A sociedade civil catalã tem uma tradição muito forte de luta desde os séculos 18 e 19, desenvolvidas com foco em autogestão e auto-organização popular e comitês de bairro.
Por Raphael Sanz
No dia primeiro de outubro a Catalunha tomou as manchetes da imprensa internacional ao votar o seu controverso referendo sobre a independência da região em relação ao Reino da Espanha. Uma pauta antiga, que com algum apoio institucional conseguiu juntar forças para realizar a consulta. Se por um lado houve forte repressão policial, que deixou 800 feridos, por outro, é notável o envolvimento popular neste referendo. Sobre isto conversamos com Aritz García, que atuou como observador de direitos humanos para o referendo, em Barcelona.
“Toda a organização estava sistematizada. Na sexta (29/9) de noite, no sábado e no domingo até as cinco da manhã, as pessoas se concentraram nos colégios. As urnas e cédulas eleitorais foram chegando aos poucos ao longo desse período. E de maneira secreta, porque os policiais do estado espanhol estavam há duas semanas buscando desesperadamente essas urnas e essas cédulas para impedir o referendo. Assim, quando as urnas e cédulas chegavam aos colégios, as pessoas as protegiam com os próprios corpos. Centenas de milhares de pessoas se juntaram nos colégios não só para votar, mas também para proteger com o próprio corpo o colégio eleitoral em si”, relatou Aritz.
Após a contagem de votos, uma ampla vitória do Sim (a favor da independência) por 90%, que correspondem a cerca de 38% do total de eleitores na Catalunha, haja vista que dos cinco milhões de eleitores, apenas 2,2 milhões conseguiram computar seus votos. Para além das pessoas que normalmente não votam e das que não saíram a votar por medo da repressão, um grande número de urnas (cerca de 400) e cédulas eleitorais foram confiscadas pelo Estado espanhol ao longo do domingo.
Sobre a aplicação dos resultados do referendo, García afirma que: “em 10 de outubro, 13 horas no horário de Brasília, foi decretada a República pelo presidente catalão Carles Puidgemont, o que não significa a declaração de independência, mas um mecanismo de negociação política do Estado. Ainda não dá para fazer muitos prognósticos, temos que ver quais serão os próximos capítulos e como isso vai acabar. O mais provável é que aumente o nível de repressão e tratem de impedir a declaração de independência, mas nada é certo”.
A entrevista completa com Aritz García pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você define o domingo do referendo, realizado sob forte repressão do Estado espanhol e alta participação popular tanto no voto quanto na organização?
Aritz García: É importante começar este relato na sexta-feira anterior ao referendo. Neste dia 29 de setembro de 2017, nas escolas que serviriam como colégios eleitorais, as associações de mães e pais de alunos de cada uma das escolas se organizaram para fazer atividades durante toda a sexta e o sábado, até a primeira hora da manhã do domingo para que as escolas não pudessem ser fechadas pela polícia e tomadas pelo Estado espanhol.
É um processo muito interessante do qual podemos falar em três aspectos. Primeiro, a população dos bairros, com suas famílias, a organizar atividades para o bairro nas escolas, a fim de tê-las abertas durante todo o fim de semana como medida de proteção para que os policiais do Estado espanhol não entrassem e fechassem as escolas para impedir o referendo do domingo.
Segundo, a sociedade civil catalã tem uma tradição muito forte de luta desde os séculos 18 e 19, mas especialmente forte em tradições libertárias e anarquistas, desenvolvidas na Catalunha, com foco em autogestão e auto-organização popular e comitês de bairro. Seja hoje em dia ou há séculos. Essa tradição se expressou no domingo por meio dos comitês de defesa do referendo, de bairros, e na terça, dois dias depois, se manifesta pelos comitês de defesa da greve.
De um lado temos os bairros organizados em defesa dos colégios. De outro lado, toda uma rede coordenada de grupos e pessoas que aprenderam a atuar clandestinamente se dispondo a guardar e cuidar das urnas e cédulas eleitorais.
Toda a organização estava sistematizada. Na sexta de noite, no sábado e no domingo até às cinco da manhã, as pessoas se concentraram nos colégios. As urnas e cédulas eleitorais foram chegando aos poucos ao longo desse período. E de maneira secreta, porque os policiais do Estado espanhol estavam há duas semanas buscando desesperadamente essas urnas e essas cédulas para impedir o referendo. Quando as urnas e cédulas chegavam aos colégios, as pessoas as protegiam com os próprios corpos. Centenas de milhares de pessoas se juntaram nos colégios não só para votar, mas também para proteger com o próprio corpo o colégio eleitoral em si.
