eletrobras) estava assumindo o risco.
Não há similar no mundo dos irrisórios preços impostos às usinas da Eletrobras. Resumindo, a MP destruiu a capacidade de autofinanciamento do setor.
Correio da Cidadania: Qual a responsabilidade de Dilma e PT neste processo todo?
Roberto D’Araujo: Total! Mas, e os partidos que aprovaram essas medidas? Muitos estão no atual governo.
Correio da Cidadania: Ainda sobre a MP 579, ela faria parte da base que poderíamos considerar fundamentada das chamadas “pedaladas fiscais” praticadas por Dilma Rousseff e que engendraram seu impeachment?
Roberto D’Araujo: Em apresentações que tenho feito, tenho chamado o que ocorreu como “pedalada elétrica”. A imprensa nunca divulga, mas até a data do anúncio da MP 579, as térmicas respondiam por aproximadamente 10% da carga. No mês seguinte ao anúncio, passaram a 23% e por aí ficaram. Parece que esperavam o “alívio” da MP para dobrar a geração térmica.
Quando você expande o sistema com térmicas caras, contabiliza-as na oferta, mas quem gera no lugar são hidráulicas. O leilão de 2008, que contratou óleo combustível e diesel, “contratou” também o esvaziamento dos reservatórios.
Correio da Cidadania: Como membro que teve trajetória importante nas estatais de energia e participante da elaboração do antigo programa energético do PT, como você sintetiza todos esses últimos anos?
Roberto D’Araujo: Os princípios firmados em 2002 foram todos traídos, principalmente a promessa de blindagem política na direção das empresas públicas. Fizeram o oposto. Dada a explosão tarifária, escolheu-se o caminho de menor resistência do mercado, a fragilização da Eletrobras.
Correio da Cidadania: Está de acordo com Célio Bermann, quando ele disse que ainda pagaríamos caro pelo que fizeram PT e PMDB no setor? Quais serão as consequências da venda da Eletrobras?
Roberto D’Araujo: Totalmente de acordo. Teremos perda de estratégias tecnológicas num momento de mudança (não esquecer que a Eletrobras tem o CEPEL, o único centro de pesquisa brasileiro em eletricidade). Veremos aumento de tarifa e abandono de programas regionais nas usinas. O Brasil vai passar a ser o único exemplo mundial onde, com o tipo de sistema de usinas hidrelétricas integrado que construiu, não terá seu controle nas mãos da sociedade.
Correio da Cidadania: Como tem enxergado, especificamente, a atuação do setor energético em suas três pontas, quais sejam, geração, transmissão e distribuição? Como tem sido a relação entre elas em face do nosso atual modelo energético, inclusive no que diz respeito aos interesses públicos e privados envolvidos?
Roberto D’Araujo: Volto à pergunta: nós sabemos privatizar? A meu ver, não! As distribuidoras já são de maioria privada e ainda prestam um serviço ruim. Alguém acredita em eficiência com a confusa situação dos postes nas grandes cidades? Alguém conhece um exemplo de fiscalização física real da ANEEL nas redes das distribuidoras? Por exemplo, medição de “picos de luz” ou variações de tensão? Aqui, as agências regulam, mas não fiscalizam.
A transmissão também está se deteriorando, uma vez que as linhas antigas sofreram o mesmo aperto das usinas na MP 579.
Correio da Cidadania: A venda da Eletrobras teria um simbolismo maior do que uma orientação política e econômica setorial e de certa forma ocasional? Diz algo sobre o Brasil que nos ficará?
Roberto D’Araujo: A economia mundial está prestes a realizar uma grande mudança tecnológica. Na demanda, carros elétricos e na oferta, energia solar. Não se tem mais tanta certeza de que o petróleo será a grande riqueza pela qual se luta tanto. Mais uma vez o Brasil vai perder a oportunidade de assumir os rumos de um setor onde ele tem todas as condições para se destacar.