A cidade dos empobrecidos olha o Rio de cima.
Por Elaine Tavares*
A lógica é a do espetáculo. Com as câmeras de televisão e os repórteres da mídia comercial subindo o morro junto com os policiais, o que vemos é uma profusão de soldados que agora vão salvar a comunidade da bestialidade dos traficantes. E durante dias, o discurso é o mesmo: bandidos estão em guerra na favela, policiais são chamados para pacificar, pessoas estão sendo protegidas e pela força das armas tudo ficará bem. A operação renderá alguns corpos de bandidos, um que outro “efeito colateral”, leia-se aí corpos de pessoas não envolvidas com o tráfico, muitas denúncias de abuso. O clima vai arrefecer e a comunidade voltará ao seu cotidiano.
Nas redes sociais haverá gente denunciando a polícia e outros tantos defendendo. Haverá gente acusando quem denuncia a polícia de proteger os bandidos, e haverá quem ache que aquela gente toda que vive na Rocinha deveria mesmo era morrer para não incomodar tanto. Tudo se resumirá a uma disputa entre os “bons” e os “maus”, enquanto o ponto central do fato sequer é tocado.
A Rocinha é uma comunidade do Rio de Janeiro que tem quase 70 mil habitantes. É um morro, como muitos dos que cercam a cidade maravilhosa. Fica na Gávea, um dos espaços mais caros do Rio de Janeiro. Começou a se formar por volta de 1930 quando as terras de duas grandes fazendas foram divididas e vendidas a imigrantes espanhóis e portugueses. Estes eram os responsáveis por abastecer o bairro com hortaliças, daí o nome “rocinha”. Com a crescente migração para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, o morro foi sendo ocupado por famílias pobres, migrantes sem condições de pagar aluguel. Virou um cinturão de pobreza, cercando a vida de famílias de classe alta, tornando concreta a ideia de “desigualdade”.
Assim, a “cidade” dentro da cidade virou o reduto da vida dos pobres, enquanto o asfalto agrupa os ricos. E, no espaço dos pobres, se expressa a dura batalha pela sobrevivência. Há que reproduzir a vida e os moradores da Rocinha seguem seus dias entre o subemprego, a superexploração e o difícil convívio com os agentes do tráfico de drogas, uma das possibilidades de sobrevivência da grande massa que vive na comunidade, principalmente os jovens. A violência que se vê na Rocinha não é muito diferente da que existe também no asfalto, nas rodas da alta sociedade. A diferença é que a da Rocinha sai no jornal e na TV.
As guerras das gangues que peleiam pelo controle do tráfico são mostradas cotidianamente nos programas de televisão do tipo policialesco. Tudo o que há de ruim na sociedade parece que só acontece ali, em comunidades empobrecidas, do tipo da Rocinha. Enquanto nos ricos salões, os verdadeiros chefes do tráfico tramam suas bandidagens, é nas ruas das comunidades pobres que pontos mais fracos da corrente disputam as migalhas. E não faltam programas de “segurança” como as famosas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), porque é preciso “pacificar” o território, garantindo um mínimo de segurança para as famílias de trabalhadores que vivem no lugar. Mas essa pacificação é a paz do terror. Não dá para esquecer que foi na Rocinha que desapareceu o Amarildo, numa UPP. Em comunidades assim é comum sumirem pessoas, ou amanhecerem mortas nos caminhos. Tudo se explica pela guerra de gangues.
Mas que guerra de gangues é essa mesmo? Será que tudo se explica por aí? Pelo desejo de poder de uma ou outra facção do crime? Não. O que acontece na Rocinha e em outras comunidades empobrecidas de tantos lugares do Brasil é outro tipo de guerra de gangues. É a disputa entre o capital e o trabalho. Entre os ricos, que querem ficar mais ricos e a grande massa de trabalhadores que nada mais tem a não ser sua força de trabalho para vender. Há quem consiga vender essa força para algum patrão legalizado, com carteira assinada ou pelo menos com um contrato de fio de bigode. Mas há uma massa gigantesca de gente que não tem onde vender sua força. É o famoso exército de reserva. Esses ficam entregues ao destino. Não há quem se importe com eles. Mas, precisam viver, e encontram formas. Uma delas é virar gerente ou avião de grandes traficantes, os ricaços que estão protegidos nas suas mansões. E são esses corpos – no geral negros – os que vão servir de bucha de canhão para garantir a boa vida de uns poucos que nunca aparecerão no Jornal Nacional como “bandidos”.
Quem já leu o texto de Marx, o “A assim chamada acumulação capitalista” vai ver como foi o início do capitalismo, quando as levas de gente tiveram de sair do campo e buscar trabalho nas cidades. Não havia trabalho para todos, é claro. Então, os governantes criaram as leis anti-vadiagem, para poder prender e escravizar os corpos que não conseguissem se vender. Nada muito diferente do que acontece hoje. A vítima vira vilão. E não há saída. Quem entre os que leem esse texto não seria capaz de qualquer coisa para garantir a comida na mesa, para si e seus filhos? Diz Marx: “{os expulsos da terra} ... convertem-se massivamente em mendigos, assaltantes, , vagabundos... a maioria por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento em toda a Europa ocidental, no final do século XV, e ao longo do XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem”.
Alguns virão com suas pedras moralistas a dizer que essa é uma visão romântica, que se estamos com pena que levemos para casa, e tudo mais. Mas, ainda que bradem e esperneiem seus preconceitos não podem fugir da verdade. É assim. O terror criado nas periferias não é nada mais do que a criação, pelos moradores, de técnicas de sobrevivência na selva. É preciso sobreviver. E os donos do poder sabem disso, e oferecem a “saída”, no caso, a possibilidade de servirem ao grande cartel da droga. Se milhares dessas pessoas vão morrer, não importa. Elas são facilmente substituíveis. E ainda contam com toda a carga de discriminação das demais “pessoas de bem”.
Não, os “bandidos” das favelas não são santos. Muitos são cruéis, malvados, quase desumanos. Mas, como seria diferente? Como ser bom, humano e paciente diante de tanta pobreza e indiferença? A resposta que eles dão é violenta, mas não é mais violenta do que a violência que é destinada a eles, muitas vezes com planejamento.
No mundo capitalista é assim. Para que um viva bem, outro precisa morrer. É da natureza do sistema cobrar o sacrifício das vítimas. E essas vítimas, é claro, nunca saem da classe dominante. Nos salões, nas mansões, nas baladas famosas, os verdadeiros “bandidos”, os donos dos cartéis, os reais chefes do tráfico, se divertem assistindo a queda dos empobrecidos, como numa interminável edição de “jogos vorazes”.
O espetáculo na Rocinha logo vai acabar, outros virão. E sempre será o mesmo discurso. Os bandidos, os bandidos, os bandidos... Muitos cairão sob as balas, mas logo outros virão, porque a pobreza é necessária para a formação de vítimas a serem oferecidas no altar do capital. E, no meio disso tudo, ainda temos de ver a classe média, sempre claudicante, abraçada com a burguesia, exigindo que “os bandidos” sejam abatidos para que possam ir à praia em paz.
Bueno, não haverá paz enquanto não houver uma mudança no modo de organizar a vida. Não é que eu queira isso, ou que esteja rogando praga. É assim. E não será apenas o nosso desejo, ou caminhadas com bandeiras brancas que mudará a situação, que é estrutural.