A partir das 8 da manhã do domingo, os colégios eleitorais foram abertos e os policiais do Estado espanhol começaram a atacá-los. E aqui, como dizemos os catalães, fizemos “cebola”. Ou seja, todos fizemos uma grande barreira humana, dando-nos os braços e, com essa parede humana fazíamos uma resistência pacífica ativa, impedindo-os de entrar no colégio. A recomendação era não revidar os golpes, mas resistir todos juntos aos golpes, para não enfraquecer a “cebola”. Uma verdadeira obra de engenharia, pois os braços dados fazem com que a parede humana, ou “cebola”, fique mais firme. Desvencilhar-se da cebola para revidar um golpe pode enfraquecer a parede.
Em alguns colégios eles conseguiram romper a “cebola”. Nesses casos eles pegaram as urnas e roubaram-nas do povo. Mas em outros colégios houve forte resistência, chegava a lembrar até os filmes sobre a Resistência Francesa contra o nazismo. Em alguns lugares os policiais não conseguiram entrar, em outros as pessoas esconderam as urnas de forma que não as encontrassem. Quando iam embora, os mesários punham a urna novamente sobre a mesa e as pessoas voltavam a votar. Uma vitória das formigas, dos pequenos resistindo com criatividade à pressão e à repressão do Estado e dos policiais.
Assim foi das 8 da manhã até 8 da noite. A partir deste marco, começou a contagem dos votos. Em cidades pequenas e bairros onde tiveram de proteger as urnas depois da votação, muitas vezes as levavam secretamente até a igreja local e, no meio da missa, para confundir os policiais, contavam votos. Houve gente que escondeu urna no elevador, no cemitério, era a imaginação e a criatividade coletivas resistindo à repressão.
Isso porque ao longo do domingo o Estado espanhol produziu cerca de 800 feridos, dos quais quatro estão em estado grave. A maioria apenas hematomas na cabeça, produto dos cassetetes dos policiais, balas de borracha e gás. Um absurdo, é claro, mas dá para lidar com isso, já sabíamos que o Estado espanhol não é muito chegado em um diálogo democrático. Eles atacaram mais de 60 colégios em toda Catalunha. Roubaram mais de 400 urnas eleitorais.
O resultado do referendo tem que levar em conta que essas 400 urnas representavam 700 mil pessoas. E diante da possibilidade desta situação – especialmente após as lamentáveis declarações de Rajoy (presidente do governo da Espanha) – a Generalitat (governo catalão) preparou o que é chamado de “censo universal”. Ou seja, qualquer pessoa poderia votar em qualquer colégio, pois estavam conectados pela internet. Ao votar, anotavam seu número de identificação pessoal no computador, o que impedia de votar em outros colégios. Tudo foi feito para que a população pudesse votar.
Ficamos, no final, com dois milhões e duzentos mil votos de um total de cinco milhões, mas aqui o voto não é obrigatório como no Brasil, o que normalmente resulta em abstenção eleitoral. Por outro lado, tivemos as 400 urnas roubadas pelos policiais. É importante informar que os policiais catalães não estavam reprimindo o referendo: quando me refiro à repressão, é exclusivamente sobre os policiais a serviço do Estado espanhol (*1).
Ao saírem os resultados, obviamente o governo espanhol não os reconheceu. Já a União Europeia (UE) segue falando que é um assunto interno. Na minha opinião, estamos no processo de internacionalização da situação e temos que pedir a negociação de um terceiro elemento e exigir que a UE aja com algum bom senso nesse sentido, ainda que não acredito muito na possibilidade disto acontecer.
Correio da Cidadania: Acredita que a forte repressão policial do Estado espanhol tenha contribuído com os 90% que recebeu o “Sim”?
Aritz García: É muito claro que a repressão do Estado foi o que fez muita gente sair às ruas não só para votar, mas para proteger as urnas. Eu tenho a impressão de que se não tivesse ocorrido tamanha violência, tão forte, menos pessoas talvez teriam saído de casa. Mas por essa tradição que temos na Catalunha de defesa dos nossos direitos – é preciso recordar os anos de 1909 e 1936 na Catalunha e em toda nossa história temos muitos momentos de reivindicação dos nossos direitos – foi o que nos manteve em pé, resistindo.
Outro dado é de que 75% dos catalães são como eu: temos ou pai ou mãe, ou ambos, não nascidos na Catalunha, imigrantes, um pouco como acontece em São Paulo. Isso faz com que muitos de nós não nos sintamos 100% catalães. Esse é meu caso. Meu pai é basco e minha mãe é espanhola, mas eles se sentem catalães porque entendem que aqui na Catalunha eles foram bem recebidos e a cultura catalã é muito acolhedora e defensora de todos.
