Africae munus

A Igreja Católica na África se encontra numa situação difícil, diferente de momentos anteriores.

Por Isaack Mdindile

A Igreja Católica na África se encontra numa situação difícil, diferente de momentos anteriores: É a conhecida luta entre o poder espiritual e o temporal. Nos países como Líbia, República Democrática do Congo, África Central, Burundi, Sudão, Somália, vive-se em situações-limite de formas mais clamorosas.

Por um lado, os grupos fundamentalistas como Al-Shabaab, Janjaweed, Mungiki, Lord´s Resistance Army, Boko Haram, Anti-Balaka e Muslim Séléka continuam semeando divisões e ameaçando a paz no continente. Por outro, a Igreja é atacada nos países onde os regimes não aceitam oposição nem crítica construtiva.

igrejaafrica1Qualquer oposição é uma ameaça. A democracia tornou-se muito cara, especialmente no âmbito dos direitos humanos e na liberdade da expressão. Mas, toda democracia, instituição importada, é cara mesmo.

Sete anos depois da Exortação Apostólica Africae munus do papa emérito Bento XVI, nota-se que é importante rever e verificar sua recepção e seus frutos. Como o nome indica, a Exortação é um forte convite para a unidade na diversidade e para o comprometimento da Igreja. Unidade dos católicos entre si, que pressupõe o diálogo permanente, assim como a unidade de oração e desejo. Todavia, essa unidade, sinergia, sinodalidade é um processo gradual devido à complexidade do próprio continente. Pois, não haverá reconciliação, justiça e paz sem um trabalho conjunto que começa dentro das próprias instituições, sejam religiosas ou civis. Mas, a própria Associação da Conferência Episcopal das Regiões da África Central (ACERAC) não é forte o suficiente. Não existem ações comuns. Há divergências entre os próprios bispos.

Neste sentido, a Igreja contém seu próprio e primeiro inimigo. Isso já gera uma contradição, portanto, contratestemunho. Se a Igreja falhar na sua renovação, atualização, corresponsabilidade – e com sua agenda pastoral no continente onde 78% da população é formada por jovens –, os riscos são grandes.

Naturalmente, a Igreja se torna estéril e irrelevante. A Exortação oferece duas saídas: primeiro, ser uma igreja una, de comunhão, que consequentemente atrai a juventude. No entanto, a unidade e rejuvenescimento da Igreja dependem da centralidade de Jesus Cristo na vida das pessoas, das comunidades e instituições. Este é também o sonho do papa Francisco de uma Igreja em saída, embora acidentada, mas alegre e profética.

Outra ameaça – que é positiva –, vem das igrejas pentecostais baseadas na teologia da prosperidade. Estas são novas igrejas e trazem um tipo de novidade que os jovens nunca viram. A sua pregação sobre prosperidade e cura chama bastante atenção. Claro, numa realidade de divisão, desemprego e pobreza, os jovens seguem qualquer caminho. Cabe à Igreja Católica discernir e ver prioridade, para que os jovens, leigos se tornem sujeitos ativos da missão, não apenas ovelhas que obedecem cegamente.

Finalmente, a Igreja Católica africana é ameaçada pelos regimes ditatoriais. Tais regimes usam violência e buscam silenciar a Igreja, os partidos de oposição e outras Instituições não governamentais. Os leigos poderiam fazer muita diferença, mas, são poucos e sem formação suficiente. A Igreja ainda é muito clerical, ou seja, patriarcal. Esse patriarcalismo é muito tradicional e muito arraigado. Nele se aninharam de modo especial os outros “pês”: o pai, o professor, o político. E tudo que os maus políticos querem é que viremos as costas à política para dar a eles carta branca.

O bispo Louis Portella, de Kinkala, em Congo Brazzaville, o cardeal Laurent Monsengwo, de Kinshasa; o arcebispo Dieudonne Nzapalainga, da África Central e o padre Donatien Nshole são modelos nessa luta pela relevância profética da Igreja Católica na África. Precisamos de uma África de democracia participativa e no qual os Estados sejam os principais indutores do desenvolvimento, com distribuição de riqueza e preservação ambiental.

A Igreja Católica na África será católica se for verdadeiramente africana. Deve ocorrer a inculturação do Evangelho em todos os âmbitos (carismas, democracia, políticas públicas, saúde integral, educação). Isso é investir no empoderamento popular. Reforçar os movimentos sociais e sindicais, intensificar o trabalho de formação política e consciência crítica, dilatar os espaços de pressão, reivindicação e mobilização. Só conseguiremos mudanças significativas se vierem de baixo para cima.

A Africae munus (compromisso) é a continuidade da Exortação Pós-sinodal Ecclesia in Africa de São João Paulo II, que sem dúvida, enfatizou não apenas a ideia da Igreja como família, comunidade das comunidades, mas a natureza e a missão da Igreja propriamente para a África.

Mas qual é a missão da Igreja que entende a si mesma como família no contexto social da África de hoje? Que mudança, renovação e conversão devem ser feitas para essa autocompreensão da Igreja-família? O missionário e teólogo Adrian Hastings (1929-2001) comenta que a Igreja Católica na África recebeu como herança uma Igreja mais jurídica que sacramental. Os esforços feitos pelos missionários na evangelização do continente não podem ser desconsiderados, mas a Igreja continua muito mais hierárquica e romana do que africana.

O catolicismo africano ainda é pouco autônomo. Por falta de autonomia, a Igreja torna dependente mesmo na sua produção teológica. A formação para os futuros pastores deve assumir com coragem seu caráter missionário. E deixar de lado todo paternalismo e infantilização. Enfim, a eclesiologia do papa Francisco de uma Igreja pobre pelos pobres é pertinente e coincide com a teologia dos pobres de Jean-Marc. Ela (Camarões), que enfatiza a conexão nítida entre Revelação, Libertação e Salvação.

A Igreja é uma família, é o povo de Deus com sua história em contextos diferentes. Todos nós somos povo de Deus. Na Igreja, há profunda igualdade entre todos na dignidade de filhos(as) de Deus na vocação à santidade, na missão. O que nos diferencia são as vocações, os serviços, os ministérios, os carismas e os dons. O essencial da Igreja é a sua comunhão. Esse é o mistério da Igreja: que seja uma comunhão com o Pai, por Jesus Cristo, no Espírito Santo, e que viva em participação e comunhão fraterna. A participação ativa, ter uma Igreja simples e atual é o sonho do papa Francisco, mas também demanda da realidade e imaginação religiosa do povo. O cristianismo com o rosto africano para ser relevante deve pensar e agir seriamente sobre justiça social e libertação.

Isaack Mdindile, imc, é seminarista em São Paulo, SP.

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