É seguramente o lugar dentro do Estado espanhol – e um dos principais da Europa – onde as organizações civis estão mais organizadas. Portanto, fica muito claro que a repressão e o desrespeito à democracia por parte do Estado espanhol fizeram toda essa rede social (literalmente falando) que há na Catalunha rapidamente sair em defesa dos direitos democráticos.
Correio da Cidadania: Pensando nas bases populares da Catalunha, qual o sentimento geral da população em relação à realização do referendo e à possibilidade de independência do país?
Aritz García: A população da Catalunha é de cerca de 7 milhões de pessoas. Deste número, pouco mais de 5 milhões têm direito a voto: quem está acima de 18 anos. Destes, saíram a votar 2,2 milhões. Desses, 2 milhões votaram a favor da independência.
Há alguns “poréns” aqui que precisamos registrar. Cerca de 30% da população normalmente não vota nunca. Como o voto não é obrigatório, já é costume desse setor da sociedade não participar das eleições. São pessoas normalmente das classes mais populares que acabam tocando a vida adiante, independentemente de quem ganhe ou perca eleições.
Ou seja, teríamos cerca de 40% de independentistas, cerca de 20% a 30% de não independentistas e entre 30% e 40% de gente que não participa do sistema político. Podemos desenhar mais ou menos assim. O governo espanhol defende que se não houver um total de 51% de votos a favor da independência, ela não é possível.
Não concordo com a análise do Estado espanhol por conta desses 30% que nunca votam. Simplesmente porque a conta não fecha. Sem esses 30%, nem os pró-independência e nem os contrários conseguiram mais de 50% dos votos na Catalunha.
Voltando ao domingo do referendo, ficou claro que a população catalã, ou uma boa parte dela, considerável, está querendo votar. E uma das possíveis soluções caso a Espanha não permita esse voto é que a União Europeia ou a ONU venham aqui e garantam que esse referendo seja feito de uma maneira livre de verdade, não como foi em 1/10, quando policiais atacaram mais de 60 escolas e feriram 800 pessoas em suas ações violentas diretamente contra os colégios eleitorais. Mas não sei da viabilidade disto, pois a UE tem dito que é um problema interno da Espanha, onde eles não poderiam intervir. O que é uma hipocrisia muito grande para uma entidade política que se define como defensora dos direitos humanos.
Já morei no Brasil e acompanhei a realidade das periferias e favelas do país. Seria leviano da minha parte comparar o que aconteceu aqui com o que acontece diariamente no Brasil. Mas para os padrões catalães, é evidente que a violência de domingo passado foi algo completamente fora de contexto.
Criou-se aqui uma cultura de respeito aos direitos humanos, superamos a ditadura há mais de quarenta anos e, depois do seu fim, houve um trabalho forte das organizações de direitos humanos com os policiais, foi possível ter uma polícia mais comunitária e temos avançado muito nesse sentido. É claro que ainda há muito racismo policial, especialmente contra migrantes do Oriente Médio, o que não fica impune ao menos para os movimentos que insistem nessa luta de fortalecer os direitos humanos e combater tais questões dentro da nossa polícia, mas para cidadãos catalães realmente não tem sido muito comum apanhar da polícia nos últimos anos, o que fez com que a repressão do 1-O (referência à data) fosse algo fora do comum.
Correio da Cidadania: Como avalia a greve geral que ocorreu na terça-feira seguinte ao referendo?
Aritz García: A greve foi convocada dez dias antes, quando houve a primeira operação policial contra o governo da Generalitat e também contra a Cordinadora de Unidad Popular (CUP), que é a organização da esquerda independentista da Catalunha. No marco desses ataques, os sindicatos mais combativos, como a CNT e a CGT, mais próximos do independentismo de esquerda (*2), fizeram um chamado de greve geral.
Aconteceu que no domingo, com a repressão policial, todos os sindicatos, incluindo os mais moderados, juntamente com as organizações mais à direita do independentismo e da Assembleia Nacional Catalã fizeram um chamado para se incorporarem a esta greve geral. Mas, na segunda-feira, quando viram que a greve seria liderada por comitês de bairro e de grupos mais à esquerda, inclusive da radical esquerda independendista, fizeram novo chamado, não para somar à greve, mas para um “dia de parada”. Uma forma de dizer que não existe no sistema jurídico espanhol e catalão. Isso foi pensado para não se falar em greve geral, porque não consta nos direitos penais e judiciais, buscando uma camuflagem contra a criminalização.
Nosso objetivo com a greve foi construir uma nova República, que seja mais plural. Até hoje as legislações espanhola e catalã deixam a desejar. Portanto, vem daí a crítica a esta atitude dos setores mais moderados e à direita do independentismo. Na realidade, o problema para eles era que a greve saísse dos comitês de bairro, que são populares, o que trouxe incômodos a essas organizações e sindicatos moderados, já que o movimento dos bairros estava ganhando muita força e tomando um protagonismo que eles queriam para si.
Em meio a todo o contexto, naquela manhã de terça-feira começaram os piquetes. E após a repressão do domingo, tivemos organizada uma greve geral que parou toda a Catalunha. Naquela manhã ainda houve uma manifestação gigante que me lembrou do 15M. E uma coisa que acho interessante de chamar a atenção é de como esse processo, nas últimas semanas, está completamente ligado a um processo de mobilização e auto-organização nos bairros, como falei no início da entrevista, bem independentes dos partidos políticos tradicionais. Uma característica muito catalã, ou seja, mais forte na Catalunha do que na Espanha.
Correio da Cidadania: O que pensa dos líderes Puidgemont, presidente da Catalunha, e Junqueras, a frente do parlamento?
Aritz García: Junqueras é de um partido que há muito tempo não tem bons líderes. Puidgemont também não é um grande líder, a diferença dele para Junqueras é que chegou ao poder com alguma casualidade, mas tem feito boas ações no cargo.
Correio da Cidadania: Do ponto de vista político, como a nova disposição da Generalitat e do Parlamento Catalão, após as eleições de 2016, puderam ser decisivas para a realização do referendo?
Aritz García: Com o resultado das últimas eleições, a coligação Junts Pel Si (Juntos pelo Sim) precisava de três deputados para obter a maioria necessária para convocar o plebiscito. Se somassem os 10 deputados do CUP, chegaria. Mas o CUP vendeu seu apoio a um bom preço: a saída de Mas da presidência e algumas leis sociais: de garantias de renda básica e moradia. Acontece que o Tribunal Constitucional (espanhol) suspendeu essas leis.
Correio da Cidadania: Acredita que um desfecho independentista possa estimular outras iniciativas semelhantes, como no País Basco?
Aritz García: Aos bascos são abertas novas possibilidades, especialmente depois que o ETA abandonou as armas. Do outro lado do espectro político dentro do nacionalismo basco, o PNV (Partido Nacionalista Basco) *3 está em uma situação de quase traição da causa independentista. A princípio estariam dispostos a apoiar o referendo catalão, mas no fim das contas acabaram por apoiar o Partido Popular (PP, liderado pelo primeiro-ministro Mariano Rajoy).
Correio da Cidadania: Que perspectivas de desfecho são possíveis após as declarações do rei, entre outras repercussões graúdas? Haverá ou não declaração de independência?
Aritz García: Em 10 de outubro de 2017, foi decretada a República pelo presidente catalão Carles Puidgemont, o que não significa a declaração de independência, mas um mecanismo de negociação política do Estado. Ainda não dá para fazer muitos prognósticos, temos que ver quais serão os próximos capítulos e como vai acabar. O mais provável é que aumente o nível de repressão e tratem de impedir a declaração de independência, mas nada é certo.
Notas
*1: Polícia Espanhola: ex. Guarda Civil, Polícia Nacional. Polícia Catalã: ex. Mossos d´Esquadra. Houve um incidente no domingo em que homens da polícia catalã entraram em conflito com policiais espanhóis. Os catalães teriam se recusado a acatar ordens de reprimir o referendo.
*2 e *3: Os independentismos basco e catalão são marcos nas culturas políticas destas regiões. É como se houvesse dois sistemas em disputa: o sistema espanhol e o sistema local. Da mesma forma que o sistema espanhol tem um completo espectro político que vai da extrema-esquerda, anarquistas, republicanos, comunistas, passa pelos partidos do poder PP (franquista) e PSOE (progressista), até chegar na extrema-direita remanescente do franquismo – assim o é dentro dos setores independentistas.
No caso da Catalunha, a CUP e outras organizações compõem um campo de esquerda dentro do independentismo, ao passo que outras organizações sindicais e civis se colocam à direita do independentismo catalão. No país basco ocorre o mesmo. O PNV é o partido à direita do independentismo, enquanto a esquerda “abertzale” (independentista, em basco) também conta com diversos grupos, sindicatos e partidos. Historicamente, o grupo basco mais famoso mundialmente foi o ETA, que compunha uma esquerda mais tradicional marxista-leninista e hoje, assim como as FARC na Colômbia, abandonou as armas.